Introdução
Em meados de março de 2020, com o início da pandemia de COVID-19 e a suspensão das aulas presenciais em todos os níveis de ensino, os países promoveram iniciativas emergenciais de aprendizagem remota como uma solução de curto prazo para a continuidade dos processos de ensino e aprendizagem. Cada iniciativa dependeu da capacidade técnica das instituições, das suas habilidades organizacionais e da competência digital de sua comunidade educacional, conforme aponta o Instituto Internacional para a Educação Superior na América Latina e no Caribe (IESALC, 2020 ).
No Brasil, a autorização para as Instituições de Educação Superior (IES) substituírem as aulas presenciais por aulas mediadas por Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) aconteceu com a publicação da Portaria 343, de 17 de março de 2020, do Ministério da Educação (MEC, 2020 ). Após a publicação da portaria, a rede privada de ensino levou dias ou semanas para ajustar suas atividades e se adaptar ao ensino remoto, enquanto que a maioria das IES públicas levaram praticamente todo o primeiro semestre para fazer essa reorganização (Kohls-Santos, 2021 ). Dentre os fatores que justificam essa diferença de prazo para a adaptação, estão a falta de recursos e a carência de docentes qualificados.
A paralisação das aulas presenciais evidenciou mudanças necessárias que estavam ocorrendo no contexto educacional mesmo antes da pandemia, como o estabelecimento de estratégias de ensino-aprendizagem e inovação pedagógica com e por meio das tecnologias digitais (Kohls-Santos, 2021 ). Desta forma, as IES que já estavam se adaptando a essas mudanças tiveram mais facilidade de adaptação ao ensino remoto comparativamente a IES que não estavam se adaptando.
A continuidade das aulas presenciais de forma remota exigiu das instituições a aplicação de três etapas: i. diagnóstico da situação; ii. desenho e treinamento, para fortalecer as competências instrucionais e digitais dos envolvidos; e iii. suporte e acompanhamento técnico-pedagógico contínuo (Martín-Cuadrado, Lavandera-Ponce, Mora -Jaureguialde, Sánchez-Romero, & Pérez-Sánchez, 2021 ). Diante disso, após a autorização do ensino remoto emergencial, as IES se mobilizaram em ajustar seus recursos tecnológicos e promover treinamento adequado aos docentes e alunos.
É importante destacar que, além das dificuldades mencionadas, existem outras que promoveram a adoção tardia da implantação do ensino remoto em algumas IES. Dentre elas, destacam-se a dificuldade de acesso à tecnologia, a falta de equidade devido a desigualdades regionais, e a falta de infraestrutura adequada. No entanto, o foco desta pesquisa é a competência digital dos docentes, uma vez que a pandemia destacou ainda mais sua importância na implementação de práticas de aprendizagem aprimoradas por tecnologia em todos os níveis de educação (Sillat, Tammets, & Laanpere, 2021 ).
Dentre as competências básicas que todo cidadão deveria ter para a aprendizagem permanente, encontra-se a competência digital (Comissão Europeia, 2006 ). Ela é considerada um direito humano e seu conceito vai além da competência técnica relacionada à tecnologia, assumindo que inclua áreas como: gestão da informação; colaboração; capacidade de se comunicar e compartilhar informações; criação de conteúdo e conhecimento; ética e responsabilidade; avaliação e solução de problemas; e, finalmente, a competência técnica (Ferrari, 2012 ). Assim, para ser considerado digitalmente competente, é preciso um determinado conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes em relação às TIC, (Lopes Pereira, Aisenberg Ferenhof, & Spanhol, 2019 ) e não somente o seu uso (Durán Cuartero, Prendes Espinosa, & Gutierrez Porlan, 2019 ).
No contexto educacional, define-se a competência digital como o conjunto de capacidades e habilidades que incorporam e utilizam adequadamente a TIC como recurso metodológico, integrado ao processo de ensino-aprendizagem, tornando-se Tecnologias de Aprendizagem e Conhecimento com uma aplicação didática clara (Tourón, Martín, Navarro Asencio, Pradas, & Íñigo, 2018 ).
