Historicamente a concepção de criatividade tem se mostrado complexa e ampla, demonstrando que suas definições ficaram dispersas durante muito tempo. As conceituações sobre a criatividade são inúmeras e costumam variar, envolvendo excesso de permissividade, e até debates sobre suas especificações ou delimitações, distinguindo-a de outros processos cognitivos (Kaufman, 2012; Morais et al., 2015; Runco & Jaeger, 2012). Além disso, no estudo da criatividade são encontradas terminologias vagas ou no melhor dos casos, implicitamente entendidas (O’Connor et al., 2013; Gonzáles, 2012). Na Grécia antiga a palavra criatividade e seus derivados não faziam parte do vocabulário, em seu lugar usavam termos mais próximos à fabricação (Sternberg, 2006).
As definições sobre criatividade indicam que se trata de um fenômeno multifacetado, originário de múltiplas fontes, podendo ser de origem cognitiva, emocional, social, ou ainda irracional (Wechsler, 2008). Entretanto, existe consenso entre os pesquisadores que o fenômeno criativo implica na emergência de algo novo ou o aperfeiçoamento do que já existe (Glaveanu, 2011; Kaufman & Beghetto, 2011; Porto-Ribeiro & Fleith, 2018). Embora o conceito de criatividade seja bastante amplo, a um consenso entre os estudos, que criatividade é composta por eficácia e por originalidade. Essa definição consensual refere a algo comum aos conceitos acadêmicos sobre criatividade (Colin, 2017). A definição “padrão” de criatividade (Runco & Jaeger, 2012) é fruto de décadas de discussões e debates e visa alcançar um ponto de acordo entre os pesquisadores de criatividade.
Apesar dos esforços de pesquisadores (Guilford, 1950; Torrance, 1965; Sternberg, 2012) em obter evidências sobre a expressão da criatividade, ainda hoje, quando se discute a criatividade não é novidade perceber que as pessoas desenvolveram crenças sobre a natureza e as fases de desenvolvimento da criatividade. Aparecem também questões, como, por exemplo, se a criatividade é inata ou pode ser desenvolvida e nutrida, ou quais são os traços ou comportamentos da pessoa criativa, ou ainda como definir um produto como criativo, etc. (Nakano, 2018; O’Connor et al., 2013). Crenças leigas podem influenciar o julgamento sobre a criatividade, podendo exercer impacto nas decisões políticas ou administrativas, assim como no entendimento de professores, pais e até gestores (Lim & Plucker, 2001; Silva & Nakano, 2012). O conhecimento leigo refere-se à forma como os sujeitos constroem significados a partir da experiência, referidos à ordem social e cultural como explicações que dão sentido aos acontecimentos. Esse saber leigo inter-relaciona as diferentes dimensões da vida, integrando o natural, o mágico-religioso, o sociopolítico, etc. (Silva & Alves, 2011).
As crenças leigas não se referem apenas ao conceito de criatividade, mas também sobre quais características de personalidade são facilitadores às realizações criativas, ou ainda quais são os estados mentais e circunstâncias que facilitariam pensamentos criativos (Chermahini & Hommel, 2010; Oliveira et al., 2016). Porém já existe na literatura um considerável número de pesquisas que indicam a existência de vários processos mentais que podem resultar em algo criativo (Baas et al., 2015; Sio & Omeron, 2009), sendo estes derivados tanto de esforços conscientes, utilizando-se de técnicas estimuladoras da criatividade (Scott et al., 2004), ou inconscientes, surgindo de ideias inesperadas ou insights (Jankowska & Karwowski, 2015; Runco, 2010). Do mesmo modo existem debates sobre quais são as condições mais facilitadoras para a criatividade, como por exemplo, ambientes relaxantes, viagens, ou estar em presença de pessoas criativas, como salientam (Froeschle & Crews, 2010). Assim sendo, conhecer melhor estas crenças, ou metacognições, pode ajudar aos educadores, consultores, gestores, ou todos aqueles que se preocupam com o desenvolvimento da criatividade para diferentes propósitos.
