Os traços sombrios de personalidade englobam diversos comportamentos antagônicos e insensíveis que causam detrimento para o próprio indivíduo ou para a sociedade (Paulhus, 2014; Zeigler-Hill & Marcus, 2016). Habitualmente, estes são investigados com variáveis que tendem a indicar comportamentos contraprodutivos e que são socialmente mal adaptativos, evidenciando prejuízos que tais dimensões possam causar (Muris et al., 2017). Concomitante a esta proposta de investigação da personalidade sombria, novas pesquisas visam a compreender em que proporção os traços sombrios se relacionam com características comumente classificadas como positivas, por exemplo, as forças de caráter e a inteligência emocional (Kaufman et al., 2019; Miao et al., 2018). Para expandir a investigação no que tange aos aspectos positivos, esse estudo tem como objetivo analisar a capacidade explicativa da personalidade sombria-utilizados aqui os traços despeito, maquiavelismo, narcisismo, psicopatia e sadismo-sobre a inteligência emocional.
Os estudos que versam sobre a personalidade sombria, usualmente, tendem a investigar o narcisismo, o maquiavelismo, a psicopatia, o sadismo e o despeito, dado que a constelação destes é concebida como tríade ou tétrade sombria (Marcus et al., 2014; Paulhus, 2014; Zeigler-Hill & Marcus, 2016). Narcisismo é caracterizado por um senso de grandiosidade, superioridade e uma visão exacerbada de self (Miller et al., 2017; Paulhus & Williams, 2002). Maquiavelismo descreve comportamentos de manipulação, cinismo e imoralidade (Christie & Geis, 1970; Rauthmann & Will, 2011). Psicopatia retrata condutas de impulsividade, falta de empatia e de remorso (Muris et al., 2017; Paulhus & Williams, 2002). Sadismo é compreendido como um valor hedônico ao proporcionar e/ou presenciar o sofrimento psíquico e físico de terceiros (Foulkes, 2019). E por último, despeito descreve a propensão para um indivíduo causar dano a outros, mesmo que não seja beneficiado, podendo até ser prejudicado ao fazê-lo (Zeigler-Hill et al., 2015). Além de apresentarem particularidades, estas dimensões se sobrepõem no que tange ao antagonismo, à insensibilidade e à baixa empatia, buscando maximizar suas próprias necessidades ao custo dos demais (Moshagen et al., 2018; Vize et al., 2019). Devido a estes inúmeros déficits apresentados por indivíduos com altos escores na personalidade sombria, em especial no que diz respeito à empatia, investigações buscaram compreender a relação entre estes traços, a inteligência emocional e suas subdimensões (Nagler et al., 2014; Petrides et al., 2011).
A inteligência emocional retrata a capacidade de um indivíduo apreender seus sentimentos e emoções bem como de outros, além de fazer uso dessas habilidades para discriminar, e guiar pensamentos e ações (Salovey & Mayer, 1990). Ela foi inicialmente proposta como uma habilidade que retratava compreensão e percepção das emoções de um indivíduo, ou a percepção deste sobre as emoções de terceiros (Salovey & Mayer, 1990). A partir desta proposta, foi expandida a concepção deste construto e atualmente além de compreendê-lo como uma habilidade, é possível mensurá-lo como um traço de personalidade que compreende as características não estritamente cognitivas como a empatia e a regulação emocional (Petrides et al., 2016). Evidências anteriores apontaram para uma possível “inteligência sombria” com base na descrição de Salovey e Mayer (1990) ao destacarem que, quando tais habilidades são canalizadas de maneira antissocial, essas podem ser utilizadas para manipulação e outros fins prejudiciais (Austin et al., 2007; Côté et al., 2011; Nagler et al., 2014; Davis & Nichols, 2016). Posto isso, essa relação seria mediada pela díade da empatia-cognitiva e afetiva-, uma vez que indivíduos com altos escores em variáveis sombrias são capazes de compreender as emoções alheias, porém são pouco afetados pelo bem/mal-estar de outrem, possibilitando assim a manipulação desses sem o sentimento de culpa (Nagler et al., 2014; Jonason et al., 2013; Kajonius & Björkman, 2019). Para além disso, deve-se levar em conta que a regulação emocional por si não é positiva ou negativa, contudo, quando presente em pessoas com escores elevados em dimensões sombrias pode facilitar a disseminação de desfechos negativos (Côté et al., 2011).