Portanto, o conceito de competência digital no ensino contempla (Durán Cuartero et al., 2019 ): i. as dimensões apropriadas do conceito de competência digital (componente tecnológico/técnico, componente comunicativo/informacional e alfabetização multimídia); ii. a essas dimensões, acrescenta-se a capacidade de uso efetivo de tecnologias em contextos educacionais com critérios pedagógicos. Ainda no contexto educacional, diferentes atores compõem a competência digital. Alunos, docentes e outros profissionais da educação, além da própria instituição, formam um fenômeno integrado. A competência digital é uma tarefa organizacional, influenciada e impulsionada por vários fatores contextuais incorporados dentro e através de uma organização escolar mais ampla (Pettersson, 2018 ).
A competência digital no contexto educacional requer um conjunto mais complexo de competências se comparado a outras áreas (From, 2017 ). Por isso, modelos específicos de competência digital para a área educacional surgiram. Dentre esses modelos, destaca-se o DigCompEdu, de iniciativa da União Europeia, que tem o objetivo de oferecer uma base comum para desenvolver, comparar e discutir diferentes instrumentos para o desenvolvimento da competência digital de docentes a nível nacional, regional ou local (Lucas & Moreira, 2018 ; Redecker, 2017 ). Este modelo propõe 22 competências organizadas em seis áreas: envolvimento profissional, recursos digitais, ensino e aprendizagem, avaliação, capacitação dos estudantes e promoção da competência digital dos estudantes. Ressalta-se que as áreas e competências do DigCompEdu são interdependentes e complementares, ou seja, algumas competências poderiam ser classificadas ou tem relação com mais de uma área.
Outro modelo aceito mundialmente e que foi objeto de estudo e aplicação em todos os níveis de ensino é o Technological Pedagogical Content Knowledge (TPACK). Sua estrutura deriva da noção de que a integração tecnológica em um contexto educacional específico precisa de um alinhamento cuidadoso entre o conteúdo, a pedagogia e a tecnologia. Portanto, os docentes que desejam integrar a tecnologia em sua prática de ensino precisam ser competentes nesses três domínios (Mishra & Koehler, 2006 ; Voogt, Fisser, Pareja Roblin, Tondeur, & van Braak, 2013 ).
Uma das evoluções do TPACK trata da educação superior e é denominado "Compromissos e competências do docente de qualidade". Nesta proposta para o TPACK foram adicionados os elementos de pesquisa e inovação. A pesquisa aliada à inovação envolve: reflexão sobre a área disciplinar e sobre sua prática docente; investigação pedagógica e abertura a inovações metodológicas; criação e aplicação de novos conhecimentos, perspectivas, metodologias e recursos nas diferentes dimensões da atividade docente, com o objetivo de melhorar a qualidade do processo de ensino-aprendizagem (García Aretio, 2014, 2020 ).
No modelo, ainda é possível destacar os compromissos que um bom professor precisa assumir, sendo eles: profissional (cumprimento das obrigações contratuais assumidas - para transformar o ensino em uma profissão); social (a educação é um direito fundamental); ético; de treinamento e atualização permanente; colaborativo com docentes e redes de aprendizagem; de gestão (que cada professor adquire voluntariamente com a instituição onde trabalha) (García Aretio, 2014, 2020 ).
Outro trabalho relevante acerca dos modelos que tratam da competência digital de docentes da educação superior foi realizado por Durán Cuartero, Gutiérrez Porlan, & Prendes Espinosa (2016) . Na pesquisa, foram comparados modelos de competência digital: para a cidadania, para os docentes de forma geral e especificamente para os docentes universitários. A competência digital para os cidadãos abrange um componente mais tecnológico, onde a competência diz respeito ao conhecimento e uso das TIC para qualquer área da vida pessoal. A partir disso, a competência digital dos docentes inclui os elementos da competência para os cidadãos e agrega todos os elementos do componente pedagógico relacionados ao uso das tecnologias como recursos para o ensino. E, finalmente, como fator diferenciador, os modelos de competência digital de docentes universitários, além dos elementos mencionados, acrescentam aqueles relacionados à pesquisa (uso de recursos informacionais, disseminação, análise de dados ou outros procedimentos de pesquisa) e de gestão ou administração. Assim, são três as áreas de atuação do professor universitário: ensino, pesquisa e gestão (Durán Cuartero et al., 2016 ).
