Em uma perspectiva sistêmica, entende-se a morte como um processo transacional que envolve todos os membros da família, considerando tanto a finitude advinda da morte, quanto a continuidade da vida (Walsh & McGoldrick, 1998). As mesmas autoras salientam a necessidade de atentar às repercussões ocasionadas por esses eventos para os indivíduos e para o sistema familiar, incluindo os efeitos imediatos e de longo prazo.
Ao considerar o impacto da perda para a família, Silva (2009) enfatiza que a morte gera mudanças significativas no que tange à vida cotidiana de seus membros. Por consequência, a família precisa aprender que ela nunca mais será a mesma, sendo atravessada por períodos de fragilidade, conflitos, redistribuição de tarefas, eventualmente insegurança financeira, entre outras dificuldades que podem desestabilizar o sistema. A morte rompe o equilíbrio do sistema familiar, sendo que a intensidade da ruptura depende de vários fatores, dentre eles, a posição e a função ocupada pela pessoa que morreu (Brown, 2016). Nesse sentido, a perda de um dos pais ou cuidador primário se apresenta como um difícil e importante desafio, visto que, além da perda daquele que desempenhava funções centrais de provedor dos cuidados, refere-se a perda de uma figura com a qual se tem um vínculo emocional significativo (Walsh & McGoldrick, 1998).
A morte de um dos pais, segundo Leandro e Freitas (2015), se configura como uma das maiores crises da vida que uma criança pode vivenciar, considerando a dificuldade para aceitar a perda de um objeto de amor do qual ela ainda depende para sua sobrevivência, tanto física quanto emocional e psiquicamente. O modo como a criança vivencia o processo de luto depende da forma como esse processo ocorre com os adultos, das informações que a criança possui a esse respeito, bem como, do auxílio que o pai vivo poderá fornecer diante da situação de perda (Leandro & Freitas, 2015). Dessa forma, no caso de morte da mãe, o comportamento do pai influenciará na elaboração do luto pela criança. No entanto, em estudo realizado por Emer et al. (2016), com quatro pais de crianças cujo cônjuge encontrava-se em iminência de morte, os autores identificaram as dificuldades dos pais em falar sobre a morte com seus filhos. Estas dificuldades estavam relacionadas tanto a dúvidas sobre a capacidade de compreensão da criança, quanto a inseguranças dos pais em oferecer suporte às reações emocionais advindas da notícia.
Entende-se que a morte materna apresenta diversas especificidades. Para o pai que fica, inúmeros desafios se colocam, principalmente no que tange à elaboração de seu sofrimento e do sofrimento de seus filhos. A esse respeito, em estudo com 244 viúvos com filhos dependentes realizado nos Estados Unidos, Edwards et al. (2018) destacaram que a adaptação dos pais ao complexo papel monoparental promove um funcionamento mais saudável aos filhos, porém, esse processo ocorre junto ao sofrimento do luto. Além disso, diante da pressão de suprir o papel da mãe que morreu, o pai pode se questionar sobre sua competência parental, aspecto este importante para o seu senso de autoestima. A falta de confiança em si como pais, e especialmente como pais enlutados pela esposa também foi identificada no estudo americano de Glazer et al. (2010), em que participaram quatro mães e dois pais viúvos com filhos coabitantes. Nesse estudo, os participantes percebiam que seus papéis monoparentais eram questionados por si mesmos e por outras pessoas.
Ao considerar as repercussões do luto ao longo da vida dos sujeitos, Fujisaka (2009), em estudo realizado com seis adultos paulistas que perderam as mães na infância, verificou a importância da vivência do luto e das ressignificações relacionadas à morte. A autora percebeu que os participantes procuraram meios de ressignificar a vivência de perda materna, buscando lembranças relacionadas à mãe e maneiras de continuarem vinculados a ela (ver e sentir a presença da mãe mesmo em sua ausência, guardar fotos, guardar objetos, relembrar, recontar histórias). A permanência do vínculo com a mãe falecida não indicava sinal de patologias psíquicas, mas algo que ajudou os participantes a lidarem com a ausência da mãe e a redefinir o relacionamento com ela, integrando-a em suas vidas como figura importante e significativa de suas histórias.
Percebe-se que existe, especialmente a partir das últimas décadas do século passado, uma literatura consistente em psicologia que enfoca as relações e os processos familiares frente à experiência de luto, tendo como duas de suas precursoras e referências Walsh e McGoldrick (1998). Contudo, identifica-se ainda uma lacuna na produção científica no que se refere à experiência de pais (homens) e seus filhos após a morte da mãe. Apesar de algumas pesquisas voltarem-se às crianças enlutadas, isso não ocorre acerca dos pais, possivelmente por ainda se sustentarem antigos padrões, que consideravam a paternidade como pouco implicada nos cuidados emocionais dos filhos.
Por outro lado, são diversas as fontes de informação alternativas (como blogs e textos de aconselhamentos em sites) que abordam o tema da morte de mães e os desafios junto às crianças enlutadas. Assim, verifica-se uma demanda por conhecimento sobre o enfrentamento da morte de mães para pais e filhos. Se faz necessário, então, o olhar aos pais que passam a vivenciar a monoparentalidade em famílias com filhos crianças em contexto de luto a partir da morte das mães. Especialmente, considera-se relevante atentar aos significados construídos nas histórias e vivências familiares para a mãe que morreu, compreendendo que o pai possui uma função importante junto aos filhos na construção e manutenção desta narrativa sobre a mãe. Nesse sentido, este estudo objetivou compreender, através da perspectiva do pai, de que forma a figura materna se mantém presente em famílias com crianças que vivenciaram a morte da mãe.
Método
Participantes
Participaram deste estudo quatro homens, pais de crianças que perderam a mãe, compondo famílias monoparentais a partir da morte da esposa/companheira. Como critérios de inclusão, definiu-se que os pais deveriam ter idade igual ou superior a 18 anos; a esposa falecida deveria ser a mãe da criança e residir com a família anteriormente à sua morte; no momento da morte da mãe, o(a) filho(a) deveria ter até 12 anos de idade; e, por fim, os pais deveriam residir sozinhos com seus filhos.
