Na adolescência ocorrem mudanças sociais significativas, relacionadas às demandas e expectativas concernentes ao comportamento do adolescente, assim como à ampliação de possibilidades e de oportunidades de experiências que se lhes apresentam (Branje, 2018). Tudo isso faz com seja uma etapa caracterizada por certa vulnerabilidade, envolvendo manifestação típica de certas condutas antissociais exploratórias, que podem se tornar de risco, para si (como o uso abusivo de substâncias psicoativas) e para os outros (como agressividade e violência, no plano interpessoal) (Zappe et al., 2018). Alguns adolescentes, contudo, podem se engajar de modo mais preocupante em condutas antissociais, apresentando uma manifestação atípica, seja pela precocidade, seja pela frequência e/ou gravidade das condutas de risco, como função de uma exposição mais significativa a fatores de risco, dentre os quais experiências negativas (adversidades nos contextos de socialização) (Bazon et al., 2011).
A Teoria Geral da Tensão (TGT) propõe que as condutas antissociais se constituem em estratégias de enfrentamento (coping), para lidar com situações negativas/estressantes, associadas a certas experiências relacionais denominadas fontes de tensão, sendo, uma delas, a presença de estímulos negativos (Broidy & Agnew, 1997; Agnew et al., 1996). O coping ilegítimo/antissocial (em contraposição ao legítimo/pró-social) dependeria das emoções suscitadas e da dificuldade de regular essas emoções, especificamente a raiva e a frustração, pelo fato dessas fomentarem motivação para a busca da liberação/diminuição da tensão/estresse (Agnew et al., 1996; Froggio, 2007).
Dentre as situações interacionais que podem se constituir em fontes significativas de tensão, para adolescentes, com potencial de impacto negativo no seu desenvolvimento psicossocial (Park & Metcalfe, 2019), destacam-se conflitos e violências na família e na escola. Com relação à família, a literatura sublinha agressões e violência entre os membros da família, envolvendo os adultos entre si, assim como os maus-tratos (Bunch et al., 2018; Wolff & Baglivio, 2016). Dentre as consequências, estão o desenvolvimento de problemas de saúde e de comportamento, ainda na adolescência (Muniz et al., 2019), incluindo condutas antissociais, como a prática de delitos (Giovanelli et al., 2020; Yao et al., 2022) e o uso abusivo de substâncias psicoativas (Giovanelli et al., 2020; Beal et al., 2019).
Com relação à escola, a violência escolar seria uma das fontes de tensão mais significativas (entendida como presença de estímulo negativo) (Schulz, 2016). Conforme definições propostas no relatório da UNESCO (2019), a violência escolar envolve a violência física, psicológica, sexual, e o bullying, que inclui cyberbullying. O bullying é a forma mais comum de violência, no âmbito escolar, na atualidade (Menesini & Salmivalli, 2017). Esse compreende condutas agressivas entre pares de idade, com intenção de causar danos (Silva & Assis, 2018), com caráter repetitivo e persistente, envolvendo certo desequilíbrio de força/poder entre quem agride e quem é agredido (Medeiros et al., 2016). A participação no bullying poder ser enquanto perpetrador e/ou enquanto vítima, bem como enquanto observador (Zequinão et al., 2016). A percepção de que há muito bullying na escola, per si, já se constitui em uma fonte de tensão, pois gera medo e insegurança (UNESCO, 2019). Conforme a literatura, essas participações no bullying se relacionam tanto a problemas internalizantes, quanto externalizantes (incluindo, aqui, as condutas antissociais) (Resett, 2018; Ruiz-Narezo et al., 2020; Krusell et al., 2018).
Na contemporaneidade, a experiência de estresse parece incontornável e está associada aos diversos e diferentes conflitos e contradições que perpassam o quotidiano das interações, nos mais variados contextos (Chioro dos Reis, Carvalho Malta, & Castro Furtado, 2018). Embora suscetíveis, entende-se que a maioria dos adolescentes lida de forma assertiva com as tensões decorrentes de situações estressantes, aproveitando-se de recursos pessoais e socais. De acordo com a TGT, alguns, contudo, responderiam por meio de atos antissociais, o que impõe a necessidade de verificar as condições associadas a essa forma de resposta, até mesmo pela repercussão negativa que ela tem nos contextos de socialização, passível de gerar eventos negativos/estressantes novos, em cadeia (por exemplo, punição, institucionalização etc.). Assim, em uma perspectiva de proteção integral e de promoção de saúde mental dos jovens, no presente estudo, busca-se averiguar o quanto condutas antissociais autorreveladas se mostram relacionadas a experiencias adversas, estressantes, e quais condições se mostram associadas.
A investigação da relação entre exposição a tensões/estressores na família e na escola e condutas antissociais, durante a adolescência, é importante, visando elementos para a proposição de programas de intervenção nesse ciclo de violências, tendo por base, o estabelecimento de condições que fomentem relações interpessoais menos conflitivas e, portanto, menos estresse. Assim, no estudo aqui relatado, pretendeu-se explorar tais relações, na perspectiva da TGT, partindo de apontamentos de que o envolvimento em condutas antissociais pode ser uma das formas de lidar com a raiva/frustração gerada por estressores no ambiente, sobretudo no plano das relações interpessoais, mediante dificuldade, por parte do indivíduo, para regular emoções negativas e controlar impulsos, em situações de tensão significativa (Froggio, 2007). O objetivo, então, foi verificar as relações entre experiência de tensão/estresse - relacionada a experiências negativas/estressantes na família (agressões físicas e problemas dos adultos com a polícia) e na escola (bullying - como vítima, como perpetrador e como observador) -, variáveis pessoais (raiva e autocontrole) e condutas antissociais (divergentes e delituosas), em adolescentes/estudantes de escolas públicas, em contexto de vulnerabilidade socioeconômica. Pressupôs-se que a maior implicação em condutas antissociais - delitos e uso frequente de álcool - se mostraria relacionada a indicativos de experiência de mais tensão, para indivíduos experienciando mais raiva e apresentando mais baixo autocontrole. Considerou-se, ainda, nas análises, o gênero, devido à importância dessa variável, no tocante às relações focalizadas (sobretudo no que respeita à manifestação de coping ilegítimo, tendo em vista aspectos da socialização, baseada em expectativas quanto a papéis/comportamentos).
Método
Trata-se de um estudo exploratório, descritivo e inferencial. A pesquisa foi realizada em cinco escolas públicas na cidade de Franca, no interior de São Paulo, uma localizada na zona Norte, uma na zona Oeste e três na zona Leste da cidade; todas em bairros diferentes. Adianta-se que a escolha da cidade se deu por conveniência, em função da acessibilidade do pesquisador ao campo. Ressalta-se que a probabilidade de acessar os dados de interesse, nesse contexto, era alta, considerando um levantamento realizado na cidade, junto aos nonos anos do Ensino Fundamental, pelo qual se identificou altos índices de bullying (50%) (Diogo, 2015).