Para encontrar um consenso sobre o tema, pesquisas visaram a analisar a relação entre variáveis sombrias e a inteligência emocional a partir de estudos meta-analíticos considerando narcisismo, maquiavelismo e psicopatia como uma constelação (i.e., tríade sombria). A metanálise de Vize et al. (2016) a partir de sete estudos indicou que narcisismo possui uma relação positiva com inteligência emocional (r̅= .20), em contrapartida maquiavelismo e psicopatia apresentam uma relação negativa com inteligência emocional (r̅= −.22; r̅= −.24; respectivamente). Já a metanálise mais recente de Miao et al. (2018), a partir da análise de correlações apresentadas em 38 estudos, indicou que narcisismo não foi significamente relacionado com inteligência emocional (ρ̅ = .02), maquiavelismo foi negativamente correlacionado com inteligência emocional (ρ̅ = −.29), sendo o mesmo para psicopatia (ρ̅ = −.17). Por conseguinte, ambos os estudos de metanálise estão em consonância no que tange à relação negativa entre maquiavelismo e psicopatia quando considerada a inteligência emocional, no entanto narcisismo apresentou resultados divergentes.
Quando compreendidas de maneira individual e considerando suas particularidades, as variáveis sombrias tendem a apresentar relações específicas no que se refere à inteligência emocional além das anteriormente mencionadas. Para narcisismo, quando concebido a partir de suas duas dimensões (i.e., grandioso e vulnerável) as relações apresentam correlações positivas para narcisismo grandioso e negativas para narcisismo vulnerável (Casale et al., 2019; Zajenkowski et al., 2018). Quanto a maquiavelismo, as relações são negativas e tendem a ser influenciadas pela regulação e manipulação emocional (Austin et al., 2007; Côté et al., 2011). No que diz respeito à psicopatia uma metanálise, considerando ambos os construtos, apresentou consenso com aquelas previamente descritas, mantendo a relação negativa encontrada (r̅= −.21; Megías et al., 2017). Para sadismo e despeito a investigação no que diz respeito a inteligência emocional ainda é escassa. Todavia, estudos exploratórios indicaram uma possível relação negativa entre sadismo sexual e habilidades empáticas, visto que indivíduos que apresentam esses traços não são afetados em sua capacidade de empatia cognitiva, porém exibem pouca empatia afetiva e assim não experienciam o sofrimento alheio (Kirsch & Becker, 2007). Por fim, indivíduos com altos escores em despeito tendem a não ser afetados caso seus comportamentos sejam aversivos ou injustos para outros, indicando um possível déficit na compreensão e apreensão de pensamentos e sentimentos de outros (Ewing et al., 2016; Zeigler-Hill et al., 2015).
Considerando que a maior parte das evidências acumuladas no que diz respeito à associação entre a inteligência emocional e aos traços sombrios estão vinculadas à tríade sombria, é identificada uma lacuna no que concerne às outras variáveis que compõem a personalidade sombria (i.e., sadismo e despeito), visto que estas podem retratar comportamentos específicos a serem intervindos. Assim como é escassa a investigação de tópicos que envolvem a temática sombria em amostras brasileiras, em especial relacionada a variáveis positivas (e.g., forças de caráter), uma vez que é sabido da influência cultural e da relação de tais traços (Bonfá-Araujo, Barros, & Noronha, no prelo; Monteiro et al., 2020). Nessa conformidade, este estudo visa a investigar em que proporção o sadismo e o despeito são capazes de explicar a inteligência emocional para além da tríade sombria. Portanto, pretende-se analisar a capacidade explicativa da personalidade sombria (i.e., narcisismo, maquiavelismo, psicopatia, sadismo e despeito) sobre a inteligência emocional.