Os participantes eram residentes de uma cidade do interior do estado do Rio Grande do Sul. Conforme apresentado na Tabela 1, os pais tinham idades entre 33 e 54 anos no momento da pesquisa. Todos possuíam um único filho e descreveram como religião o catolicismo. O tempo desde a morte da esposa variou entre 2 meses e 6 anos.
Medição
Questionário de dados sociodemográficos: instrumento de caracterização dos participantes quanto à idade, escolaridade, profissão, renda e membros da família.
Entrevista narrativa: trata-se de uma entrevista não estruturada (Muylaert et al., 2014), que tem por característica principal a não interferência do pesquisador durante o relato do entrevistado (Ravagnoli, 2018). Segundo a autora, na entrevista narrativa busca-se apresentar ao participante uma questão ampla acerca da temática a ser investigada, não direcionada a respostas pontuais, para que esse o desenvolva da maneira como considerar relevante. Assim, foi retomado o objetivo do estudo, seguido da orientação: “Gostaríamos que você nos contasse livremente a história da família de vocês”.
Desenho com descrição: os participantes receberam uma caixa para levar para suas casas contendo materiais para desenho (folhas de ofício, lápis de cor, giz de cera, borracha e canetas), e receberam a orientação de realizar três desenhos: um sobre a família antes da morte da mãe, um sobre a família no período da morte da mãe, e um sobre a família hoje. Foi disponibilizada uma quarta folha, apresentando-a como desenho livre e opcional, caso os pais desejassem fazer mais uma representação. As folhas continham os seguintes títulos: “Antes da Morte”; “Período da Morte”; “Hoje”, com vistas a nortear os desenhos dos pais. Além disso, foi salientado que os desenhos deveriam ser realizados pelo pai.
Entrevista sobre a monoparentalidade masculina diante da viuvez: consistiu em uma entrevista semiestruturada que teve por objetivo indagar de forma mais direta os aspectos objetivados no estudo, tais como a perda da companheira, e a família e a paternidade antes e após a morte da esposa, bem como, a família hoje.
Procedimento
O presente estudo constitui-se em uma pesquisa descritiva e exploratória, de caráter qualitativo. Foi utilizado um delineamento de estudo de caso coletivo, que, segundo Stake (1994), proporciona conhecer a vivência da realidade, possibilitando discussão, análise e tentativa de resolução de uma problemática extraída da vida real. Vale ressaltar que, conforme Gil (2002), ao utilizar tal delineamento, não se objetiva proporcionar o conhecimento preciso das características da população estudada, mas proporcionar uma visão global acerca da temática, podendo identificar possíveis fatores influenciadores dessa.
A pesquisa seguiu os procedimentos éticos descritos na Resolução 510 de 2016 do Conselho Nacional de Saúde e na Resolução 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia, que dispõem sobre os cuidados éticos na pesquisa com seres humanos (Brasil, 2016, Conselho Federal de Psicologia, 2000). Ademais, a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de ensino de vinculação das autoras, sob número (suprimido para não identificar os autores).
A amostra foi constituída por meio de indicações, o que a caracterizou como uma amostra não probabilística e por conveniência (Markoni & Lakatos, 2002). A coleta de dados foi realizada de forma individual, em dois diferentes momentos e envolveu os seguintes instrumentos: Questionário de Dados Sociodemográficos, Entrevista Narrativa, Desenho com descrição e Entrevista sobre a monoparentalidade masculina diante da viuvez.
No primeiro encontro, os participantes responderam a um Questionário de Dados Sociodemográficos, e a uma Entrevista Narrativa. Ao final da narrativa, os participantes receberam o material para a realização do Desenho com descrição. Nesse tocante, foi solicitado que os participantes realizassem os desenhos no período de uma semana, de modo que, no segundo encontro, os entregassem às pesquisadoras. Assim, no segundo encontro, os pais inicialmente apresentaram os desenhos que realizaram em casa, explicando o que procuraram representar. A seguir, responderam a uma Entrevista sobre a monoparentalidade masculina diante da viuvez. As entrevistas, assim como a descrição dos desenhos foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcrita na íntegra.
Análise de dados
Os dados provenientes das transcrições das entrevistas e da descrição dos desenhos foram analisados conjuntamente a partir da análise de conteúdo de Bardin (Bardin, 2011). Os desenhos foram compreendidos na relação com as verbalizações relacionadas a eles. Considerando-se os dados de todos os participantes, foram estabelecidas categorias temáticas a posteriori, a partir dos objetivos do estudo e dos conteúdos que emergiram das entrevistas e das descrições. Após a definição das categorias temáticas, realizou-se uma análise dos resultados para cada caso, individualmente.
Resultados
Na apresentação dos resultados do estudo, os casos serão analisados de forma individual, visando um melhor entendimento da vivência particular de cada família envolvida. Inicialmente, será feita uma breve apresentação dos casos, retomando características demográficas e a história da família. Em seguida, os resultados serão apresentados a partir das categorias temáticas, sendo estas: 1) Um lugar idealizado e 2) A mãe na família que segue.
Família 1: Rodrigo, Ester e Gustavo
Rodrigo e Ester estavam juntos há cerca de dois anos, quando a gravidez inesperada trouxe Gustavo à família. Três meses após o nascimento do filho, Ester contraiu leptospirose e, posteriormente, recebeu o diagnóstico de lúpus. Após um ano e seis meses com a doença, foi a óbito, devido à uma insuficiência respiratória. A morte ocorreu quando o casal tinha quatro anos de relação, e o filho, dois anos e dois meses. À época da pesquisa, a morte de Ester havia ocorrido há seis anos, e Rodrigo e Gustavo possuíam 33 e oito anos de idade, respectivamente.