Participantes
A amostra foi composta por 102 estudantes, todos do 9º ano do ensino fundamental, com idades entre 13 e 16 anos, sendo a média 14,3 anos. Em relação ao gênero, 63,7% (n=65) se identificaram como Mulher, 28,4% (n=29) como Homem, 7,9% (n=8) como Não-Binário. Em relação à autoidentificação de cor/raça, obteve-se a seguinte distribuição: brancos (56,8%, n=58), pardos (27,5%, n=28), pretos (9,8%, n=10), amarelos (3,9%, n=4) e indígenas (2,0%, n=2). A categoria de negros - que compreende pardos e pretos - somou, portanto, 37,3%. Do total, 24,5% (n=25) referiram estudar e trabalhar, ao mesmo tempo. Trata-se de amostra de conveniência e intencional, focalizando estudantes de escolas públicas.
Medidas
Para a coleta de dados, foram empregados instrumentos estruturados.
Questionário de Comportamentos Juvenis - QCJ
Este instrumento refere-se à versão adaptada para uso no contexto brasileiro de questionário similar, inerente ao projeto Observatório de Delinquência Juvenil, resultante de uma parceria entre a Escola de Criminologia da Universidade do Porto e o governo português, para obter dados sobre a relação entre padrões específicos de condutas antissociais e características individuais, relacionais e sociais dos jovens (Komatsu, 2014; Komatsu et al., 2021). A versão de base desse questionário foi desenvolvida no quadro do International Self-Report Delinquency Study, uma pesquisa desenvolvida pela Comissão de Prevenção da Criminalidade, da Comunidade Europeia, implementada em diferentes países, para conhecer as tendências da delinquência juvenil (ISRD, Breen, 2010). A estrutura do QCJ se assemelha a do questionário original. Ele é composto por 59 questões com 264 subitens que exploram informações em seis grandes dimensões: (1) o adolescente: idade, escolaridade, religião, trabalho, atitudes e valores; (2) a família: status socioeconômico, número de pessoas, relacionamentos e vínculo, e eventos negativos; (3) a rotina e os amigos; (4) a escola: desempenho acadêmico e valores em relação aos estudos; (5) o bairro: características do bairro/vizinhança e dos vizinhos; (6) as condutas antissociais: condutas divergentes e condutas delituosas. O tempo médio de aplicação desse instrumento é de 15 a 30 minutos. As qualidades psicométricas da versão do instrumento adaptada ao contexto sociocultural da presente pesquisa foram descritas por Komatsu et al. (2021), a partir de uma amostra de 836 estudantes do sexo masculino (11 e 18 anos; M = 14,4; DP = 2,1). Os alfas de Cronbach variaram de 0,23 a 0,89 e as correlações intradomínio foram significativas em 81% dos casos, com coeficientes variando de 0,10 a 0,54. As correlações entre as escalas e as condutas antissociais foram significativas em 62% dos casos, variando de 0,10 a 0,43 (Komatsu et al., 2021).
Neste estudo estão sendo utilizadas somente informações nas dimensões: (1) adolescente, (2) família, e (6) condutas antissociais. Os dados coletados com itens na dimensão do (1) adolescente serviram para caracterizá-lo em termos sociodemográficos. Na dimensão (2) família, focalizaram-se os dados obtidos acerca de conflitos e agressões (sendo os itens: Os adultos da sua família brigam muito entre si? Se, sim, a ponto de se agredirem fisicamente?) e sobre eventuais problemas com a polícia (sendo os itens: Os seus pais (ou responsáveis) já tiveram problemas com a polícia?). No tocante às condutas antissociais, focalizaram-se os dados aportados por todos os itens sobre implicação em condutas divergentes e em condutas delituosas. As divergentes investigadas são: beber cerveja/vinho, destilados, usar maconha e passar a noite fora de casa sem que os pais saibam onde estão. As questões em torno de tais condutas são diretas. Por exemplo: Alguma vez passou a noite fora de casa sem que seus pais (ou responsáveis) soubessem onde estava? Você já bebeu cerveja ou vinho? Se sim, com qual frequência costuma beber cerveja ou vinho? Pontua-se 1 para cada uma das condutas indicadas como realizadas, pelo adolescente, com escore total podendo variar de 0 a 4. No que se refere ao uso de substâncias psicoativas, especificamente, mediante resposta afirmativa, o adolescente é solicitado a indicar a frequência do uso em uma escala, pontuando 1, se indica uma vez por mês, 2 se indica de uma ou a duas vezes por semana, 3 se indica três ou quatro vezes por semana, 4 se indica todos os dias e 5 se indica mais de uma vez por dia.
Quanto às condutas delituosas, são investigadas as seguintes: Dano, Furto de pessoa, Furto em estabelecimento comercial, Roubo, Receptação, Porte de arma, Lesão corporal (agressão física requerendo cuidados médicos), Lesão corporal (agressão física com uso instrumentos), Rixa, Maus-tratos a Animais e Tráfico de drogas. Desse rol, as condutas consideradas violentas, por implicarem em risco ou real prejuízo à integridade física de outra pessoa, são: Roubo, Lesão corporal, Lesão corporal com instrumentos e Rixa. Os adolescentes são indagados se já teriam se implicado em alguma/algumas das condutas, independentemente do fato de ser oficial ou não (de o adolescente ter sido apreendido ou não pela polícia). São exemplos de itens: Você já bateu em alguém a ponto de a pessoa ficar roxa, machucada? Alguma vez andou armado (pedaço de pau, faca, arma de fogo)? Alguma vez vendeu drogas ou ajudou de algum modo na venda de drogas? Essas recebem a pontuação 1, em caso de resposta afirmativa, com pontuação total variando de 0 a 11. Mediante resposta afirmativa, o adolescente é, ainda, solicitado a informar sua idade quando realizou a conduta pela primeira vez, e a quantidade de vezes que a teria realizada, nos últimos 12 meses.
Bateria de Escalas de Violência Escolar- BEVESCO
A BEVESCO é um instrumento elaborado no contexto de pesquisas no Núcleo de Estudos em Violência e Ansiedade Social (https://www.ufjf.br/nevas/instrumentos/), para alunos do sexto ao nono ano do ensino fundamental e do ensino médio. Trata-se de uma bateria de escalas que avaliam situações de observação, perpetração e vitimização por violência escolar, expressa nas modalidades: física, sexual, psicológica e moral, estando adaptada para alunos do sexto ao nono anos do ensino fundamental e do ensino médio. As escalas da BEVESCO, cujos autores autorizaram a utilização das escalas no presente estudo, foram testadas e validadas. As versões Vítima e Perpetrador foram obtidas por Análise Fatorial Exploratória-AFE e apresentaram evidências de consistência interna satisfatórias (Senra et al., 2020). EAP é um indicador cuja interpretação é similar ao alfa de Cronbach. A variância explicada e confiabilidade de pontuação EAP para o F1 da BEVESCO-Vítima foi 5.392, (EAP=0.910) e o índice de determinação do fator 0,954. A variância explicada e confiabilidade de pontuação EAP para o F1 da BEVESCO-Perpetrador foi 2.994 (EAP= 0.850) e o índice de determinação do fator 0.922 (Ferrando & Lorenzo-Seva, 2016 apud Senra et al., 2020).