A partir das concepções teóricas previamente exploradas as seguinte hipóteses podem ser estabelecidas: (H1a) Narcisismo apresentará uma correlação positiva e de pequena magnitude com inteligência emocional, (H1b) explicando-a positivamente; (H2a) Maquiavelismo apresentará uma correlação negativa e de pequena magnitude com inteligência emocional, (H2b) explicando-a negativamente; (H3a) Psicopatia apresentará uma correlação negativa e de média magnitude com inteligência emocional, (H3b) explicando-a negativamente; (H4a) Despeito apresentará uma correlação negativa com inteligência emocional, (H4b) explicando-a negativamente; (H5a) Sadismo apresentará uma correlação negativa com inteligência emocional, (H5b) explicando-a negativamente.
Método
Participantes
Compuseram a amostra 395 participantes, com idades de 18 até 30 anos (M = 21.19; DP = 1.75). A maior parte dos participantes era do sexo masculino (85.3%), com renda mensal de um a três salários mínimos (90.6%) e com ensino superior completo ou cursando (80,5%). Os participantes são provenientes de uma amostra por conveniência.
Medición
Questionário sociodemográfico. Desenvolvido para esta pesquisa com o objetivo de caracterizar a amostra no que diz respeito ao sexo, idade, renda mensal e formação.
Short Dark Triad (Jones & Paulhus, 2014). Adaptado ao português brasileiro por Monteiro (2017), esse instrumento tem como objetivo avaliar a tríade sombria da personalidade por intermédio de 27 itens em escala Likert (1 = Discordo totalmente a 5 = Concordo totalmente). O instrumento é composto por três fatores, a saber, narcisismo, maquiavelismo e psicopatia; alguns exemplos de itens são “1 - Não é esperto contar os seus segredos - maquiavelismo”, “12 - Muitas atividades em grupo tendem a ser chatas sem mim - narcisismo” e “24 - Quem mexe comigo sempre se arrepende - psicopatia”. O instrumento apresentou índices de confiabilidade aceitáveis para psicopatia (α = .68), narcisismo (α = .60) e maquiavelismo (α = .53) no estudo de adaptação.
Escala Reduzida de Impulso Sádico (O’Meara, Davies, & Hammond, 2011). Adaptado ao português brasileiro por Ferreira, Bonfá-Araujo, Faiad e Iglesias (2020), esse instrumento unidimensional tem como propósito avaliar o sadismo recorrendo a 10 itens dicotômicos (1 = Não tem a ver comigo e 2 = Tem a ver comigo). Alguns exemplos de itens são “1 - As pessoas gostariam de machucar outras se pudessem” e “10 - Às vezes eu fico com tanta raiva que quero ferir alguém”. A escala apresentou estimativas de confiabilidade aceitáveis (α = .75 e ω = .84) em seu estudo de adaptação.
Escala de Despeito (Marcus et al., 2014). Em processo de adaptação para o português-brasileiro tem como finalidade mensurar de modo unidimensional o construto despeito por meio de 17 itens em escala Likert (1 = Discordo totalmente a 5 = Concordo totalmente). Alguns exemplos de itens são “1 - Talvez valha a pena arriscar minha reputação para espalhar uma fofoca sobre alguém que eu não gosto” e “17 - Algumas vezes um pouco de sofrimento meu vale a pena para ver os outros receberem a punição que merecem”.
Inventário de Competências Emocionais (Bueno et al., 2015). Esse instrumento visa a mensurar o traço da inteligência emocional, sendo composto por 34 itens em escala Likert (1 = Absolutamente não se aplica ao seu caso a 5 = Se aplica perfeitamente ao seu caso). Cinco fatores compõem o inventário completo - regulação de emoções em outras pessoas; regulação de emoções de baixa potência; expressividade emocional; percepção de emoções e regulação de emoções de alta potência. Alguns exemplos de itens são “1 - Tenho jeito para lidar com pessoas problemáticas - regulação de emoções em outras pessoas”, “21 - Sou capaz de me livrar facilmente da tristeza - regulação de emoções de baixa potência” e “33 - Identifico quando uma pessoa está ou não disposta a me ajudar - percepção de emoções”. O inventário apresentou aceitáveis índices de confiabilidade, regulação de emoções em outras pessoas (α = .91), regulação de emoções de baixa potência (α = .83), expressividade emocional (α = .67), percepção de emoções (α = .86) e regulação de emoções de alta potência (α = .76), no estudo de desenvolvimento.