Um lugar idealizado. Ao longo da narrativa, a figura da esposa foi referida por Rodrigo através de diversas descrições positivas: “Uma pessoa fora do comum, muito pacienciosa, muito calma, muito tranquila. Ela foi a melhor pessoa que eu conheci”. O que dava ao pai a sensação de não caber em palavras: “Não tem nem como descrever assim com palavras. Se vocês pudessem ter conhecido, vocês entenderiam”. As características maternas de Ester também foram evidenciadas: “Era totalmente cuidadosa, caprichosa, álbum de foto, (...) questão de roupinha, de organização (...) e amava ele indescritivelmente também”. Rodrigo relatou que Ester, já enfrentando situações de internações e tratamento, sem conseguir trabalhar, mantinha-se a realizar as atividades da casa e os cuidados com o filho, destacando sua força: “Ela era teimosa pra isso, não queria ficar dependente”.
Através de uma narrativa positiva sobre Ester, Rodrigo buscava reforçar as lembranças familiares relacionadas a ela, entendendo como importantes na formação do caráter e no desenvolvimento do filho: “Eu consigo manter viva a lembrança na cabecinha dele da mãe dele. E eu quero que isso esteja sempre presente, porque ela era uma pessoa maravilhosa, tanto por foto, por vídeo, com as coisas que eu conto”. Essa imagem sustentava-se nas conversas com o filho, nas quais a mãe era descrita como um exemplo a ser seguido: “A mãe dele era uma pessoa muito boa. Foi a melhor pessoa que eu conheci. Eu quero que ele seja que nem ela. Aí ele fica orgulhoso”.
A mãe na família que segue. Com o passar do tempo e o desenvolvimento de Gustavo, foram surgindo novas narrativas e novas formas de se relacionar com a figura da mãe, que, além de estar presente em fotos, também passou a ser mencionada pelo filho: “Três anos e meio, quatro anos e pouco, ele começou a falar na mãe dele. Mas eram coisas pontuais assim”. Aproximadamente aos quatro anos de idade, a partir de situações vivenciadas na escola, como o dia das mães e a interação com mães dos colegas, Rodrigo referiu que Gustavo passou a demonstrar uma melhor compreensão acerca da morte da mãe, associada a sentimentos de tristeza. A falta da mãe, segundo Rodrigo, manifestou-se em um momento ápice da narrativa familiar, o dia que o filho chorou “do nada”: “Encheu os olhos de lágrima e começou a chorar: ‘Porque eu sinto falta da minha mãe’. Começou a falar, e chorar”; “Ele entende que a mãe dele faleceu, que ela tá no céu. Ele me fala que ele sente muita falta. Hoje ele fala mais livremente. Ele consegue conversar bem tranquilamente”. O pai referiu buscar respeitar o tempo e o desejo do filho em relação aquando falar sobre a mãe, mas salientou a importância de manter a imagem dela presente: “Não forço nada assim, sabe, quando ele quer conversar, eu deixo ele conversar. Mas eu sempre falo na mãe dele, no dia a dia, tento falar, né. A foto pra ele sempre lembrar, porque o visual é importante”. As orientações recebidas pela psicóloga que acompanhou Gustavo após a perda mostraram-se como uma fonte de confiança nessa condução do pai junto ao filho.
A presença da mãe no cotidiano do filho pareceu associada à vivência do pai e essa lembrança no seu próprio dia a dia: “Eu penso nela todos os dias. Eu falo da mãe dele bastante: ‘Tua mãe isso, tua mãe aquilo’”. Nos momentos de educar o filho, a figura da mãe também era retomada: “Eu digo: ‘Tu acha que a tua mãe tá gostando disso?’ (...) E ele fica bem sentido, porque por mais que ela não esteja fisicamente, ela é a mesma coisa que comigo”. Essa presença foi representada no desenho de Rodrigo, que contou que, enquanto desenhava, foi questionado pelo filho sobre a presença da mãe: “Ele falou: ‘onde é que tá a mamãe?’. Daí ele ‘vamos fazer uma estrelinha?’” (Figura 1). A presença também foi reforçada pelo pai naquele momento, ao explicar: “O papai tá aqui, e a mamãe tá lá no céu, tá sempre cuidando de ti”. O pai também identificou as semelhanças entre mãe e filho, e interpretou como uma constância desta presença materna em suas vidas: “Ele tem algumas coisas bem características dela, tem algumas coisas que é da mãe dele e ninguém tira isso dele”.
O pai referiu, ainda, o contato do filho com objetos representativos da mãe, indicando uma forma de manter-se próximo a ela: “Agora ele tá usando uma corrente que a vó dele deu, que era da mãe dele. Não tira aquela corrente pra nada”. A satisfação em usar em seu próprio corpo um objeto que pertencia a sua mãe remetia a uma forma de mantê-la presente e em contato consigo, como uma possível materialização da ligação entre o filho e a mãe. Da mesma forma, o contato com sua imagem e o desejo de ver a mãe nas fotos foram mencionados:
Aí ele bota a foto dela na cabeceira da cama dele. E tudo é algo relacionado à mãe dele. Às vezes eu estou mexendo em fotos e aparece, “Pai, volta ali, deixa eu ver minha mãe”. Ele pede, ele fica um tempo olhando.
Família 2: Edson, Angélica e Luana
O participante Edson relatou que conheceu a esposa, Angélica, ainda na infância. Na adultez, o relacionamento teve continuidade e, após o casamento, tiveram a filha, Luana. O adoecimento de Angélica teve início seis meses após o nascimento da filha. O casal se relacionava há 25 anos, e a filha vivenciou a morte da mãe aos 12 anos de idade, sendo que por 11 anos a mãe fez tratamento para o câncer. No momento da pesquisa, Edson possuía 47 anos e Luana, 12 anos de idade. Transcorridos apenas dois meses da morte de Angélica, a família se encontrava em pleno processo de adaptações: “Agora as consequências que vão vir, né, as dificuldades, felicidade, tudo junto. Aí tem que estar sempre junto com ela (filha)”.
Um lugar idealizado. Ao descrever Angélica, Edson enfatizou seu companheirismo ao longo do tempo que viveram juntos: “Além de mulher, era companheira (choro), amiga, tudo, (...) em todos esses 25 anos”. Ele concluiu que a imagem que ficou da esposa para a família foi sua “força de vontade de viver”, explicando que esta superou as previsões de vida dadas pelos médicos. Angélica foi lembrada pelas brincadeiras feitas em família e também com relação à sua dedicação com a educação e orientação ao futuro da filha: “Definiu, assim, uma meta pra Luana: ‘Tu vai estudar isso, tu não vais fazer aquilo’”.