No presente estudo, foram utilizadas a escala BEVESCO-Vítima, que contém 13 itens, e a BEVESCO-Perpetrador, com sete itens (Stroppa, 2017). As questões das escalas “Vítima” e “Perpetrador” requerem autorrelato. Os itens são respondidos pelos alunos em escala tipo Likert de quatro pontos (nunca = 0, poucas vezes = 1, muitas vezes =2 e sempre =3). Os escores são obtidos por meio do somatório dos itens (Stroppa, 2017). Alguns exemplos de itens da escala de vitimização são: 4. Outros alunos fazem brincadeiras maldosas comigo; 7. Pessoas da minha escola riem de mim; 8. Sou excluído por outros alunos da minha escola. Exemplos da escala de perpetração são: 2. Bato e/ou ajudo a bater em outro (s) aluno (s); 4 Jogo objetos de propósito em outro (s) aluno (s) (caneta, caderno, lixeira, entre outros); 7. Faço brincadeiras maldosas com outro (s) aluno (s). O tempo de aplicação médio é de 10 minutos.
Os níveis de violência escolar são estimados por meio do escore bruto, ao somar as respostas emitidas nos itens de cada subescala. Assim, a vitimização é estimada por meio das respostas, em se considerando os seguintes intervalos: entre 0 e 1 pontos - risco de vitimização; entre 2 e 4 - vitimização ocasional; 5 pontos ou mais - vitimização persistente. Com relação aos níveis de perpetração de violência, estes são estimados da seguinte forma: perpetradores ocasionais pontuam até 2 pontos; os persistentes pontuam 3 ou mais pontos (Senra et al., 2020). Vale, assim, ressaltar que, mesmo pontuando zero, todos os respondentes se encaixam em algum nível da problemática avaliada em ambas as escalas. No presente estudo, foram consideradas apenas as categorias “vítimas ocasionais”, “vítimas persistentes” e “perpetradores persistentes” (levando em contas as pontuações).
Delaware School Climate Survey-Student -DSCS-S
O DSCS-S é um instrumento que visa avaliar o clima escolar. Originalmente proposto por Bear e colaboradores (2016), esse foi traduzido e adaptado para o Brasil por Holst et al. (2016). Sua base teórica remete principalmente à teoria da disciplina autorizada de Baumrind (1971 apudHolst et al., 2016). A avaliação do clima escolar é importante para entender as dimensões sociais, emocionais, éticas, acadêmicas e físicas relacionadas ao ambiente escolar (Holst et al., 2016). A versão utilizada é composta por 27 itens, mais um (este último, para verificar a validade das respostas). Os itens formam subescalas: relações professor-aluno; relações entre alunos; segurança escolar; justiça e clareza das regras; engajamento do aluno; bullying. O tempo de aplicação médio é de 10 a 15 minutos. Quanto às qualidades psicométricas, o estudo com amostra composta por 378 estudantes brasileiros do 5º ao 9º ano, indicaram os coeficientes de consistência interna variaram de 0,74 a 0,83 para as seis subescalas e de 0,86 para a escala total (Bear et al., 2015).
No presente estudo, focalizam-se os dados atinentes à subescala bullying, somente. Essa focaliza é composta de 4 itens a percepção do bullying, na escola (exemplo de item: 11 - Os alunos sentem medo de sofrer bullying nesta escola). As pontuações podem variar de 1 (discordo totalmente) a 4 (concordo totalmente). Para a interpretação, considerou-se o valor mínimo e máximo na escala, de 0 a 16. Assim, quanto mais próximo do valor mínimo, no caso desta subescala, melhor a percepção do clima escolar (e vice-versa). Para as análises, a interpretação foi feita pela média, sendo que se considerou escores médios acima de três indicativos de percepção de bullying na escola, seguindo indicativos da literatura (Filippsen & Marin, 2021).
Inventário de expressão de raiva como estado e traço - STAXI 2
Desenvolvido por Charles d. Spielberger, este instrumento possui adaptação para o Brasil, realizada pelo Departamento de Pesquisas e Desenvolvimento da Vetor Editora (Spielberger & Biaggio, 2010). O inventário tem a finalidade de mensurar experiências e expressões de raiva, segundo seu Manual adaptado para o Brasil (Spielberger & Biaggio, 2010). O Inventário é composto por 57 itens, que se agrupam em escalas e subescalas. No total, são doze medidas distribuídas em grupos principais: Estado de Raiva (ER), Traço de Raiva (TrR), Expressão (ExRF) e Controle de Raiva (ExRD) e um Índice de Expressão de Raiva (IER), que fornecem uma medida completa da expressão e do controle da raiva (Silva & Capitão, 2011). Os valores alfas de Cronbach variam entre 0,685 e 0,888.
A Raiva enquanto Traço remete à experiência frequente desse sentimento e do sentir-se injustiçado/a pelos outros (associada a altas pontuações nas subescalas Temperamento de Raiva e Reação de Raiva). Há, ainda, a Expressão de Raiva (avaliada em duas subescalas: para fora e para dentro) e o Controle de Raiva (também avaliada em duas escalas: para fora e para dentro), que se refere à energia gasta, controlando a experiência de expressão da raiva aparente (controle para fora) ou para se acalmar e reduzir a raiva (controle para dentro). São exemplos de itens dessas escalas/subescalas: Traço de Raiva - 4. Eu tenho vontade de gritar com alguém; Expressão e Controle de Raiva - 23. Fico furioso(a) quando sou criticado(a) na frente dos outros; 33 - Fico amuado (a) ou aborrecido (a). As respostas também são em escalas do tipo likert de quatro pontos, variando de 1 a 4, sendo 1 “quase nunca”, 2 “algumas vezes”, 3 “frequentemente” e 4 “quase sempre”.
Este instrumento tem normas de correção para a faixa de idade compreendida entre 17 e 67. Decidiu-se empregá-lo no presente estudo, com adolescentes com idades entre 13 e 15 anos, por considerar ser o instrumento mais adequado para a investigação do constructo, ressaltando-se que não se observou dificuldade dos adolescentes investigados para entender e responder ao instrumento. Para sua interpretação, então, considerou-se a pontuação no escore T do instrumento, usando um critério “padrão” de um desvio do escore T; ou seja, o valor médio de 50 e a faixa de normalidade entre 40 e 60.
Escala de autocontrole - EAC
Originalmente elaborada por Grasmick et al. (1993), esta foi adaptada ao contexto brasileiro por Gouveia et al. (2013). A escala é composta por 24 itens, respondidos em escala do tipo Likert de quatro pontos (com 1 = Discordo Totalmente e 4 = Concordo Totalmente). Subconjuntos de itens formam seis componentes que remetem às dimensões do autocontrole segundo proposta teórica elaborada por Gottfredson e Hirschi (1990) (apudGouveia et al., 2013). As dimensões, acompanhadas de exemplos de itens, são as seguintes: (1) orientação voltada para o aqui e o agora (Costumo agir impulsivamente, sem pensar); (2) interesse por experiências arriscadas e emocionantes (Gosto de me testar fazendo coisas arriscadas); (3) preferência por tarefas simples frente às complexas (Quando as coisas complicam, eu desisto); (4) inabilidade para planificar o comportamento e planejar objetivos em longo prazo (Não vivo pensando, nem me preparando para o futuro); (5) egocentrismo e indiferença pelas necessidades e desejos dos outros (Tento pensar primeiro em mim, ainda que isso torne as coisas difíceis para outras pessoas); (6) baixa tolerância à frustração e alta frente à dor (Fico irritado com facilidade). Em efeito, a escala mensura o baixo autocontrole. O tempo de aplicação médio é de 10 a 15 minutos. Quanto às evidências de confiabilidade, no estudo de adaptação da escala para o Brasil, com dados de 244 estudantes brasileiros, obteve-se alphas de Cronbach nas dimensões variando de 0,62 a 0,82 (Gouveia et al., 2013).