Nos modelos aqui discutidos, observa-se que para a educação superior existem elementos específicos que devem ser considerados, como a pesquisa e a gestão universitária. No contexto brasileiro, existe mais um elemento que faz parte das atividades docentes e do tripé da educação superior, que são as atividades de extensão. Essas atividades devem promover a interação transformadora entre as IES e os outros setores da sociedade, por meio da produção e da aplicação do conhecimento, em articulação permanente com o ensino e a pesquisa (MEC, 2018 ). As atividades de ensino, pesquisa e extensão devem estar integradas e articuladas em conjunto. Essa articulação é prevista em um processo pedagógico único e interdisciplinar (MEC, 2018). Desta maneira, o desenvolvimento de competências digitais em docentes da educação superior deve contemplar, além do ensino, as atividades de pesquisa, extensão e gestão universitária.
Diante do exposto, o objetivo geral desta pesquisa é analisar a competência digital de docentes da educação superior brasileira durante o período de adequação ao ensino remoto imposto pela pandemia de COVID-19. Espera-se que seus resultados possam colaborar com ações futuras das IES num período pós-pandemia, na elaboração de planos de formação de docentes, ou em iniciativas públicas em relação à educação superior.
Método
Desenho
O presente estudo é classificado como descritivo, com enfoque misto, qualitativo e quantitativo. Trata-se de uma pesquisa de levantamento (survey), cuja coleta de dados foi realizada por meio de um questionário online, aplicado a docentes da educação superior brasileira nos meses de junho e julho de 2020, ou seja, no início da adoção do ensino remoto por boa parte das universidades.
Participantes
Segundo o Censo da Educação Superior de 2019, publicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2020 ), o Brasil possui 399.428 docentes atuando na educação superior, sendo que 186.217 (46,62%) atuam em IES públicas e 213.211 (53,38%) em IES privadas. Obteve-se 322 respostas válidas para o questionário e a amostra é considerada não probabilística de uma população finita. Este número corresponde a um nível de confiança de 99% com erro inferencial de 7% (Bruni, 2013 ).
Instrumentos
O questionário é constituído por duas partes: i) caracterização dos respondentes e sua percepção sobre o ensino remoto e ii) autoavaliação da competência docente digital. Enquadra-se como um estudo de corte transversal, pois os dados são levantados em um determinado período, normalmente com base em uma amostra aleatória (dados de corte seccional) (Richardson, 2017 ), obtendo uma imagem instantânea sobre a situação social existente no momento da coleta dos dados. As variáveis para a caracterização da amostra e levantamento de dados sobre o ensino remoto encontram-se na Tabela 1.
Para identificar a competência digital dos docentes (segunda parte do questionário), foi criada uma avaliação por competências baseada em rubricas. As unidades de competências foram definidas e as rubricas desenvolvidas com base no DigCompEdu (Redecker, 2017 ), no modelo de competência digital para a educação superior de Durán Cuartero et al. (2016) e nas premissas do TPACK para a educação superior (García Aretio, 2014, 2020 ). Os modelos apresentam uma lista extensa e exaustiva de competências. Para simplificar, foi optado por trabalhar com 11 unidades, interdependentes, que representam todas as áreas dos modelos e fornecem um resumo das competências. Essas variáveis estão descritas na Tabela 2.
Para cada unidade de competência apresentada, existem 5 níveis (rubricas) para avaliação da competência digital dos docentes:
1. Não tem conhecimento: é o nível mais básico, onde o professor não possui conhecimento sobre o assunto, conhece muito pouco ou não tem interesse.
2. Motivação: reconhece a importância da competência e está começando a conhecer sobre o assunto.
3. Atitude: além de reconhecer a importância, o professor pesquisa sobre o assunto e inicia a sua adoção em algumas atividades docentes.
4. Tem atitude e habilidade: o professor tem motivação, conhece algumas ferramentas e possui habilidades para utilizá-las em suas atividades docentes.
5. Conhecimento, habilidade, atitude: é o nível mais alto de desenvolvimento da competência digital. O professor tem motivação, conhecimento, atitudes e habilidades para utilizar as TIC nas atividades docentes que forem adequadas ao seu uso.
As rubricas completas com as respectivas frequências de ocorrência podem ser conferidas no Apêndice 1.
Procedimentos
Previamente a aplicação, o questionário foi submetido a um pré-teste por 9 professores do ensino superior, envolvidos com temas relacionados à educação superior. Após os devidos ajustes, os dados foram coletados de forma on-line, por meio da plataforma Google Forms. No início do questionário, foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), com os objetivos da pesquisa e assegurando o anonimato do participante.