A mãe na família que segue. O pai parecia entender ser importante não forçar a filha a falar sobre a mãe, ao mesmo tempo em que percebia a importância de compartilhar os sentimentos um com o outro: “Hoje de tarde ela tava jururu (triste) e daí eu perguntei o que ela tinha, saudade, aí, se puxar muito, começa os dois (a chorar)”. Mesmo que a família tenha passado por um longo processo de adoecimento da esposa, buscando se preparar para o momento da morte dela, essa preparação não protegeu a família do sofrimento do luto: “A gente estava preparando ela (filha). Mas acha que tava preparando, né, porque não adianta. Eu estava preparado há dez anos já, mas hoje qualquer coisinha: saudade”; “Tá difícil pra ela. Tu vê que ela não quer demonstrar, mas demonstra (choro). Principalmente de noite, né, que estamos só nós dois”. Ressalta-se que, no momento da coleta de dados, Luana estava em acompanhamento psicológico.
Edson referiu, ainda, que a filha Luana conversava com ele sobre a presença da mãe em hábitos da família, mencionando as lembranças que traziam saudade: “Sobre a morte, ela não pergunta muito assim, ela diz: ‘É, tu faz isso aqui. Tu ia ver se a mãe tivesse aqui, já ia tá batendo boca com nós’, (...) porque a gente às vezes, quando vai puxar assunto, começa os dois a correr lágrima, daí nós já paramos”.
A mãe parece se fazer presente na interação pai-filha, “batendo boca” para que eles não se sentissem tristes. Frente aos desafios e novas adaptações, a família buscava manter as características de amizade, união e companheirismo que já lhes descreviam antes da morte da mãe: “Era a maior felicidade né, nós três juntos. (...) Tá sempre a família unida, feliz”. Da mesma forma, mantinham-se alguns hábitos que eram realizados com a mãe: “Seis e meia ela (filha) sempre me acorda pra nós ir junto na feira (...) a gente vai lá, tomar café, já faz anos que a gente faz, aí continuamos”. Além disso, na casa da família, o pai referiu que objetos e fotos de Angélica eram mantidos presentes, de forma natural: “Tem bastante coisa, isso é vida normal”.
Em relação à filha, Edson indicou conduzir seu papel paterno junto à Luana de acordo com as orientações de Angélica, que solicitava: “Ser o amigo melhor possível, (...) (a filha) não manter segredo comigo, né. Se tiver assunto de coisa de mulher, com criança, adolescente pode me perguntar, alguma coisa de amiga ou amigo”. Exemplificou que essa busca por proximidade na relação com a filha já havia sido posta em prática na menarca da filha, antecipada pelo processo emocional do luto: “Ela ficou meio constrangida, daí eu chamei ela, conversamos. (...) Aí me abraçou lá e me mostrou, (...) me pediu pra ir na farmácia”, “Daí ficou bem melhor assim, porque o pai é homem, tem medo assim de expor. Daí eu digo: ‘Não, vamos fazer um diálogo bem aberto’”.
As orientações de Angélica quanto ao estudo e ao futuro da filha mantinham-se como um objetivo da família, e como um importante legado: “A princípio agora é levantar a cabeça, puxar ela a estudar. Preparar ela pra uma faculdade e pronto. (..) A Angélica que doutrinou ela assim. Ensinou pra seguir com o estudo”. Em seu desenho livre, Edson expressou o que considerava a realização do desejo de Angélica, que seria ver a família, composta agora por pai e filha, divertindo-se sob os cuidados da mãe, representada no desenho como um anjo: “O que a mãe (esposa) queria que nós fizéssemos. Esses aqui somos nós no parque. Daí eu desenhei o barco viking que a Luana gosta. (...) E ela lá em cima, cuidando nós. Não sei, tá de anja” (Figura 2). Edson referiu que, enquanto desenhava, a filha olhava a atividade do pai e fez uma sugestão: “Única coisa que ela disse: ‘Faz uns raios ali, de luz’”.
Família 3: Oscar, Iara e Camila
Oscar relatou que, após diversos desencontros de cidades entre o casal e dez anos de relacionamento, se estabeleceram juntos a partir do nascimento da filha, Camila. Quando Camila estava com dois anos, foi descoberto o câncer de mama de Iara, já em estágio avançado, levando-a à morte após dois anos de tratamento. No momento da morte da mãe, Camila tinha 4 anos e o casal se relacionava há 14 anos. À época da entrevista, havia transcorrido dois anos e um mês da morte da mãe, Oscar tinha 48 anos, e Camila, sete anos.
Um lugar idealizado. Oscar não relatou características de Iara e não demonstrou de que forma a imagem dela se mantinha na família. As características do casal e da família foram evidenciadas através da percepção de uma ruptura na história familiar com a doença da esposa: “Era um casal feliz, era uma família feliz assim. E durante cinco anos nós vivemos isso, até ter a notícia lá de que estava doente”. Percebendo a gravidade da doença, os pais conduziram Camila a um acompanhamento psicológico: “porque a gente já sabia que esse momento (morte) ia chegar, não esperava que fosse tão logo”. No que tange ao processo de luto e enfrentamento da perda por Camila, o pai relatou: “Ela entendeu bem assim, a morte né, que a pessoa morreu e não vai voltar. Então, ela não perguntou mais”. Evidenciou-se a evitação das lembranças referentes à mãe: “Parece que, não é que ela tenha esquecido, talvez ela não queira lembrar, né”; “Parece que ela quer evitar isso tudo. É um assunto que não deixa ela confortável”.
Esta evitação foi identificada também no próprio pai, ao longo das entrevistas e através dos desenhos. Frente à solicitação de representar através de um desenho o período da morte de Iara, Oscar desenhou a figura de uma ambulância afastando-se, sem incluir nenhuma representação humana em sua produção (Figura 3), descrevendo a cena como: “É a dificuldade que a gente passava quando dava várias convulsões (em Iara) e tinha que acionar o SAMU1”.
