INTRODUÇÃO
A Síndrome de Miller Fisher (SMF) é uma neuropatia rara que se caracteriza pela tríade oftalmoparesia, arreflexia e ataxia 1-3. Sua incidência é 0,09 casos/100.000 hab., sendo mais comum em indivíduos do sexo masculino 3. A SMF foi descrita pela primeira vez por James Collier em 1932 e, posteriormente, por Charles Miller Fisher em 1956, como uma polineuropatia inflamatória, desmielinizante e aguda, considerada uma variante da síndrome de Guillain-Barré (GBS) e, em muitos casos, está associada a uma infecção viral ou bacteriana, a exemplo das infecções por Campylobacter jejuni.(1,4,5A SMF se inicia com os três sinais básicos: oftalmoparesia ataxia e arreflexia 4. Entretanto, funções executadas pelos órgãos fonoarticulatórios como fala, voz e deglutição podem, também esta comprometidas nos casos de SMF, apesar de pouco descrita na literatura especializada 2,6.
O objetivo desse estudo foi descrever os achados fonoaudiológicos presentes nesse caso clínico de SMF, apresentando uma abordagem terapêutica de reabilitação pautada nos sinais de disfonia e disfagia identificados.
Caso clínico
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Sergipe - CEP/UFS - sob número de protocolo CAAE: 06067619.3.0000.5546; número do parecer: 3.210.155. O participante assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Paciente sexo masculino, 25 anos de idade, foi internado com queixas de fraqueza nos membros, dificuldade de andar, dor de cabeça e dispneia em um período de uma semana. Durante exame neurológico foi identificado ptose palpebral bilateral, oftalmoparesia em todas as direções (Figura 1), ataxia sem alteração do equilíbrio postural. Identificou-se também que não houve mudanças nas funções cognitivas. Desse modo, inicialmente, o paciente foi diagnosticado com miastenia grave e foi ministrado Brometo de Piridostigmina como conduta medicamentosa.
Após 3 dias, o paciente retornou ao pronto socorro com agravamento dos sintomas, fraqueza muscular mais intensa, inabilidade ao deambular e queixas de engasgo ao se alimentar. A análise do líquor apresentou: aspecto límpido, incolor, hemácias: 373 e ausência de bactérias. Pleocitose linfocítica de 32 cel/mm³ (82%, contra 18% de polimorfonucleares). A eletroneuromiografia apresentou registro polineuropatia sensitiva e/ou motora de padrão desmielinizante axonal aguda. A partir dessas informações, em associação ao sinal oftalmoparesia, foi possível concluir o diagnóstico médico: Síndrome de Miller Fisher.
Outrossim, diante da queixa de engasgo ao se alimentar, foi solicitado avaliação fonoaudiológica. Aplicou-se o Protocolo de avaliação fonoaudiológica do Hospital, o Protocolo de avaliação de Deglutição (PARD) e a Escala funcional de Ingestão por via oral (FOIS)7,8).
A partir dos procedimentos supracitados, observou-se presença de sialoestase, assimetria na mobilidade de órgão fonoarticulatórios (OFAS), déficit na mobilidade da língua (Figura 2 e Figura 3). Além disso, foi observado hipofuncionamento do véu palatino e ausência de reflexos aos estímulos táteis na região posterior da língua e do palato. O paciente ainda apresentava fala com característica lentificada, voz com foco de ressonância hipernasal, presença de ataque vocal brusco e tempos máximos de fonação diminuídos.

Figura 3 Alteração na mobilidade de orgãos fonoarticulatórios ao comando verbal de movimentar a língua lado a lado
Com o uso do PARD, utilizando a quantidade mínima de 5ml de suco cítrico com espessante alimentar, na consistência mel, foi observado: trânsito oral aumentado, sensibilidade gustativa preservada, deglutições múltiplas, reduzida mobilidade laríngea, ausculta cervical ruidosa, voz molhada com clareamento espontâneo, pigarro e tosse.
A partir da avaliação realizada, concluiu-se que o paciente apresentava um quadro de Disfonia de grau moderado com foco de ressonância nasal e disfagia orofaríngea de grau grave. Foi indicado via alternativa alimentar (sonda nasoenteral) e uso de quantidades mínimas de alimento para estímulo gustativo, apenas durante a abordagem terapêutica fonoaudiológica (FOIS- nível 1) (Tabela 1).
Tabela 1 Avaliação Fonoaudiológica Inicial e no momento da alta hospitalar: Órgãos fonoarticulatórios, Fonação, Deglutição de líquidos, semi-líquidos e sólidos

O uso de Imunoglobulina endovenosa (400mg/Kg/dia) durante cinco dias, sessões diárias de fisioterapia e fonoterapia foram condutas indicadas. Técnicas de manipulação laríngea e facial, estímulos táteis, térmicos e gustativos (estimulação sensório-motora), exercícios isotônicos, exercícios vocais de firmeza glótica, emissão de sons graves e, posteriormente, vibração de lábios, manobras de Mendelsohn e deglutições múltiplas foram utilizados na terapia fonoaudiológica com o objetivo de favorecer força e mobilidade de OFAS, deglutição sem riscos de broncoaspiração e melhor qualidade vocal.
Após 8 dias, com a finalização do tratamento medicamentoso e com indicação de alta hospitalar do paciente, foram observados os seguintes resultados: maior mobilidade hiolaríngea, deglutição sem risco de broncoaspiração - diante de dietas líquida, semilíquida e pastosa (FOIS - nível 6, Tabela 2 )-, permanência de sinais de hipernasalidade na voz, discreta alteração na movimentação da língua e dificuldade na deglutição de alimentos sólidos. Assim, diante desse quadro, o paciente recebeu alta hospitalar com via oral liberada, sendo prescrito acompanhamento fonoaudiológico e fisioterapêutico ambulatorial.