No presente estudo, enfocou-se somente o somatório na escala principal (como medida do “baixo autocontrole”), sem observar os componentes da escala. Os itens são respondidos em escala do tipo Likert de quatro pontos (com 1 = Discordo Totalmente e 4 = Concordo Totalmente). Os escores variam entre 24 e 96, e quanto mais alta a pontuação alcançada, mais baixo o autocontrole. Considerou-se a pontuação de corte para baixo autocontrole, aqueles valores acima da norma da população amostral, no escore t, usando como dados de referência normativa os coletados por Galinari (2019), assumindo um critério “padrão” de um desvio do escore T (ou seja, o valor médio 50 e a faixa de normalidade entre 40 e 60).
Procedimentos de coleta e análise de dados
Inicialmente, o projeto da pesquisa foi avaliado e aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da FFCLRP-USP (48563221.5.0000.5407). Também foi obtida a autorização da Diretoria de Ensino da cidade e das escolas. Assim, pôde-se entrar em contato com os alunos para convidá-los a colaborarem com a pesquisa. Aos que demostravam interesse em participar, foram entregues duas vias do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE). Solicitou-se que os estudantes levassem as vias de TCLE aos pais/responsáveis, de modo que tivessem ciência e autorizassem sua participação na pesquisa.
Pelas condições sanitárias (pandemia de COVID-19), a coleta aconteceu em espaço aberto com no máximo cinco estudantes, por vez, todos de máscara, mantendo-se distanciamento. Para a coleta, utilizou-se o recurso de um tablet com os instrumentos digitalizados, usando o REDCap (Research Electronic Data Capture). Assim cada adolescente manipulou diretamente o tablet para participar da pesquisa. Quando terminavam de responder aos instrumentos, entregavam os tablets e esses eram higienizados. A aplicação em cada grupo durou entre 57 e 85 minutos.
Após a coleta, os dados foram compilados em uma planilha no Microsoft Excel. Vale frisar que em todos os instrumentos houve participantes que deixaram questões em branco, de modo que há uma variação no “n”, na contabilização dos resultados, visto que a impossibilidade de computar os escores em certas escalas/instrumentos implicou em retirar o adolescente com dados faltantes, de certas análises.
Os dados foram tratados, primeiramente, descritivamente, para se ter uma perspectiva geral e clara das informações obtidas. A amostra foi caracterizada no tocante ao gênero e à raça/etnia e, em seguida, no tocante às condutas antissociais - condutas delituosas (idade de início, frequência e diversidade), condutas delituosas violentas (frequência e diversidade) e condutas divergentes, focalizando o uso frequente de álcool (uso frequente de cerveja e de destilados). As outras categorias de condutas divergentes, incluindo o uso de maconha, não foram consideradas nas análises pelo fato de o “n” de resposta nos itens ser muito baixo.
Em seguida, a amostra foi caracterizada no tocante aos eventos negativos na família - agressões físicas e problemas com a polícia. A amostra também foi descrita em termos de envolvimento direto em violência escolar entre pares, ou seja, o bullying escolar, a partir dos dados coletados com a BEVESCO, separando-os em três grupos: vitimização ocasional, vitimização persistente e perpetração persistente. Também foi descrita em termos e percepção de bullying na escola (com a subescala Delaware) e em autocontrole (escore total) e raiva (na escala traço, controle e expressão da raiva). Foram realizadas análises de regressão logística considerando um nível de significância de 0.05, para a interpretação das relações entre as variáveis focalizadas. Ainda, calculou-se o odds ratio, ou razão de chances, para identificar se as variáveis independentes aumentavam ou diminuíam as chances de as dependentes ocorrerem.
Adotando a perspectiva da Teoria Geral da Tensão (TGT) foram consideradas como variáveis dependentes ou desfechos: condutas delituosas (ao menos uma), conduta delituosa violenta (ao menos uma) e condutas divergentes (uso frequente de álcool - cerveja, vinho e/ou destilados). Como variáveis independentes, estabeleceu-se como fontes de tensão, as seguintes variáveis: Participação direta em violência escolar: vitimização e perpetração; adversidades familiares (agressão física na família e pais terem problemas com a polícia). A Raiva e o Autocontrole foram considerados intervenientes (possíveis mediadores).
Resultados
Primeiramente, apresenta-se a caracterização da amostra em relação às condutas antissociais focalizadas. A proporção de adolescentes que reportaram ao menos uma das condutas investigadas (divergentes e/ou delituosas) é de 75,4%. A Tabela 1 sintetiza os resultados concernentes às condutas divergentes, no tocante à frequência e ao percentual de adolescentes que reportaram cada uma.
Observa-se que a conduta reportada pelo maior número de adolescentes foi consumo de cerveja ou vinho (56,3%). A seguir, na Tabela 2 focaliza as condutas delituosas/infrações e mostra a frequência e o percentual de adolescentes que reportaram cada uma.
É importante destacar que 43% dos adolescentes reportaram prática de ao menos uma das categorias de delito/infração. A conduta mais prevalente foi porte de arma (17,6%), seguida por furto em estabelecimento comercial (14,7%) e de pessoa (13,7%). A receptação e o tráfico de drogas foram relatados por apenas um adolescente. A Tabela 3 apresenta as médias e os desvios padrões da idade reportada como sendo a da realização de conduta delituosa, pela primeira vez, do número de delitos/infrações distintos já realizados (em geral e os considerados violentos) e da frequência total de delitos/infrações nos últimos 12 meses (em geral e os considerados violentos).
A idade média reportada como sendo a da realização de conduta delituosa, pela primeira vez, na amostra é de 10,6, situando a prática no final da infância (antes do início da adolescência). Contudo, as médias relativas ao número de delitos diferentes já praticados - em geral e os violentos -, e à frequência total de delitos, nos últimos 12 meses - em geral e os violentos -, em relação aos escores máximo e mínimo, podem ser considerados bastante baixos, próximos do mínimo (com baixa variabilidade na amostra). A Tabela 4 sintetiza os resultados relativos às proporções de adolescentes na amostra em geral e nas subamostras formadas pelos adolescentes que reportaram implicação em condutas antissociais - delitos em geral e violentos e uso frequente de álcool (cerveja, vinho e/ou destilados) - por gênero e por vivências consideradas como fontes de estresse/tensão, atinentes a problemáticas na família e na escola.