A mãe na família que segue. Após a morte da mãe, a família pareceu encontrar dificuldade em se relacionar com as lembranças que remetiam a ela e ao período de seu adoecimento. A mudança da família para um novo local de moradia esteve associada à busca por amenizar o sofrimento ligado à falta da mãe que ficava mais explícita no ambiente anterior: “Sempre que você vai pra algum lugar e volta tinha essa essas lembranças, de chegar e não ter ninguém”.
Tudo no apartamento lembrava dela, né, por exemplo, a posição onde ficava a cadeira dela, até a questão dos móveis. Depois que a gente mudou, foi perdendo um pouco assim. (..) Não tem a presença dela naquele apartamento. Então, isso acho que ajudou um pouco, ou ajudou bastante”;
Além disso, o participante mencionou sobre o sofrimento associado ao convívio com seu adoecimento: “Cadeira de roda, cadeira pro banho, tinha SAMU o tempo todo (...), qualquer barulho no meio da noite podia ser os médicos chegando”.
Na nova moradia de Oscar e Camila, o pai optou por manter fotos de família, com a presença de Iara: “Nos corredores, tem várias fotos, a gente fazia fotos assim todo ano”. O contato com as fotos e lembranças de momentos juntos pareciam desencadear os poucos momentos em que pai e filha conversavam sobre Iara. No entanto, segundo o pai, Camila “só fala quando é inevitável, quando, sei lá, mostra alguma coisa, alguma foto, ou lembra de alguma coisa que estávamos todos juntos, né. Espontaneamente ela não fala”.
Por outro lado, a família buscou manter as atividades que eram de costume antes da morte de Iara e preservar inalteradas áreas de funcionamento familiar e da vida da filha prévias à morte da mãe: “A gente tentou manter o que já vinha sendo feito, (..) tentar manter uma normalidade. Nesse período aí, eu também imaginava que quanto mais ela (filha) tivesse ocupada com atividades, menos tempo teria pra ficar em casa”. Tal busca por estabilidade foi também representada nos desenhos referentes o período anterior à morte da esposa e ao momento atual. Acerca do desenho que ilustra o período atual, Oscar referiu “Eu e a Camila na praia. Nós fomos nós dois, porque a gente tentou manter aquela rotina, de fazer os passeios” (Figura 4).
Uma certa busca por preservar a família com a presença da mãe, também pode ser identificada quando Oscar referia-se ao futuro de sua família associado à possibilidade de retomar, através de um novo relacionamento, o arranjo familiar anterior, com uma mulher de referência para a filha: “Hoje a gente tá bem, mas é uma família pequena. (..) Eu espero (para a nossa família) é encontrar uma pessoa pra mim e que possa ser de referência pra Camila”. Ao encontro disso, um recente relacionamento de Oscar (há cerca de um mês, à época da realização da pesquisa) estava trazendo um novo convívio, e a representação da família maior que desejava: “Agora é que tem uma namorada, que ela tem duas meninas, e a Camila se dá muito bem com elas. Então, nos finais de semana, a gente tem passado todo mundo junto”.
Família 4: Gilberto, Lívia e Letícia
Gilberto e Lívia, após quatro anos de relacionamento, tiveram a filha, Letícia. Quando a filha tinha dez anos de idade, foi diagnosticado o câncer de mama de Lívia, adoecimento que durou cerca de dois anos. A mãe morreu quando Letícia tinha 12 anos de idade, e o casal se relacionava há 14 anos. No momento da entrevista, cinco anos e oito meses haviam se passado desde a morte de Lívia, e Gilberto e Letícia tinham 54 e 17 anos, respectivamente.
Um lugar idealizado. A narrativa sobre Lívia, relatada por Gilberto, evidenciou o “ser mãe” como uma característica positiva marcante de sua esposa: “Tinha essa peculiaridade, ela abraçou a missão de mãe, além do amor dedicado. (...) Uma mãe íntegra, com amor, com dedicação, dosada, ponderada”; “Lívia e Letícia eram muito diferentes no amor (entre elas), da mãe, do amor e dedicação da mãe. Lívia foi muito maternal”. Essa representação da maternidade como uma missão se manteve associada à mãe em todos os períodos: “Não vi coragem igual, porque ela também se manteve mãe até o final. Até o último suspiro, ela se manteve mãe”. Ademais, Gilberto referiu respeitar e preservar o lugar da mãe na família mesmo após sua morte: “Um respeito, que mamãe é mamãe. Mantém aquela figura ali”.
O pai referiu que a família buscava lembrar de Lívia como “Ela gostaria de ser lembrada: com saúde, bonita, exuberante como sempre foi”. As características positivas de Lívia foram destacadas também no período em que a doença estava avançada. Dessa forma, Lívia foi descrita por suas percepções especiais, seu hábito de tomar chimarrão2, bem como, por seu amor: “Ela sempre lúcida, sempre com aquele dom de perceber as coisas, pequenas particularidades, pequenas características das pessoas, e se houvesse uma mudança, ela notava”; “Ela adorava ficar sentada com o chimarrão. Ela tinha que apoiar um bracinho no outro pra tomar o chimarrão dela”; “Os últimos movimentos que do dia a dia dela lembrava, que ela mexia a mandíbula pra me falar que me amava”.
A mãe na família que segue. Ao lembrar do período de doença até o óbito de Lívia, Gilberto descreveu como “Dois anos de fé, de esperança, bem vividos, bem aproveitados, sempre com um sorriso no rosto, sempre com espírito de luta”. Segundo Gilberto, o modo de Lívia enfrentar o adoecimento e a morte balizaram o processo de luto familiar e as narrativas sobre a mãe: “Foi intenso, mas foi um sofrimento silencioso. (...) Porque a Lívia era discreta até pra sofrer, e ela nos ensinou isso, a sofrer em silêncio. Resignação, como dizem. Aceitar aquilo ali. (...) Um blindou ao outro. Eu blindei a Letícia e a Letícia me blindou”.
Ficamos quase um ano, dois, um poupando o outro de falar, porque a dor era intensa. Só que, nem eu poderia chorar, nem a Letícia queria chorar, pra gente não se mostrar triste um para o outro.