O questionário foi distribuído por correio eletrônico e redes sociais, pelos professores pertencentes a rede de contatos dos pesquisadores.
Análise de dados
Os dados foram analisados de forma descritiva, usando planilhas eletrônicas para a compilação dos resultados.
Para a análise quantitativa, as variáveis foram consideradas como categóricas. Todas as variáveis da Tabela 2 foram relacionadas com todas as variáveis da Tabela 1 para verificar se há relação significativa entre as competências digitais dos docentes e a percepção sobre o ensino remoto e outras características particulares da amostra.
Para relacionar as variáveis, foi realizado o teste qui-quadrado de Pearson, cálculo do grau de liberdade e do p-valor. O teste qui-quadrado identifica se existe uma associação significativa entre duas variáveis categóricas e a significância é medida pelo p-valor e se ele for inferior a 0,05, rejeita-se a hipótese de que as variáveis são independentes e aceita-se a hipótese de que elas estão relacionadas (Field, Miles, & Field, 2012 ). Para as variáveis onde identificou-se relação significativa, foram geradas tabelas de contingências com as frequências de respostas. Adicionalmente, a variável/unidade de competência atualizacao foi relacionada com as demais unidades de competências, para identificar se há relação entre as maneiras do professor se atualizar e o desenvolvimento das competências digitais.
Resultados
Os resultados são apresentados em duas etapas: i. análise descritiva com a caracterização da amostra e com a percepção dos professores sobre o ensino remoto; e ii. análise das relações entre as variáveis estudadas.
Análise descritiva
Com relação a caracterização da amostra, a Tabela 3 apresenta dados sobre a faixa etária, área de conhecimento a qual o professor pertence, gênero, se o professor atua em universidade pública ou privada, forma de contratação e carga horária de trabalho docente.
Nota-se uma predominância de docentes de IES públicas em relação às IES privadas e, como consequência, a forma de contratação do docente é concursado/efetivo. As áreas de conhecimento predominantes são as Ciências Sociais Aplicadas e Exatas. Além disso, convém destacar que a distribuição entre as diversas regiões do Brasil também não é proporcional, sendo que 70% dos docentes são da região sul do Brasil, 17% da região nordeste, 8% da região sudeste, 2% da região norte e 1% não identificaram sua localização. Para as demais variáveis, não há diferenças significativas na distribuição de frequência entre os grupos.
Sobre a modalidade remota de ensino, a Tabela 4 sintetiza as variáveis que dizem respeito a percepção dos docentes.
Apesar do ensino remoto não ter sido adotado por algumas IES, a maioria delas deu continuidade as aulas, assim como a maior parte dos docentes acha uma alternativa viável, mesmo que parcialmente. Isso provavelmente se deve ao fato de que a maior parte dos respondentes possui acesso à internet e recursos tecnológicos próprios para a condução das aulas remotas (96% possuem notebook, 36% computador e 91% smartphone), o que facilitou a adoção do ensino remoto e a continuidade da maior parte das atividades docentes dos respondentes, conforme disposto na Tabela 5.
As "Outras atividades" constantes na Tabela 5 referem-se à continuidade de projetos de extensão, atividades de gestão/administração e desenvolvimento de cursos para a formação de docentes. Todas essas atividades são inerentes ao professor da educação superior e compõem o tripé ensino, pesquisa e extensão.
Os desafios encontrados na condução das aulas remotas durante a quarentena estão apresentados na Tabela 6, em ordem decrescente de frequência.
Os principais desafios colocados pelos docentes (tempo de preparação das aulas, sobrecarga informacional, dificuldade de interação com os alunos, dificuldades para avaliação) estão relacionados com o baixo desenvolvimento de algumas competências digitais. Esta relação se comprova ao analisar a distribuição de frequências das unidades de competência digital, apresentadas na Figura 1.