Procedimentos
Este manuscrito faz parte de um projeto guarda-chuva que pretende analisar o fator sombrio da personalidade anteriormente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Posto isso, a coleta de dados dos instrumentos ocorreu por meio da plataforma online Google Forms, na qual os participantes deveriam concordar com as informações descritas do projeto, bem como indicar que possuíam 18 anos ou mais e aceitavam compor a pesquisa voluntariamente. Em seguida, foram selecionados os dados sociodemográficos e as informações que diziam respeito às variáveis sombrias anteriormente mencionadas e ao instrumento de inteligência emocional para realização deste manuscrito.
Análise de dados
Inicialmente foi testada a normalidade dos dados, a partir do teste de Shapiro-Wilk, com objetivo de escolher o estimador a ser aplicado na path analysis. Visto que dados com distribuição não normais foram encontrados optou-se pelo estimador maximum likelihood robusto (MLR; Hu & Bentler, 1999). Em seguida realizou-se a correlação de Spearman (ρ), fazendo uso da interpretação das magnitudes de Cohen (1988) nos quais valores entre .10-.29 são pequenos, .30-.49 médio e .50-1.00 grandes. Foram testados dois modelos-um saturado e um restrito-, para o modelo saturado todas as variáveis da personalidade sombria explicavam a inteligência emocional, enquanto no modelo restrito fixou-se em zero as variáveis que apresentaram relações não significativas no modelo inicial. Sendo permitido assim o uso dos índices de ajuste qui-quadrado (χ 2 ), graus de liberdade (gl), Comparative Fit Index (CFI ≥ .95), Tucker-Lewis Index (TLI ≥ .95) e Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA ≤ .08; Hu & Bentler, 1999). Optou-se por apresentar graficamente somente o modelo restrito uma vez que este tende a ser o principal a ser discutido. Todas as análises foram realizadas no software MPlus 8 (Muthén & Muthén, 1998-2012).
Resultados
Em primeiro lugar testou-se a normalidade dos dados para escolha do estimador e outros testes a serem aplicados, e o teste de normalidade Shapiro-Wilk indicou dados não normais (p < .05). Seguidamente, foram estimadas as correlações entre as variáveis que compuseram este estudo; a Tabela 1 apresenta estes resultados. No que tange à personalidade sombria as correlações variaram de pequenas (ρ = .17) para narcisismo e sadismo até grandes (ρ = .66) para psicopatia e despeito. Em relação à inteligência emocional as correlações que apresentaram significância variaram de pequenas (ρ = .09) para maquiavelismo e percepção das emoções até médias (ρ = −.32) para psicopatia e regulação de emoções de alta potência. Tais resultados confirmam as hipóteses (H1a até H5a) no que diz respeito às correlações estimadas. Eram esperados tais achados uma vez que escores elevados em variáveis sombrias tendem a estar associados a indivíduos que desconsideram as emoções alheias (Muris et al., 2017). Vale ressaltar que psicopatia e despeito, respectivamente, foram as variáveis que se correlacionaram negativamente em maior magnitude com inteligência emocional; isto indica que ambos os traços, assumindo um nível de prejuízo, são aqueles que tendem a apresentar menores níveis de inteligência emocional enquanto traço, ou seja, menores comportamentos empáticos e de regulação das emoções (Megías et al., 2017).
Apesar de informativas, correlações bivariadas impossibilitam identificar o relacionamento direto entre cada par de variáveis, uma vez que neste teste não se controla a influência das outras variáveis nos coeficientes específicos. Dado isto, optou-se por realizar um modelo de path analysis, o qual permite a estimação, em um mesmo modelo, de todas relações lineares. Finalmente, foi testado um modelo no qual todas as dimensões da personalidade sombria explicavam os fatores da inteligência emocional. Visto que o modelo saturado apresenta relações não significativas e limita a interpretabilidade dos índices de ajuste, foi analisado mais um modelo, agora restrito, com proposta similar ao anterior, indicando assim apenas as relações estatisticamente significativas (p < .05) existentes no modelo um. A Figura 1 apresenta esse modelo.
Nota. Correlações significativas (p < .05) foram indicadas em negrito; a consistência interna mensurada pelo alfa foi inserida na diagonal.
Nota. Variância explicada (R 2 ) para os fatores da inteligência emocional. Regulação de emoções em outras pessoas (.11), regulação de emoções de baixa potência (.08), expressividade emocional (.05), percepção de emoções (.18) e regulação de emoções de alta potência (.11).