Com o tempo, Gilberto e Letícia sentiram mais aptos a conversar sobre os sentimentos associados à morte da mãe, e tornou-se possível compartilhar lembranças sobre a mãe.
Como se fosse um tecido cicatrizado, o pesar foi se desfazendo e a lembrança veio aos pouquinhos e a liberdade de falar as coisas, a mamãe gostava disso, gostava daquilo, a música que a mamãe gostava, mamãe sempre brigava comigo. É, então isso veio naturalmente, com o tempo.
A partir de então, a mãe parecia ter uma presença constante na narrativa familiar: “A Lívia se mantém presente dentro das nossas relações, diariamente. (..) Letícia traz muito disso: ‘Ah mamãe sempre falou isso’”. As lembranças de Lívia também se faziam presente em momentos que a representavam, como “datas, histórias, fotos, lembranças, fé”.
Ao considerar a relação pai-filha, os ensinamentos de Lívia também se faziam presentes relacionados à importância de ambos seguirem unidos como família: “Passando ensinamentos pra Letícia, de que, se ela faltasse, a Letícia ia ter que seguir o caminho junto comigo. (..) Lívia orientava ela muito sobre a possibilidade de ela ter que nos deixar mais cedo, né, e que eu teria que seguir em frente com a Letícia”.
Além disso, Gilberto parecia sentir-se apoiado em sua função como pai mesmo após a morte de Lívia: “Antes de morrer eu falei: ‘Lívia, e aí? Como é que eu vou fazer agora, eu e Letícia sozinho? Ela falou: ‘É só pensar em mim, que eu vou estar presente junto com vocês’”. Ao descrever os desenhos realizados, Gilberto destacou como característica da família a noção de constância. A esse respeito, ao comparar o desenho referente ao período da morte de Lívia e o da família atual (Figura 5), identifica-se presentes em ambos os elementos que remetem ao trabalho do pai e ao estudo da filha, bem como, o hábito de tomar chimarrão da família. Tais aspectos indicam o desejo por dar continuidade à família e à identidade familiar após a morte de Lívia.
Discussão
Dados os resultados, percebeu-se que as mães ocupavam um lugar idealizado nas narrativas apresentadas pelos participantes do estudo, de modo que os pais preocupavam-se em preservar e transmitir uma imagem positiva da mãe aos filhos. A esse respeito, Dantas (2008) refere que a morte retira a pessoa da dimensão material e esta pessoa passa a habitar de forma metafísica e subjetiva a realidade daqueles que ficam, os quais se responsabilizam pela construção desse espaço. Os mortos não têm direitos de personalidade, uma vez que a morte a extingue, mas a memória admite que as marcas dessa personalidade findada continuem e, inclusive, sejam transmitidas aos herdeiros como um patrimônio moral.
Fujisaka (2009) e Hispagnol (2011) já destacavam a idealização dos familiares mortos como fenômeno comumente presente nas famílias enlutadas. Reservar este lugar ao familiar morto pode ser compreendido como uma forma de encontrar significado à vida que esta pessoa teve, e mesmo de atribuir significado à sua morte. No presente estudo, essa construção e manutenção da imagem materna para os filhos apareceu como uma preocupação dos pais, explicitada de modo especial no caso da Família 1. Nesse caso, Ester, mãe de Gustavo, era apresentada na fala do pai frequentemente por meio de suas qualidades e histórias de alegria, para que fosse assim reconhecida. Possivelmente, isso se relaciona com o fato de a morte da mãe ter ocorrido quando Gustavo ainda estava na primeira infância, o que levaria à preocupação de que a mãe pudesse ser esquecida e esse lugar materno esvaziado, já que o filho teve pouca convivência com ela.
Os resultados mostraram que as debilidades trazidas pelas doenças das mães eram postas em perspectiva após sua morte, frente à manutenção de suas características pessoais positivas e enaltecimento de força e coragem. Da mesma forma, no estudo de Peruzzo et al. (2007), que analisou depoimentos em comunidades virtuais criadas com o fim de homenagear o falecido, os autores constataram que a maioria dos participantes caracterizava a pessoa morta por meio de aspectos positivos, frequentemente idealizando-a. Segundo os autores, tal idealização estaria associada a um desejo do enlutado em absolver a pessoa morta de suas falhas.
Quando essa concepção acerca da mãe que morreu é transmitida de uma geração a outra, ou seja, do pai para o filho, pode-se compreendê-la como um legado familiar. Segundo Falcke e Wagner (2005), os legados familiares definem o modo como se revelam para as gerações posteriores os principais aspectos da família atual e o que se espera que tenha continuidade. As autoras explicam que o processo de legado consta de: identificar o que quer transmitir (clarificação e destilação); e, posteriormente, encontrar uma forma de transmitir esse “pacote” de temas, valores e regras para a geração seguinte. No presente estudo, os ideais provenientes da mãe, como a bondade, a inteligência e o equilíbrio, eram passados em legados aos filhos, como valores a serem seguidos.
Na pesquisa realizada por Fujisaka (2009), com adultos que perderam a mãe na infância, constatou-se que a maioria das crenças relatadas pelos participantes remetia a uma idealização da imagem da mãe, ou uma idealização do relacionamento que poderiam ter construído se ela estivesse viva. Nesse sentido, Harris (1995) afirmou que as crenças sobre os pais após sua morte geralmente trazem conforto às crianças, sendo necessárias em meio à insegurança de seu novo mundo, e podem ser expressão da falta que sentem. A esse respeito, além dos valores pessoais atribuídos à mãe, os legados referentes à importância do estudo na vida dos filhos eram também uma forma de encontrar sentidos e conduzir a vida após a perda experienciada. Afinal, seguir com a vida e objetivar o sucesso escolar eram compreendidos como formas de também cumprir com os desejos da mãe.