DISCUSSÃO
A SMF é descrita como uma paralisia flácida pós-infecciosa e autoimune. De acordo com a literatura entre 1% a 5% dos casos de síndrome de Guillain Barre são SMF nos países ocidentais. Essa porcentagem, por sua vez, aumenta nos países do Oriente como japão e Taiwan, podendo chegar a 25 % dos casos 5. A sua incidência é maior nos indivíduos do sexo masculino e na faixa etária dos 43,6 anos 5.
A patogênese da SMF inicia com uma resposta imune atípica contra o sistema nervoso, por um mecanismo autoimune denominado mimetismo molecular. Os anticorpos ativados em resposta ao agente infeccioso reagem contra os próprios antígenos, especificamente o gangliosídio GQ1b 5).
Em relação aos nervos cranianos na SMF, o comprometimento inicialmente ocorre nos nervos oculomotores e abducentes e, alguns casos, nos nervos faciais, glossofaríngeo e vago 2,9. Um estudo de imuno-histoquímica revelou a presença de anticorpos anti-GQ1b nos nervos oculomotores, troclear e abducente 9. Essa revelação esclarece o sinal mais evidente da síndrome, oftalmoparesia.
Apenas 2% dos pacientes com SMF apresentam sintomas de disfagia, e a origem desse achado não está muito bem definida 2.
Em uma análise com 26 casos de pacientes com SMF, foram identificados sinais de disfagia em apenas um paciente; voz hipernasal em três e paralisia facial, em dezesseis pacientes6).
O uso da imunoglobulina e da plasmaferese são indicados como conduta terapêutica na SMF2,5. Não há, por sua vez, nos protocolos de conduta da síndrome informações sobre atuação dos profissionais de reabilitação como fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos 3,10. Entretanto, é evidente a necessidade de uma equipe multidisciplinar no adequado manejo do paciente com SMF.
A terapêutica fonoaudiológica empregada se baseou nos sinais clínicos evidenciados no quadro da disfagia, nas alterações vocais, nas alterações de OFAS e na capacidade do paciente em realizar as técnicas propostas, tendo em vista o comprometimento motor e de força evidenciados, característicos da SMF.
Após a avaliação fonoaudiológica, a abordagem terapêutica foi iniciada com terapia indireta por meio de técnicas de manipulação facial e exercícios vocais. Essa indicação se baseou na presença de um número significativo de défices na deglutição. O objetivo da terapia indireta foi de preparar a musculatura orofaríngea e facial, utilizando técnicas e manobras para deglutição e voz, antes de qualquer oferta alimentar 11).
Outra abordagem utilizada na terapia indireta foram os estímulos sensório-motor intra e extraoral. O uso de estímulos frios e azedos são técnicas utilizados no tratamento das disfagias orofaríngeas por aumentar a modulação e a respostas faríngeas 12,13. Além disso, o paciente do presente caso apresentou supressão de reflexos em região posterior da cavidade oral. Dessa forma, foi utilizado estímulos térmicos no pilar das fauces durante a reabilitação. A sensação fria no pilar das fauces é utilizado em quadros de disfagias em várias doenças neurológicas por aumentar a sensibilidade e promover uma resposta rápida de deglutição ao estímulo (12).
Em segundo momento, o uso de ajustes, compensações, manobras e modificações na consistência alimentar foram importantes para início da terapia direta no paciente descrito. A modificação na consistência do alimento líquido para a consistência pastosa e a consistência mel com uso de espessante foi fundamental. O alimento sólido e o líquido, respectivamente, exigem um maior controle neuromotor na fase oral e um controle de proteção laríngea 13). As consistências mel e pastosa, por sua vez, promovem um melhor controle motor oral, favorecendo a proteção de vias aéreas e não exigem o processo de mastigação 13).
As manobras como a de Mendelson e a de deglutições múltiplas foram utilizadas neste caso. A manutenção da laringe na posição elevada favorece excursão hiolaríngea, fortalecendo esta musculatura, evitando estases em seios piriformes 13. A técnica de deglutições múltiplas promove a limpeza de resíduos alimentares em recessos laríngeos.
Técnicas vocais com sons plosivos, velares, variação de frequência e vibração de lábios foram também utilizados objetivando a reabilitação da disfagia e a melhora da qualidade vocal. O paciente apresentou evolução nos tempos máximos de fonação, mas manteve a hipernasalidade (tabela 1). Estratégias vocais têm sido utilizados na abordagem de pacientes com disfagia, embora há uma incipiência científica quanto a esse tipo de abordagem 14.
Houve evolução do paciente com a terapêutica empregada no caso (tabela 1) em oito dias de aconpanhamento. Entretanto, a carência de uma literatura sobre a abordagem fonoaudiológica na SMF impossibilitou aferir com mais precisão o quanto a abordagem terapêutica foi um elemento diferencial na evolução do caso clínico apresentado.
CONCLUSÃO
A Síndrome de Miller Fisher é uma síndrome rara e que, em alguns casos, pode comprometer os órgão fonoarticulatórios. No caso descrito, foi utilizado o protocolo fonoaudiológico padrão do hospital, com melhora evidente na deglutição e na fala do paciente. Apesar do reduzido número de sessões e da impossibilidade do acompanhamento do caso a médio e a longo prazo, observou-se a importância do papel da equipe multiprofissional, inclusive do fonoaudiólogo, na avaliação e reabilitação dos casos de Síndrome de Miller Fisher.