No tocante ao gênero, embora o número de indivíduos que se autodeclararam como não binário seja bastante reduzido, nota-se uma proporção mais elevada desses na subamostra reportando ao menos um delito violento. Quanto às problemáticas na família, nota-se que uma proporção maior de adolescentes com uso frequente de álcool reportou agressões na família, e que uma proporção maior de adolescentes com implicação em ao menos um delito reportou a existência de problemas dos pais/responsáveis com a polícia. No que respeita às problemáticas na escola, destaca-se uma proporção maior de adolescentes com uso frequente de álcool reportando vitimização ocasional por bullying; uma proporção maior de adolescentes com implicação em ao menos um delito reportando vitimização por bullying persistente, assim como perpetração persistente. No mais, destaca-se uma proporção mais elevada de adolescentes tendo reportado implicação em ao menos um delito violento reportando percepção de bullying na escola, em níveis mais elevados.
Na sequência, apresentam-se os resultados de caracterização da amostra no que respeita às variáveis intervenientes - possíveis mediadoras entre as tensões e as condutas antissociais, segundo a TGT: raiva e autocontrole. No presente estudo, conforme já destacado, focalizam-se as condutas antissociais, enquanto coping ilegítimo (delitos e/ou uso de substâncias psicoativas - álcool). Assim, os resultados relacionados à avaliação da “raiva” e do “autocontrole” são apresentados para amostra total e para as subamostras identificadas em função das condutas antissociais reportadas, na Tabela 5.
Conforme o mencionado, no tocante à “raiva”, privilegiaram-se os dados das escalas Traço, Expressão e Controle, uma vez que essas avaliam características mais estáveis (menos circunstanciais, em contraposição à escala “estado de raiva”). As proporções contabilizadas nas escalas/subescalas de “raiva” e de “(baixo) autocontrole” referem-se aos indivíduos cujos escores nos instrumentos, uma vez calculado o percentil, estariam acima de 60, usando o critério “padrão” de um desvio do escore T, em se considerando o valor médio 50 e a faixa de normalidade entre 40 e 60. Esses indivíduos teriam pontuações em indicadores de raiva e de baixo autocontrole mais elevadas que a maior parte dos indivíduos investigados (estariam fora da normalidade - indicando mais raiva e menor autocontrole que a norma).
Nota-se que uma maior proporção (sendo essa bastante elevada) de adolescentes na subamostra com implicação em ao menos um delito apresentou pontuação em traço de raiva acima da norma. Uma maior proporção de adolescentes na subamostra com implicação em ao menos um delito violento teria pontuação acima da norma em Expressão da raiva para fora e uma maior proporção de adolescentes na subamostra com implicação ao menos um delito teria pontuação acima da norma em Expressão da raiva para dentro. No tocante ao Controle da raiva para fora e para dentro, assim como ao baixo autocontrole, as proporções mais elevadas de indivíduos com pontuações acima da norma estariam concentradas na subamostra composta por aqueles com implicação em ao menos um delito violento.
Uma regressão logística simples foi realizada para explorar as associações e possíveis relações entre as variáveis independentes (Gênero, Fontes de Tensão e Variáveis Intervenientes) e as dependentes/desfecho (condutas antissociais). Na Tabela 6, sintetizam-se os resultados das análises focalizando o desfecho “ter reportando ao menos uma conduta delituosa”.
As variáveis que se referem às fontes de tensão na escola, especificamente a violência entre pares (bullying), vivida como vítima persistente e como perpetrador, também persistente, aumentaram significativamente as chances de implicação em ao menos um delito. Participar de modo persistente do bullying, como vítima, aumentou 3,92 vezes as chances de o adolescente reportar implicação em ao menos um delito, assim como perpetrador, aumentou 6,67 vezes essas chances. De igual modo, o Traço de Raiva - relativo à experiência frequente de sentimentos de raiva e de sensação de tratamento injusto - e a Expressão da raiva para fora - por meio de comportamentos agressivos direcionados aos outros, também aumentaram significativamente as chances de implicação em ao menos um delito (em 4,22 e em 3,37 vezes, respectivamente). A seguir, a Tabela 7 sintetiza os resultados da regressão logística simples enfocando a subamostra formada por aqueles tendo “reportado ao menos uma infração violenta”.
As relações significativas foram observadas somente para Baixo Autocontrole e Controle da Raiva para dentro. As chances de implicação em delito violento, ao menos uma vez, aumentaram 3,84 vezes para um adolescente com pontuação acima da norma em baixo autocontrole e 2,82 vezes para um adolescente com pontuação acima da norma em Controle da raiva para dentro (que dá a medida do gasto de energia que o indivíduo tem para reduzir a raiva, tentando se acalmar). A Tabela 8 apresenta a síntese dos resultados da regressão logística em se considerando a variável desfecho “uso frequente de álcool”.
As relações significativas aqui foram para gênero masculino, Traço de Raiva, Expressão de raiva para dentro, Controle para dentro e para fora. Importante notar que ser do sexo masculino contou para diminuir as chances de uso frequente de álcool, ao passo que as outras variáveis contaram significativamente para aumentar as chances. Destaca-se que indivíduos com pontuação elevada - acima da norma - em Controle de raiva para fora - referente ao gasto de energia para controlar e prevenir a expressão da raiva - teriam 5,53 vezes mais chances de reportar uso frequente de álcool.
Nas tabelas a seguir têm-se os resultados dos modelos ajustados de regressão logística, envolvendo as mesmas condutas desfechos. Sublinha-se, desde já, que os efeitos significativos de algumas das variáveis consideradas fontes de tensão e intervenientes, foram novamente observados. A Tabela 9 apresenta os resultados relacionados aos efeitos da participação direta em violência escolar (bullying persistente, enquanto vítima e enquanto perpetrador), em relação às variáveis dependentes/desfechos (as condutas antissociais focalizadas).
Verificou-se que a participação direta, persistente, em bullying permaneceu contando para aumentar significativamente as chances para reportar participação em ao menos um delito, assim como ser do gênero masculino permaneceu concorrendo para diminuir as chances de uso frequente de álcool. Não se observou relação significativa com a implicação em delitos violentos. A Tabela 10 sintetiza os resultados da análise para o modelo ajustado com o acréscimo das variáveis intervenientes, relacionadas às características pessoais.
Verifica-se, nesse modelo, que inserir o autocontrole e o traço de raiva nas análises das relações de interesse, produz alguma modificação dos efeitos nas chances dos desfechos investigados. As chances de reportar implicação em ao menos um delito seriam 5,17 maior para aqueles com pontuação acima da norma em bullying como perpetrador persistente, apenas. Já as chances de reportar implicação em ao menos um delito violento seriam 4,34 maior para aqueles com mais baixo autocontrole. Por fim, as chances de reportar uso frequente de álcool seriam 2,82 maior para aqueles com pontuação acima da norma em Traço de Raiva.