Ainda sobre a importância da narrativa oferecida aos filhos acerca das mães, em um dos casos acompanhado e relatado por Harris (1995), uma mulher adulta descrevia sua mãe como uma mulher muito feliz, extremamente bonita, mãe e esposa maravilhosa, como uma princesa em um conto de fadas. Porém, estava consciente que a morte ocorrida em sua infância fez com que criasse para si uma imagem idealizada e irreal da mãe. Ainda assim, a filha gostaria de continuar lembrando-a dessa maneira, pois tal representação lhe trazia o conforto que necessitava em muitos momentos. Contudo, considera-se importante refletir acerca das possíveis repercussões do ideal de perfeição materno na vida dos filhos. A esse respeito, sabe-se que as crianças precisam ser expostas às falhas dos pais, que se apresentam como pessoas reais e sujeitas a erros. Além disso, Walsh e McGoldrick (1998) alertam que a idealização excessiva do morto pode dificultar ao sujeito a formação de outros relacionamentos. A isso, pode-se acrescentar dificuldades em relação a identificação do filho com a figura materna e à constituição de uma identidade que corresponda a esse ideal.
No relato de alguns pais, foi identificada também a crença de uma constante supervisão materna ao filho, similar a uma onipresença. A noção da mãe como esta figura que tudo vê e tudo observa, embora possa trazer conforto ao filho em diferentes situações, pode também amplificar o grau de exigência e cobranças experienciadas sobre criança, exacerbando o sentimento de culpa. Pode, ainda, dificultar o processo de diferenciação dos filhos em relação aos pais, e a construção de espaços de privacidade e independência em relação a eles.
Associado ao modo como a mãe é descrita e às narrativas possíveis a seu respeito na família, ressalta-se a importância de que sejam autorizadas nas famílias a expressão dos diversos sentimentos associados à mãe, além de uma estimulada uma livre comunicação entre os familiares a seu respeito. Fujisaka (2009) aponta que as crenças sobre a mãe falecida, sobre sua história e a idealização dessa figura, as quais surgem na infância, tendem a acompanhar o sujeito até a idade adulta, tornando-se fundamental atentar a esse período de desenvolvimento e ofertar à criança a segurança para expor seus sentimentos. Todas as famílias do presente estudo buscaram apoio de profissionais da psicologia durante o processo de luto das crianças, podendo-se pensar acerca do zelo dos pais para com seus filhos. Ao mesmo tempo, destaca-se que as condições financeiras dos pais podem ter favorecido o acesso a tal serviço, condição esta que não corresponde à realidade de muitos outros pais que vivem em condições socioeconômicas desfavoráveis. Nesse sentido, independentemente do contexto de vida, Emer, Moreira e Hass (2016) referem a necessidade de ofertar suporte às famílias enlutadas com crianças, pois consideram fundamental instrumentalizar os familiares para abordarem a questão da morte com as crianças.
Os aspectos que marcam a presença da mãe na relação familiar diferiram ao longo do tempo, de modo que novas formas de se relacionar e representar a mãe acabaram por surgir. Assim, identifica-se que existe uma constante construção e reconstrução narrativa acerca da mãe na relação familiar. A presença da mãe nos diálogos pai-filhos(as), nas menções em situações cotidianas que se associavam à mãe, as fotos e as histórias foram apontadas pelos pais como meios por meio dos quais se perpetuava o lugar materno junto da família.
Os resultados também indicam que as construções possíveis sobre a mãe e a sua presença nas narrativas familiares se modificaram junto ao desenrolar do processo de luto e da elaboração dos sentimentos envolvidos. Para a família de Gilberto (Família 4), o período inicial após a morte da mãe foi caracterizado como de dificuldade em entrar em contato com as lembranças que remetiam a ela. Já para a família de Edson (Família 2), embora fosse possível incluir a mãe nos diálogos familiares, tais momentos eram interrompidos pela forte comoção associada. Estes fatores relacionados ao tempo estão de acordo com a visão clínica de Silva (2009), a qual aponta que nos primeiros meses o sofrimento ligado à saudade é intenso. A autora refere, ainda, que famílias com mais tempo de perda relatam que o sofrimento vai amenizando ao longo dos anos, enquanto a saudade aumenta, indicando haver uma transformação na qualidade dos sentimentos em relação à ausência, bem como, que a perda sempre será lembrada. A acomodação da perda, segundo Glazer et al. (2010), possibilita à família o entendimento de que eles têm a capacidade de sobreviver. Esse processo de acomodação requer a disposição de percorrer processos de sofrimento decorrentes do luto para construir um novo normal.
Alguns estudos na área do luto têm retratado a manutenção e continuidade do vínculo com a pessoa perdida, observando que o processo de luto não implica na busca pelo fim, pela quebra do relacionamento com o morto, e sim, a redefinição da relação e a incorporação dessa na estrutura de vida do enlutado (Fujisaka, 2009). Os resultados encontrados por Luna (2019) em estudo com três homens enlutados pela morte da esposa demonstraram, no mesmo sentido da presente pesquisa, que não houve uma ruptura nos laços, e sim, uma reestruturação da relação de forma simbólica, mesmo na ausência física.
Ainda sobre a comunicação familiar acerca da mãe e das lembranças a ela associadas, identificou-se que, diferentemente dos demais, entre Oscar e Camila (Família 3) ainda evitava-se falar sobre a mãe, Iara. Nesse sentido, cabe ressaltar que existe uma tendência social de acreditar que o melhor é esquecer da morte e do morto, para poder seguir em frente com a vida (Fujisaka, 2009). Entretanto, Walsh e McGoldrick (1998) referem que quando as famílias podem se reunir e compartilhar a experiência de sofrimento, mudanças muito positivas costumam acompanhar o luto, fortalecendo a unidade familiar e todos os seus membros.
Todos os participantes relataram manter, em seus lares, fotografias que retratavam a mãe. Essa presença é uma afirmação de que a mãe pertence à história que ali continua. Além das fotos expostas, os momentos de rever álbuns ou fotos no computador foram formas encontradas pelas famílias de conectar-se com as lembranças e de falar sobre os sentimentos associados à mãe e à sua morte. Conforme Gouveia e Montani (2006), a fotografia detém o curso do tempo, pois o espaço fotográfico é um espaço capturado: sabe-se que o ausente está presente, mas, fora da fotografia, o ausente é recriado no imaginário do observador.