As competências que obtiveram maior frequência nas rubricas 1 e 2, ou seja, aquelas que ainda precisam ser melhor desenvolvidas pelos docentes, são: adoção de estratégias de Gestão da Informação, que podem auxiliar na gestão da sobrecarga informacional; desenvolvimento de ferramentas para avaliações online, que auxiliam na solução desta dificuldade, apontada pelos docentes; uso de ferramentas para promover a gamificação e uso de ferramentas para a aprendizagem colaborativa, que melhoram o problema da interação com os alunos. De forma geral, competências digitais mais desenvolvidas facilitam todo o processo de planejamento e execução das aulas online, além do desenvolvimento de outras atividades inerentes ao docente da educação superior, como a pesquisa, extensão e gestão universitária.
Análise das relações entre as variáveis
Para compreender o desenvolvimento da competência digital em docentes da educação superior, as variáveis que tratam das suas características a da sua percepção sobre o ensino remoto foram confrontadas com as variáveis que tratam das competências digitais. De todas as relações efetuadas, sete se destacaram, evidenciando que há dependência entre as variáveis (p-valor < 0,05). Essas relações podem ser conferidas na Tabela 7.
Ao relacionar a variável genero com a variável solucoesProblemas, verifica-se que o gênero masculino tem a competência digital mais desenvolvida para a solução de problemas técnicos decorrentes da utilização de dispositivos digitais em sala de aula, apresentando um pouco mais de autonomia do que o gênero feminino nessa questão. A tabela de contingência dessa relação indica que 36% do gênero feminino marcou as rubricas 4 e 5, enquanto o gênero masculino concentra 54% dos respondentes. As demais competências não apresentaram diferenças significativas entre gênero.
Para a relação entre as variáveis instituicao e ferramentasAvaliacoes observa-se que a competência digital relacionada ao uso de ferramentas para avaliação do aprendizado é mais desenvolvida em docentes que atuam em instituições privadas do que aqueles que atuam em instituições públicas.
Conclusão semelhante acontece ao relacionar as variáveis contratacao e ferramentasAprendizagemColaborativa. Docentes que possuem a forma de contratação "Concursado ou efetivo" (modalidade predominante em IES públicas) possuem maior concentração dos níveis de competências das rubricas 1 e 2 (54%). Aqueles que possuem a modalidade de contratação "CLT - Consolidação das Leis Trabalhistas" e "Temporário" (modalidades predominantes em IES privadas) possuem menor concentração de frequências nas rubricas 1 e 2.
A relação entre as variáveis modalidadeRemota e ferramentasAvaliacoes aponta que os docentes que atuam em IES que adotaram o ensino remoto em todos os cursos antecipadamente são os que possuem maiores competências para realizar avaliações on-line. A pesquisa identificou que as universidades privadas foram as pioneiras em adotar o ensino remoto.
O mesmo ocorre ao relacionar as variáveis modalidadeRemota e ferramentasCriacaoConteudo. A relação indica que IES que adotaram o ensino remoto em todos os cursos no início da pandemia possuem os docentes com a competência digital para a criação de conteúdo digital mais desenvolvida do que aqueles que atuam em IES que não adotaram o ensino remoto antecipadamente.
Outra relação de dependência foi encontrada ao relacionar as variáveis trabalhoQuarentena e avaliacaoInformacaoWeb. Ela aponta que docentes que estão trabalhando o mesmo que antes da pandemia possuem alta competência digital para avaliação da informação disponível na web. Os docentes que estão trabalhando menos do que antes da pandemia, provavelmente por suas IES não terem adotado o ensino remoto previamente, são aqueles que possuem menores competências em avaliação da informação.
A última relação encontrada foi entre as variáveis continuidade e atualização. Ela indica que a maior parte dos docentes que não costumam se atualizar ou fazer cursos para incorporar recursos tecnológicos nas aulas acham o ensino remoto uma alternativa inviável. Por outro lado, aqueles que costumam fazer cursos, obrigatórios ou não, são os que acham o ensino remoto uma alternativa viável ou viável com restrições.
A unidade de competência 11 (atualizacao) relaciona-se a formação continuada do docente, ou seja, com as formas de se atualizar e incorporar novos dispositivos, aplicativos ou ferramentas nas aulas. Essa variável foi relacionada com todas as demais unidades de competência digital, para identificar se existe relação entre a forma que o professor trata a sua formação e o desenvolvimento das demais competências digitais. Todas as relações apresentaram relação de dependência (p-valor < 0,05) e os resultados das estatísticas podem ser conferidos na Tabela 8.