Discussão
Este estudo buscou verificar as relações entre experiência de tensão/estresse - relacionada a certas adversidades na família e na escola, emoções negativas (raiva), autocontrole e condutas antissociais, em adolescentes/estudantes de escolas públicas, pressupondo que maior implicação em condutas antissociais - delitos e uso frequente de álcool - se mostraria relacionada com indicativos de experiência de mais tensões, para indivíduos experienciando mais raiva e apresentando mais baixo autocontrole. O gênero também foi incluído nas análises. Estudos, na área, especialmente aqueles que usam o referencial da TGT, indicam que a consideração de gênero é importante e que a experiência das tensões pode ser diferente para homens e mulheres, em parte devido à socialização baseada em estereótipos de gênero (Yun & Kim, 2017). Assim, estabeleceu-se a hipótese de que o gênero poderia ter um efeito mediador ou moderador nas análises. Consideraram-se as categorias “feminino” e “masculino” e, na medida do possível, aqueles que se identificaram como não-binários, nas análises, para incluir todas as expressões (Brazão & Dias, 2021). Entende-se que as construções de subjetividades, perpassadas pela questão de gênero fomentam modos de ser que têm impacto nas vivências (Silva et al., 2019).
Vale frisar que os resultados obtidos permitem afirmar que a implicação em certas condutas antissociais - divergentes e delituosas - é algo bastante comum, reiterando diversos estudos já realizados no Brasil (Costa et al., 2019; Costa et al., 2020) e em outros contextos (Villafuerte-Diaz et al., 2022; Rocca et al., 2019). No presente estudo, encontrou-se uma taxa de 75,4% de adolescentes reportando ao menos uma conduta divergente e/ou delituosa investigada. Sabe-se que, na adolescência, a manifestação dessas condutas remete, para a maior parte dos adolescentes, em comportamento exploratório típico da idade, sendo que apenas uma pequena parte apresenta engajamento nessas condutas mais significativo (em termos de frequência e de diversidade) (Bazon et al., 2011; Galinari et al., 2020; Zappe et al., 2018).
Ressalta-se, para a amostra estudada, o fato de haver uma taxa maior de adolescentes implicados em condutas divergentes, que em condutas delituosas, especificamente o uso de substâncias psicoativas lícitas (álcool - cerveja, vinho e destilados). Uso problemático de substâncias por adolescentes deve, antes de tudo, ser interpretado como uma demanda relacionada a saúde pública, e não relacionada à segurança pública (Ministério da Saúde, 2015). Estudos com amostras representativas da população de estudantes, no Brasil, trazem taxas que 55,9% dos escolares de 13 a 15 anos já experimentaram álcool, sendo o consumo atual de 22,1% (Pesquisa nacional de saúde do escolar - PenSE, 2019). No presente estudo, a taxa encontrada se aproxima da encontrada no PenSE (2019), sendo 56,3% a proporção dos que já experimentaram cerveja ou vinho e 49,5% destilados. Não se investigou, todavia, o consumo atual (nos últimos 30 dias), como na pesquisa citada, mas apenas a frequência de uso (a partir de uma vez por mês). A taxa para essa frequência considerando cerveja ou vinho foi 52,0% e destilados foi 48%.
No tocante à implicação em condutas delituosas, a taxa de 43% pode ser considerada relativamente baixa, se comparada com a de outros estudos realizados com dados de adolescentes estudantes brasileiros, como o de Komatsu e Bazon (2015), no qual 77% da população escolar relatou ter praticado ao menos um delito. A taxa, contudo, é um pouco maior do que a encontrada no estudo de Rocca et al. (2019), focalizando outras realidades socioculturais, usando dados da terceira onda do International Self-Report Delinquency Study (ISRD3), no qual se identificou uma taxa ao redor de 21%.
Observando-se as taxas por tipos de delitos investigados, nota-se que a maior parte é revelado por uma proporção bem pequena de jovens (43%). Inusitadamente, a maior proporção concentra-se no delito “Porte de Arma” (17,6%). Embora esse não seja considerando um delito violento, no presente estudo, considera-se que é uma ação bastante séria. É preciso, ressaltar que o item que investigou essa conduta trata de forma indistinta tipos de armas bem diferentes, que podem remeter a contextos de acessos bem diferentes, assim como a motivações bem diferentes. Em estudos mais aprofundados pode-se enfocar os tipos de armas e as motivações/contextos relacionados ao seu porte.
A despeito da gravidade dos delitos revelados na amostra, vale analisar as variáveis usadas para aferir o denominado “engajamento infracional”, em estudos da área: a idade de início da manifestação das condutas delituosas, o número total de delitos diferentes já praticados e a frequência total de delitos praticados (no caso, nos últimos 12 meses) (Costa et al., 2019; Komatsu et al., 2020). Essas variáveis, em conjunto, ajudam a distinguir um padrão de conduta de “delinquência comum” - exploratória, típica da idade - de um padrão de delinquência distintiva - que denota maior engajamento, destoando, portanto, do típico (podendo, então, remeter a um padrão atípico). Nessa esteira, ressalta-se que a média de idade de início de manifestação das condutas (10,6 anos), refere-se a uma idade baixa, que pode ser considerada indicativa de precocidade (antes do início da adolescência), mesmo em se observando variação na amostra, tendo por base o desvio padrão. Essa idade média é semelhante à encontrada no estudo de Komatsu e Bazon (2017) (também com adolescentes da população).
A despeito da “precocidade”, os outros indicadores de engajamento - número de delitos distintos reportados (violentos e não violentos) e frequência total de delitos reportados (violentos e não violentos) - apresentam médias muito baixas, com baixa variabilidade, também. Assim, pode-se considerar que a amostra estudada é composta por adolescentes com baixo engajamento infracional, ou seja, que a amostra compreendeu maiormente adolescentes apresentando um padrão de conduta delituosa típico à idade (uma “delinquência comum”) - composta por poucos atos, com pouca variabilidade, especialmente no que se refere à violência, considerando as médias e desvios padrões calculados para os tipos de delitos considerados violentos, bastante baixas (Costa et al., 2019; Moffitt, 2018).
Por essa razão, para dar sequência ao estudo, decidiu-se trabalhar com subamostras caracterizadas por representar condutas antissociais (divergentes e delituosas). Assim, foram constituídas as subamostras (em paralelo à amostra total) dos adolescentes que reportaram implicação - em ao menos - um delito, implicação - em ao menos - um delito violento, e dos que reportaram uso frequente de álcool (cerveja, vinho e/ou destilados). A distribuição dos gêneros nessas subamostras, em se tomando como referência a distribuição na amostra total, composta maiormente por pessoas do gênero feminino (63,7%), faz ressaltar alguns aspectos. Uma proporção bem menor deste gênero (41,7%) compôs a subamostra que reportou implicação em delitos violentos. O inverso se notou para o gênero masculino e para os que se identificaram como não-binário (proporções maiores de adolescentes dessas duas categorias compuseram essa subamostra - reportando delitos violentos - em comparação àquelas da amostra geral). Considerando os limites impostos pelo tamanho da amostra e subamostras, pode-se pensar em uma maior vulnerabilidade dos gêneros masculino e não-binário à implicação em violência. Esse dado para o gênero masculino reitera o de outros achados na literatura (O’Neill, 2020). Em muitos estudos, essa maior implicação dos adolescentes do gênero masculino em delitos, de forma geral, e em violência, de forma específica, é explicada por meio das diferenças nas práticas de socialização, conforme já mencionado (Liu & Miller, 2020). Quanto aos indivíduos não identificados com as categorias hegemônicas (os não-binários), a implicação em violência deve ser estudada/aferida em estudos com amostras maiores.