Gouveia e Montani (2006) referem também que mesmo na ausência de signo, através do que se vê na fotografia, é possível, pela ativação de seu imaginário e repertório, construir toda uma trama de fatos e, assim, interpretar a imagem visual. No caso do filho Gustavo (Caso 1), que perdeu a mãe na primeira infância, havia, segundo o pai, sua solicitação de olhar as fotos de momentos que ele não presenciou. A ligação com a mãe foi evidenciada nesse caso também por meio da representação material, através do colar usado pelo filho, que pertencia à Ester. Rodrigo reafirmou esta ligação, ao defender a semelhança física do filho com a mãe.
A presença da mãe na relação entre pai e filho(a) também se referiu às orientações e exemplos maternos em vida. Os pais referiram que este havia sido um assunto sobre o qual conversaram com suas esposas antes de sua morte, indicando certa preocupação das mães em fomentar a proximidade na relação pais-filhos(as). Tais orientações pareciam que ainda guiavam os pais nesse sentido. Ao considerar a presença das esposas em suas condutas como pai, Luna (2019) explicou que a transição do papel de pai casado para pai viúvo envolve essa retomada dos vínculos afetivos com a esposa, bem como, as vivências emocionais da doença e morte, para então, “seguir em frente”.
No que tange às rotinas e hábitos familiares, os resultados demonstraram a continuidade nas atividades e passeios realizados por pais e filhos, buscando a manutenção de tradições que tinham junto às mães. Por meio de tais atitudes o amor e zelo que as mães tinham pelos filhos pareciam integrar-se às relações e aos hábitos da família. A esse respeito, Anderson (2016) reforça que, embora a manutenção de rituais e rotinas deixem de ser relevantes para muitos pais por não considerarem mais a existência de uma família “real”, manter tais características é especialmente importante para as crianças, “reassegurando aos filhos que a família deles também é ‘normal’” (p. 141).
Ao mesmo tempo, embora seja positivo buscar preservar áreas da vida dos filhos, tais como a vida escolar, é importante também que a família consiga ter flexibilidade e colocar em perspectiva as lembranças e tradições que perpetuam a mãe na família, com vistas a investir em outras relações e projetos de vida (Walsh & McGoldrick, 1998). No caso de Oscar (família 3), ao passo que se investia na continuidade das tradições, verificou-se uma tentativa de esquecer a perda da mãe, ao deixar para trás o apartamento que evocava lembranças dela e do período de adoecimento. Assim, destaca-se que a dificuldade de relacionar-se com a realidade da morte repercute em uma dificuldade de flexibilizar a modificar a vida que segue após a morte. Nesse sentido, salienta-se a necessidade da flexibilidade familiar, com vistas à adaptação a períodos de crise. Walsh e McGoldrick (1998) esclarecem que a necessária adaptação após a morte do familiar não significa uma resolução no sentido da aceitação completa e definitiva da perda. Ao contrário, tal adaptação envolve a descoberta de maneiras de colocar a perda em perspectiva e seguir em frente com a vida.
Considerações finais
Esse estudo pôde alcançar a narrativa de pais sobre suas famílias, entendendo como mantém a presença da mãe junto à família posteriormente à sua morte. No que tange aos procedimentos de coleta de dados, considera-se que foi de grande valia a realização de dois encontros com cada participante, sendo o primeiro para a realização da entrevista narrativa e o segundo para a descrição dos desenhos e realização da entrevista semiestruturada. Na visão das autoras, a entrevista narrativa possibilitou liberdade para os pais contarem os fatos da sua forma, sem interferências dos pesquisadores, destacando aqueles aspectos que eles próprios consideravam relevantes para o tema. Além disso, constituiu-se em um importante momento para que se estabelecesse uma relação de confiança entre participante e pesquisadora. Ainda sobre os instrumentos de coleta de dados, o uso dos desenhos como “tarefa de casa” também foi compreendido como um grande facilitador da comunicação pais-pesquisadoras, visto que, por meio deles, os pais puderam apresentar de modo gráfico e, em alguns casos, mais livre, a representação da narrativa que haviam contado. Além disso, esta técnica serviu como aquecimento para a realização da entrevista semiestruturada, uma vez que auxiliou os pais a refletirem sobre o tema e retomar o contato com ele ao longo da semana entre os encontros. Considera-se a importância o emprego de diferentes formas de acessar gradualmente os participantes, tanto em função do zelo necessário ao abordar um tema tão delicado e caro aos pais como a morte de sua esposa, quanto para favorecer a expressão emocional de homens, que, historicamente, não são estimulados a isso em nossa cultura.
Vale, ainda, atentar que todos os participantes que foram contatados aceitaram participar da pesquisa. Além disso, mencionaram às pesquisadoras sentirem-se beneficiados pelo momento de relembrar e refletir aspectos importantes de suas histórias familiares. Alguns expuseram, também, curiosidade em saber a história ou conhecer outros pais viúvos. Esses fatores indicam o interesse desses pais em elaborar e compartilhar suas vivências em um ambiente seguro e ético. Assim, infere-se a importância de ações voltadas à saúde mental de homens viúvos, destacando-se, possivelmente, a riqueza de estratégias de intervenção grupais.
Nesse tocante, percebe-se a importância de a família permitir-se entrar em contato com a realidade da morte, ausência, sofrimento e lembranças, a partir daí podendo encontrar os novos espaços para a pessoa morta em suas vidas e em sua história. Dessa forma, considera-se fundamental que os profissionais da psicologia possam aproximar-se da temática a fim de auxiliar as famílias com que trabalham nesses processos de significação da morte.
Ainda, como limitação do estudo e como indicação para pesquisas futuras, aponta-se a relevância de acessar também a narrativa dos filhos sobre a mãe. Sugere-se, então, que novos trabalhos venham a atentar para os lugares mantidos nas famílias de pessoas importantes que morreram, destacando-se as crianças que perderam algum dos pais, pois dependem, mais que os adultos, das narrativas familiares oferecidas à elas para construir ou manter uma relação com essas figuras primordiais de suas vidas.