Esses resultados apontam que os docentes que costumam fazer cursos, obrigatórios e não obrigatórios, sobre a incorporação de recursos tecnológicos na educação e que trocam experiências com outros docentes, buscando a inovação, são os que possuem um maior desenvolvimento de todas as competências digitais analisadas.
Discussão
A discussão está agrupada segundo alguns aspectos relevantes encontrados em outras pesquisas sobre competência digital realizadas, principalmente, durante a pandemia de COVID-19. São elas: diferenças entre gênero, diferenças entre IES públicas e privadas e sobre a formação continuada de docentes.
Diferenças entre gênero
A presente pesquisa encontrou diferença significativa a favor do gênero masculino na competência relacionada a solução de problemas técnicos decorrentes da utilização de dispositivos digitais em sala de aula. Nas demais competências, não foram encontradas diferenças significativas. De forma semelhante, Pozos & Tejada (2018) encontraram competências semelhantes em professores e professoras, de forma geral, exceto na competência que diz respeito ao meio ambiente, saúde e segurança no trabalho com o uso das TIC na profissão docente, onde as professoras possuem maiores competências que os professores.
Portillo, Garay, Tejada, & Bilbao (2020) e Zhao, Pinto Llorente, Sánchez Gómez, & Zhao (2021) apontaram menores valores médios de desenvolvimento de competência digital em professoras do que em professores, de forma geral. Esses resultados corroboram parcialmente com a pesquisa de Guillén-Gámez, Mayorga-Fernández, & Contreras-Rosado (2021) , que encontraram competências digitais ligeiramente mais desenvolvidas no gênero masculino em relação ao gênero feminino, exceto na questão que aborda a intenção de incorporar as tecnologias da informação nas aulas e continuar o processo de treinamento e formação para desenvolvimento das competências digitais, onde o gênero feminino possui uma maior intenção do que o gênero masculino.
Portanto, percebe-se que, de forma geral, professores e professoras possuem a competência digital desenvolvida de forma semelhante, exceto em alguns casos pontuais, que precisam de uma investigação mais profunda e que poderiam ser justificados por algum motivo contextual.
Diferenças entre IES públicas e privadas
Ao relacionar as competências digitais de docentes de IES públicas e privadas, foram encontradas diferenças significativas a favor dos docentes de IES privadas em três competências: uso de ferramentas para avaliações, para a aprendizagem colaborativa e para a criação de conteúdo. Nas demais competências, os níveis foram semelhantes.
Pozos & Tejada (2018) também encontraram níveis semelhantes nos docentes de IES públicas e privadas, exceto na competência que se refere à avaliação dos processos de construção do conhecimento, onde o corpo docente das IES privadas apresenta proficiência significativamente superior ao das públicas. Já Portillo et al. (2020) encontraram, de forma geral, níveis mais baixos de competência digital em docentes de IES públicas comparativamente àqueles que atuam em instituições privadas.
As IES privadas tiveram uma tratativa diferenciada com relação a urgência da continuidade das aulas (Kohls-Santos, 2021 ), pois suas receitas deixariam de existir caso elas fossem suspensas e suas atividades ficariam comprometidas. A rápida retomada das aulas de forma remota e a intensificação na capacitação de seus docentes justifica, nas pesquisas mais recentes, uma maior diferença entre os níveis de competência digital de docentes de IES públicas e privadas.
Formação dos docentes
Docentes que não costumam se atualizar ou fazer cursos para incorporar recursos tecnológicos nas aulas acham o ensino remoto uma alternativa inviável. Da mesma forma, docentes que costumam investir em uma formação contínua possuem os maiores níveis de competência digital. Resultados semelhantes foram encontrados por Pozos & Tejada (2018) , onde docentes que se submetem a uma formação contínua possuem níveis de competência digital significativamente superiores a aqueles que não se submetem à formação. Além da importância da formação contínua, a pesquisa demonstra a necessidade de apoio e acompanhamento contínuo para a integração adequada das TIC no ensino universitário.
As IES possuem especificidades que não devem ser ignoradas e se tornam ainda mais importantes quando considerada a variedade de objetivos e culturas existentes no universo da educação superior. Desta forma, o foco não deve ser apenas o investimento em infraestrutura tecnológica, sendo fundamental investir na formação de docentes e gestores (Rodríguez-Abitia, Martínez-Pérez, Ramirez-Montoya, & Lopez-Caudana, 2020 ) para atender a essas especificidades.