Passou-se, em seguida, à observação das subamostras no tocante à exposição às fontes de estresse na família e na escola, e à caracterização das variáveis pessoais (raiva e autocontrole). No que diz respeito a família, apenas uma pequena parte da amostra geral relatou ter presenciado agressão física entre os membros (10,78%). Essa fonte de tensão foi mais frequente entre aqueles participantes que relataram o uso frequente de álcool. A taxa destoa da encontrada em outros estudos, embora deva-se considerar que, no presente estudo, a pergunta se restringiu em abordar a violência física, não abarcando diferentes tipos de violência familiar, o que pode ter influenciado na baixa taxa. Nesse sentido, Lima et al. (2022) identificaram uma taxa bem mais elevada de violência familiar (52,6%), composta por ações de natureza física, psicológica e sexual, em uma amostra de escolares. No que se refere ao fato de ter pais que já tiveram problemas com a polícia, a taxa na amostra total foi maior, aproximando-se de um quinto (18,62%) e ainda maior na subamostra dos que reportaram ao menos um delito (20,93%). Esses resultados estão em consonância com dados da literatura, pelos quais se assinala que adversidades na família podem acarretar consequências para o desenvolvimento de problemas de comportamento, incluindo condutas antissociais (Yao et al., 2022).
Apesar desses apontamentos, tendo por base as estatísticas descritivas, destaca-se que nas análises de regressão, as adversidades na família, não se mostraram significativas na predição de qualquer das condutas antissociais focalizadas, contrariando o esperado. É possível que o tamanho da amostra (pequeno), tenha influenciado nos resultados. Ademais, há que se considerar que se investigou um rol pequeno de adversidades na família e de desfechos negativos. Assim, indica-se a necessidade de se avaliar, em outros estudos, adversidades na família de maneira mais ampla e aprofundada, com instrumentos específicos, assim como a de se considerar desfechos diferentes (associados a problemas de comportamento internalizantes).
No que diz respeito a tensões percebidas na escola, o presente estudo investigou especificamente a violência escolar, entendida como o uso intencional de força com potencial de dano, seguindo a caracterização da Organização Mundial da Saúde (apudStelko-Pereira & Williams, 2010). Dentre as violências que podem ocorrer neste ambiente, trabalhou-se somente com o bullying, ou seja, com a ocorrência de vitimização ocasional ou persistente e perpetração persistente, entre pares de idade, no contexto escolar. Importante esclarecer que o instrumento utilizado aborda vários tipos de agressões possíveis entre pares (física, ameaça, assédio sexual, psicológica, moral, coação, cyber agressões), apesar de não empregar explicitamente o termo bullying. Entretanto, podemos considerar essas vitimizações e perpetrações avaliadas pelo instrumento como bullying escolar, uma vez que possuem as mesmas características, como: ser um ato com intenção de causar danos, de caráter repetitivo e persistente, em que os envolvidos assumem papéis (Medeiros et al., 2016). Começa-se por destacar, na amostra geral, altas taxas da problemática, com destaque para vitimização ocasional (34,31%). A proporção foi ainda maior entre aqueles que reportaram uso frequente de álcool (37,09%). A taxa daqueles reportando vitimização persistente, contudo, na mostra geral foi 46,07%, mas se mostrou mais altas entre os que reportaram implicação em delitos (65,11%). Essas taxas de vitimização por bullying (persistente) estão em consonância com os dados identificados no contexto brasileiro, considerando a mesma faixa etária (PenSE, 2022; Silva et al., 2013). Considerando o momento de realização do estudo, logo nos meses iniciais da volta às aulas, pós-isolamento social, pela pandemia de COVID-19, pode-se dizer que na retomada do contato presencial o fenômeno das agressões se reinstalou rapidamente, uma vez que as taxas se assemelham aos estimadas com dados coletados em 2019, antes da pandemia (PenSE, 2022).
A taxa reportando perpetração persistente, na amostra geral, foi mais baixa que a da vitimização persistente (36,27%). Essa é, contudo, mais alta que a relatada no estudo de Figueira e colaboradores (2022), também com estudantes, que foi de 19,8%. Importante ressaltar que a proporção de adolescentes que reportaram perpetração persistente de bullying é quase o dobro na subamostra dos que reportaram implicação em delitos (60,46%).
Contrariamente ao que se verificou no tocante às adversidades na família, as análises de regressão mostraram que participação no bullying como vítima ou agressor (persistentes) aumentou as chances de o adolescente ter relatado a implicação em ao menos um delito. Esse dado sugere papel desempenhado pelo bullying, enquanto variável de tensão que aumenta a chance de condutas antissociais. No modelo ajustado, contudo, apenas ter sido agressor de forma persistente permaneceu como variável significativa, aumentando as chances de reportar ao menos uma conduta delituosa.
Focalizando a relação entre vitimização por bullying e implicação em condutas antissociais, dispõem-se de estudos recentes, alguns com delineamento longitudinal, que mostram relação significativa e preditiva da violência sofrida na relação com pares de idade e implicação em delitos (Nasaescu et al., 2020; Pontes & Pontes, 2019). O fato dessa relação não se manter significativa no modelo ajustado, suscita duas principais indagações: haveria efeito de uma variável confundidora (uma das que foi inserida no modelo)? Se a amostra fosse maior a relação seria verificável? Ademais, deve-se considerar a hipótese de que a violência sofrida impacta outros âmbitos do desenvolvimento dos adolescentes, aspectos que não foram investigados no presente estudo. Há literatura que indica que ser vítima de bullying pode ter relação mais forte com problemas internalizantes, no plano da saúde mental (Muniz et al., 2019). Há, ainda, estudos como o de Glassner (2020), que não encontrou efeitos significativos entre sofrer bullying e praticar delitos na adolescência, identificando apenas que ser vítima de bullying aumentaria sintomas depressivos.
Focalizando os dados encontrados acerca da perpetração do bullying, e de sua relação com a implicação em delitos, mesmo no modelo de regressão ajustado, esses estão alinhados com a literatura que indica que o bullying prediz outras condutas antissociais, especificamente delitos/infrações (Waters & Espelage, 2019; Espelage et al., 2018). Essa relação é encontrada mesmo na presença de outras variáveis pessoais e contextuais controladas (Waters & Espelage, 2019). Portanto, a implicação em bullying (como perpetrador) pode ser considerada um marcador comportamental para escalada e para a persistência da conduta delituosa, como relatado por Walters (2019).