Para a Figura 1 os índices de ajuste foram excelentes, χ 2 = 6.494; gl = 9; CFI = 1.00; TLI = 1.01; RMSEA = .001 [I.C. 90% .001 a .004]. Em relação à variância da inteligência emocional explicada pela personalidade sombria variou de 5% para expressividade emocional até 18% para percepção de emoções. No que diz respeito às hipóteses previamente estabelecidas, por um lado, confirmaram a explicação positiva entre narcisismo e inteligência emocional (H1b), e a explicação negativa entre psicopatia, despeito e inteligência emocional (H3b e H4b). Por outro lado, as hipóteses H2b e H5b foram refutadas, ou seja, maquiavelismo e sadismo explicaram positivamente as dimensões da inteligência emocional.
Apesar de inconsistente com estudos metanalítico-correlacionais, a explicação positiva entre maquiavelismo e inteligência emocional traço, já foi identificada em um estudo anterior (Jauk et al., 2016). Este achado possivelmente ocorreu por dois motivos. Primeiro, a maior parte dos estudos sobre a temática fazem uso de correlações bivariadas para estimarem as relações entre traços. Isto significa que o modelo aqui testado estimou o efeito único de maquiavelismo em inteligência emocional, assim como em Jauk et al. (2016). Segundo, maquiavélicos tendem a ser manipuladores e imorais, e para tal, necessitam ser capazes de perceber a influência de seus comportamentos, bem como as alterações destes em terceiros (Jauk et al., 2016; Rauthmann & Will, 2011).
Para sadismo, a variância explicada positiva ocorreu nas dimensões regulação de emoções em outras pessoas e percepção de emoções. Isto pode ter ocorrido devido ao instrumento utilizado, que possui como enfoque sadismo cotidiano, ou seja, itens que descrevem comportamentos menos prejudiciais quando comparados ao sadismo sexual. Do mesmo modo que sádicos extraem prazer ao exercer poder e dominância sobre outros, e para tanto necessitam ser capazes de perceber e regular as emoções destes outros, mesmo que necessitem fazer uso de táticas de tortura psicológica (Foulkes, 2019; O’Meara et al., 2011).
Discussão
A pesquisa aqui desenvolvida teve como proposta testar a capacidade explicativa da personalidade sombria sobre a inteligência emocional. Para ser atingido o objetivo, testou-se um modelo de path analysis, fazendo uso dos traços sombrios narcisismo, maquiavelismo, psicopatia, sadismo e despeito, e considerando a inteligência emocional enquanto traço. As hipóteses foram parcialmente confirmadas, indicando que contrário ao esperado maquiavelismo e sadismo explicam positivamente certas dimensões da inteligência emocional.
Como esperado, as correlações, em maioria, entre a personalidade sombria foram negativas ou nulas com inteligência emocional. Este resultado está em consonância com a literatura e reforça a hipótese de que maiores escores em inteligência emocional estão associados a aspectos de saúde mental e física, principalmente quando mensurada enquanto traço (Martins et al., 2010; Miao et al., 2018). Contudo, as correlações entre narcisismo e expressividade emocional, maquiavelismo e percepção das emoções foram positivas. Isto pode ter ocorrido pois expressividade emocional caracteriza a demonstração de emoções sem receios de julgamentos, traços associados a narcisismo grandioso. Além disso, percepção das emoções, ou seja, detectar a influência do próprio comportamento em outros, estaria associada aos comportamentos cínicos de maquiavélicos ao manipular e convencer outros (Bueno et al., 2015; Casale et al., 2019; Jauk et al., 2016). Visto que a proposta deste estudo era identificar a relação entre sadismo, despeito e inteligência emocional para além das outras variáveis sombrias, maior enfoque será dado para estes considerando que psicopatia, narcisismo e maquiavelismo apresentaram relações já amplamente discutidas pela literatura.