Assim, as IES devem fornecer treinamento adequado aos seus docentes, motivá-los a autoaprendizagem e desenvolvimento profissional, incentivá-los a troca de experiências com outros docentes, aumentar os investimentos com a sua formação, bem como o desenvolvimento de um plano de formação (Shurygin, Ryskaliyeva, Dolzhich, Dmitrichenkova, & Ilyin, 2021 ).
Diversas pesquisas têm apontado fragilidades no desenvolvimento de competências digitais dos docentes, o que denota a necessidade de desenvolvimento de modelos e planos de formação pelas IES, contemplando as diferentes modalidades de ensino, para a formação continuada (Dias-Trindade, Sara; Espírito Santo, 2021 ; Santos, Pedro, & Mattar, 2021 ), ou seja, é necessário sistematizar a integração da competência digital no processo de formação dos docentes.
Considerações Finais
Os resultados contribuem para a elaboração de planos de formação pelas instituições e para a tomada de decisões no que diz respeito a continuidade das aulas em um período pós pandemia. Para elaborar os planos de formação de forma a incorporar a competência digital neles, as IES precisam, primeiramente, identificar o nível de competência digital dos seus docentes. Para isso, verifica-se que o instrumento de pesquisa elaborado a partir dos modelos de competência digital e baseado em rubricas torna-se eficaz para um diagnóstico geral da competência digital dos docentes da instituição e pode ser utilizado por qualquer IES. É preciso identificar se os docentes possuem conhecimento, motivação, atitude e habilidade em relação às TIC, sendo que, tudo parte da motivação. Mesmo se não há conhecimento ou habilidade, mas há motivação para aprender e inovar, é possível elaborar planos de formação para desenvolver os docentes e melhorar sua competência digital.
O instrumento de pesquisa é consideravelmente menor se comparado com outros instrumentos para avaliar a competência digital docente, no entanto, as unidades de competência selecionadas e as rubricas desenvolvidas integram todas as áreas dos modelos de competência digital utilizados como base para este trabalho e são interdependentes. A visão geral fornecida pelos resultados da pesquisa converge com a maioria das pesquisas que avaliam a competência digital de professores.
Conclui-se que a competência digital foi um item fundamental no processo de ensino-aprendizagem durante a pandemia e a recomendação é que os docentes aprimorem essa competência (Martín-Cuadrado et al., 2021 ). Criação de estratégias de aprendizagem relevantes, uso de ferramentas adequadas (Zhao, Pinto Llorente, & Sánchez Gómez, 2021 ) e a formação em competência digital de docentes da educação superior são peças fundamentais para uma educação de qualidade (Cabero-Almenara, Guillén-Gámez, Ruiz-Palmero, & Palacios-Rodríguez, 2021 ). Ainda, se as TIC não tivessem sido integradas ao processo de ensino-aprendizagem durante o ano de 2020, possivelmente a continuidade das aulas não teria sido possível (Cabero-Almenara et al., 2021 ).
Universidades que adotam melhores recursos tecnológicos e possuem planos de formação para seus docentes, voltados para a aplicação pedagógica da tecnologia, são as que possuem docentes com um nível mais avançado de competências digitais (Jorge-Vázquez, Náñez Alonso, Fierro Saltos, & Pacheco Mendoza, 2021 ). Isso permite concluir que é necessário que as políticas de educação priorizem ações que promovam o desenvolvimento de competências digitais dos docentes, ou seja, é necessário um alinhamento entre políticas e programas de formação continuada das universidades (Sánchez-Antolín, Ramos, & Sánchez Santamaría, 2014 ).
Para estudos futuros, sugere-se diagnosticar como as universidades brasileiras tratam a formação dos seus docentes, principalmente a formação em competência digital, bem como identificar como a competência digital pode ser integrada nos programas de formação continuada das universidades.
Como limitação da pesquisa, tem-se a estratégia de amostragem, pois o questionário foi enviado para grupos de pesquisa e docentes da rede de contato dos pesquisadores. Por isso, boa parte dos respondentes concentram-se na mesma região do Brasil e em áreas de conhecimento semelhantes. Portanto, a amostra é considerada não probabilística, dificultando a generalização dos dados para todos os docentes da educação superior brasileira.