Com relação às variáveis de caracterização pessoal que, pelo modelo da TGT, desempenham papel interveniente, destacamos inicialmente os dados descritivos, das proporções de adolescentes com pontuações acima da norma, na amostra geral e nas subamostras de interesse. Primeiramente, chama a atenção a alta proporção de estudantes, na amostra geral, com pontuação elevada - acima da normativa - em Traço de Raiva (70,58%), sendo essa ainda maior na subamostra tendo reportado implicação em ao menos um delito (86,04%). O dado parece indicar uma característica “estatisticamente normal”, embora, se deva considerar que o constructo, tal qual concebido no instrumento utilizado (STAXI- 2), refere-se a um aspecto mais estrutural, ainda que suscetível à alteração, ao longo do desenvolvimento. Em efeito, a medida, que envolve temperamento, remete à percepção das situações como provocadoras e/ou à predisposição para experimentar de forma intensa conflitos em situações desafiantes (Spielberger & Biaggio, 2010). Estudos com amostras de adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas (apesar de utilizar outra versão do STAXI) identificaram porcentagens semelhantes para o traço de raiva, com 73% com um percentual alto (Rosa et al., 2015).
Com relação às subescalas Expressão e Controle, verificaram-se proporções mais elevadas, com mais da metade dos indivíduos pontuando acima da norma, em Expressão para Dentro - atinente à frequência com que o indivíduo contém ou suprime pensamentos de raiva (da ruminação mental dos sentimentos à supressão de qualquer pensamento ou emoção/afeto relacionado com a raiva), na subamostra tendo reportado ao menos um delito (se comparada à amostra geral). Essa subamostra também apresentou resultados significativos para Controle para Fora e para Dentro - ambas relativas à frequência com que o indivíduo consegue dominar sentimentos relativos à raiva, remetendo à energia empregada para o controle, ao passo que a subamostra formada por aqueles que reportaram ao menos um delito violento apresentou resultado significativo somente para Controle para dentro. Deve-se conceber que a raiva é uma emoção humana básica, sentida por seres humanos. Assim, a dificuldade desses adolescentes não se refere ao fato de sentir raiva, pois essa movimenta e permite a ação; a dificuldade está em expressá-la de forma assertiva e de controlá-la de forma adequada (Rosa et al., 2015).
Vale sublinhar que nas regressões com modelos simples, as chances de compor as subamostras com implicação em delito e em delito violento foram, respectivamente, aumentadas por Traço de Raiva / Expressão de Raiva e Controle da Raiva para Dentro. Todas as medidas de Raiva - exceto Expressão para Fora - também se mostraram significativamente associadas às chances de estar na subamostra formada por aqueles que relataram consumo frequente de álcool. Interessantemente, no modelo ajustado restou como relação significativa somente a existente entre Traço de Raiva e ter reportado uso frequente de álcool, corroborando a literatura. Fazer consumo de álcool poderia ser uma forma de lidar com a frustração e a raiva que as situações vividas podem gerar, uma espécie de coping e forma de buscar liberação de tensão (Agnew et al., 1996; Neves et al., 2021).
A expectativa, pelo referencial da TGT, era de que pontuações elevadas em Raiva, enquanto traço, principalmente, se relacionaria mais diretamente com a prática de delitos em geral e delitos violentos em particular (Lin et al., 2013; Wojciechowski, 2019), embora também seja plausível entender sua associação com outras condutas, como a do uso frequente de álcool, ainda na adolescência, pela TGT (James et al., 2015). Nesse ponto, é importante resgatar o fato de que, no presente estudo, não se focalizaram variáveis de fundo que, pelo Modelo Teórico, podem atuar como fatores que aumentam a probabilidade do coping ilegítimo (por exemplo: falta de supervisão e de apoio parental) e fatores que diminuem a probabilidade do coping ilegítimo (por exemplo: autoestima e apoio social) (Agnew, 2015; Hoffmann, 2018).
Por fim, no que se refere ao autocontrole, enquanto característica pessoal atuando como interveniente entre tensão-raiva-conduta, denota-se, primeiramente, que somente uma pequena proporção de adolescentes (9,8%), na amostra geral, pontuou de forma elevada (acima da norma) na escala EAC. Essa proporção, contudo, duplicou na subamostra composta por aqueles que reportaram implicação em ao menos um delito violento. Há evidência na literatura indicando que indivíduos com menor autocontrole apresentam maior probabilidade de reportar condutas antissociais/delituosas (Jiang, Chen & Zhuo, 2020; Bunch et al., 2018). Essa relação foi reiterada pelos resultados das regressões - no modelo simples e no ajustado - verificando-se, em ambos, o papel do baixo autocontrole na razão de chances de um adolescente reportar ter se implicado em ao menos uma conduta violenta. Isso evidencia que condutas antissociais, sobretudo as violentas, refletem em alguma medida a dificuldade, por parte do indivíduo, para regular emoções e controlar impulsos, mediante exposição a situações de tensão (Froggio, 2007; Komatsu et al., 2018).
Considera-se como limitação deste estudo a amostra ser pequena e ter sido formada por conveniência, o que pode ter concorrido para limitar a representação do fenômeno em foco. É interessante notar que muitos adolescentes não aceitaram colaborar com a pesquisa e que os que aceitaram, talvez, sejam os representativos de uma parcela com mais recursos. Estudos futuros devem envolver amostras maiores e mais representativas, buscando análises mais sofisticadas das possíveis relações entre as variáveis em foco, se possível envolvendo as denominadas variáveis de fundo, realizando, por exemplo, análises estruturais, para a confirmação das hipóteses levantadas.
Em termos de contribuições da investigação, pode-se considerar que este estudo fornece algumas evidências que são alinhadas com a Teoria Geral da Tensão, que indica que as adversidades escolares estão relacionadas a emoções negativas e com as condutas antissociais, assim como a raiva e o autocontrole. Mais especificamente, ter praticado violência escolar, ter a raiva como traço e mais baixo autocontrole parecem interagir e fomentar as condições para as condutas antissociais. Os adolescentes tendem a viver e a perceber as situações relacionais de modo intenso, incluindo aquelas geradoras de frustração e raiva. No estudo, contudo, chamou atenção a alta proporção de estudantes com pontuações acima da norma, nas escalas de raiva. Deve-se considerar que os sentimentos de raiva podem emergir de interações em contextos diversos, alguns não abordados por este estudo. A situação sanitária que o Brasil estava vivendo quando esta pesquisa foi realizada, com todos os desdobramentos da pandemia da COVID-19, e a insegurança por ela gerada, com a perda, por morte, de pessoas próximas, pode estar por de trás dos índices encontrados, relativos a essa emoção. De igual modo, deve-se considerar que a raiva pode estar ligada a outros desfechos, aqui não abordados, como problemas de saúde mental e comportamentos internalizantes. Não se pretendeu, portanto, aqui, reduzir e estereotipar vivencias, visto que isso pode (re)vitimizar os adolescentes. Por isso a importância de continuar a investir em pesquisas sobre as experiências relacionais e em outras situações nos ambientes de convivência dos adolescentes, que podem impactar suas emoções e a forma de reagir aos estressores. Considera-se que compreender de forma crítica quais tensões perpassam a vida dos adolescentes e seus impactos na saúde e no comportamento pode oferecer pistas para pensar intervenções educativas e profiláticas, que os ajude a lidar com os desafios da vida, de forma não prejudicial a si e aos outros, diferentes das baseadas em punição e em institucionalização dos jovens.