Despeito e sadismo correlacionaram-se negativamente com o traço de inteligência emocional, sendo o primeiro em maior proporção, de modo que para ambos o resultado era esperado. No que tange ao despeito, estudos anteriores encontraram associações negativas entre este e a Teoria da Mente, valores morais e humor prejudicial, indicando a existência deste traço em indivíduos que se importam pouco com os sentimentos e emoções de outros (Ewing et al., 2016; Vrabel et al., 2017; Zeigler-Hill et al., 2015). Já para sadismo, quando explorado em nível patológico, foi proposto que estes indivíduos são incapazes de reconhecer o estado emocional de terceiros, respondendo apenas ao próprio sofrimento. Ou seja, mesmo em nível cotidiano era esperada a associação negativa com comportamentos de regulação e expressão emocional (Kirsch & Becker, 2007). Nesta conformidade, quando correlacionados à alta inteligência emocional, ambos os traços demonstraram existir em menor nível, em especial para reconhecer (i.e., despeito) e regular emoções de alta potência como raiva (i.e., sadismo).
No que se refere ao modelo estrutural, apenas um outro estudo foi encontrado e os resultados aqui explorados foram similares (Jauk et al., 2016). Desse modo, narcisismo, maquiavelismo e sadismo explicaram positivamente as variáveis de inteligência emocional, e despeito e psicopatia explicaram-na negativamente. Para os traços que compõem a tríade sombria (i.e., narcisismo, maquiavelismo e psicopatia), possivelmente a explicação positiva dos dois primeiros ocorreu, pois ambos os traços exigem alta compreensão dos sentimentos e emoções alheias, a fim de obter uma melhor imagem para si (i.e., narcisismo) e manipulação de outros a partir do que é compreendido (i.e., maquiavelismo; Casale et al., 2019; Jauk et al., 2016). Já a explicação negativa de psicopatia era esperada uma vez que este traço caracteriza indivíduos pouco empáticos e insensíveis, indicando assim que além de não se importarem com os sentimentos alheios, possuem uma maior dificuldade para regular suas próprias emoções, justificado pelos aspectos de impulsividade relacionados a este traço (Megías et al., 2017).
Por um lado, para despeito, a explicação negativa era esperada visto que este traço caracteriza indivíduos que pouco se importam com os sentimentos alheios (Ewing et al., 2016). Especial destaque se refere ao valor encontrado para a dimensão percepção das emoções, de maneira que são pouco capazes de perceber a influência de seus comportamentos em outros, assim como a expressão de emoções ou sentimentos. Por outro lado, a explicação positiva de sadismo é contrária a hipótese estabelecida. Todavia, assim como maquiavélicos, sádicos necessitam ser capazes de entender o comportamento alheio para extração de prazer direto ou vicário (Foulkes, 2019). Ou seja, é necessário perceber a influência de seus comportamentos em outros para que assim o sofrimento seja infligido e compreendido.
Finalmente, as implicâncias práticas a serem consideradas a partir deste estudo podem ser relevantes. Visto que os instrumentos de personalidade sombria tinham como enfoque mensurar a apresentação destes traços em nível subclínico, intervenções em sujeitos não clínicos também podem se mostrar eficientes para aumento da capacidade empática e da regulação emocional (Megías et al., 2017). Contudo, é necessário considerar que apenas promover o aumento de inteligência emocional nem sempre será benéfico. Sádicos, maquiavélicos e narcisistas necessitam não apenas do aumento deste traço. Para além disso, intervenções precisam ter como enfoque a compreensão das consequências de seus respectivos comportamentos, visando a não apenas perceber e regular os sentimentos e emoções de outros, como também identificar quais aspectos não sadios estão sendo aplicados com fins manipulativos.
Este estudo não está isento de limitações. Dentre as principais, estão a utilização de instrumentos que desconsideram a multidimensionalidade dos construtos e a não mensuração da inteligência emocional enquanto habilidade. Contudo, o enfoque aqui desejado dizia respeito aos traços sadismo e despeito e sua relação com a inteligência emocional para além da tríade sombria (i.e., narcisismo, maquiavelismo e psicopatia), nessa conformidade pôde-se acumular evidências iniciais de como, no âmbito do traço, estes se comportam e em que proporção podem explicar as características da inteligência emocional. Sugere-se que estudos futuros repliquem a proposta aqui testada, fazendo uso de outros instrumentos, assim como considerem a inteligência emocional como habilidade, além de uma amostra mais homogênea entre homens e mulheres.