Uma forma de buscar entender a criatividade é atraves das teorias implícitas, em contraste com as teorias científicas, pois são estas as idéias mantidas por pessoas não especializadas. Uma maneira clássica de medir as concepções populares de pessoas criativas é pedir aos leigos que identifiquem as características de indivíduos altamente criativos ou que definam criatividade (Hopp et al., 2016). Teorias implícitas podem influenciar o comportamento de aprendizagem, as abordagens que os indivíduos adotam para situações de aprendizagem e desempenho, e os objetivos de aprendizagem que os indivíduos estabelecem, bem como, indiretamente, suas realizações, inteligência e criatividade (Hopp et al., 2016). Entretanto essas crenças, geralmente são incompletas e não estão alinhadas as suas próprias experiências e evidencias empíricas (Baas et al., 2015). Assim sendo, torna-se importante investigar as concepções dos leigos sobre a criatividade para que se compreenda os conceitos populares sobre este fenômeno.
O caminho duplo para a concepção da criatividade argumenta que a criatividade é a geração de ideias originais e apropriadas, sendo uma função da flexibilidade e da persistência cognitiva, considerando-se também que existem variáveis situacionais que podem influenciar a criatividade (Nijstad et al., 2010). Por sua vez, a motivação e a persistência são elementos essenciais para o alcance de uma produção criativa, demonstrando a importância serem focados esforços em uma determinada tarefa (Almeida & Wechsler, 2015; Rietzs et al., 2007). Também valores culturais podem influenciar as preferências por tipos de ambientes que facilitem o processo criativo, como por exemplo a utilização de técnicas grupais para estimulação da criatividade, preponderante no EUA, em contraste com trabalhar em forma individualizada, preferida por países no oriente (Isaksen et al., 2011; Munford et al., 2012). Entretanto, pouco se sabe ainda sobre a concepção de criatividade em países latinos quando comparado com outras culturas (Morais et al., 2015).
Considerando a importância das crenças leigas sobre criatividade e as possíveis influências culturais sobre as mesmas, este estudo teve por objetivo realizar uma comparação transcultural, replicando no contexto brasileiro uma parte da pesquisa publicada por Baas et al. (2015) sobre a concepção de criatividade, a natureza e consequências nas crenças de leigos sobre o tema. No estudo dos Países Baixos, 176 estudantes universitários sem conhecimento prévio sobre a disciplina de criatividade foram questionados se a criatividade emergia espontaneamente ou intencionalmente, ou provinha de pensamentos livres, ou atenção desfocada. Depois os participantes foram perguntados até que ponto algumas atividades, tais como viajar, relaxar ou até mesmo trabalhar sob pressão de tempo poderia resultar ou não em produtos criativos. E em terceiro lugar, foi perguntado aos participantes se a criatividade seria mais estimulada quando se está sozinho, ou junto com outras pessoas, de forma geral, ou ainda na compartilhando ideias com pessoas criativas. Os resultados demostraram que os leigos têm fortes crenças sobre os processos específicos e circunstâncias que contribuem com a criatividade, indicando que a criatividade apareceria de forma inesperada, de forma relaxada e preferencialmente na companhia de outras pessoas criativas. As ideias leigas compuseram um primeiro fator com atividades concentradas sob pressão de tempo e no trabalho e um segundo fator, com atividades de relaxamento, em viagens em situações de atenção desfocada.
Nesse estudo procurou-se examinar e comparar a percepção de universitários brasileiros, leigos em criatividade, com aquela apresentada pelos estudantes dos Países Baixos sobre os processos criativos específicos e circunstâncias que facilitariam a emergência de ideias criativas. Foi hipotetizado que existem diferenças nas percepções dos leigos destes países devido as suas raízes culturais, tendo os brasileiros uma herança latina ao contrário dos holandeses com predominância das raízes germânicas.
Método
Participantes
A pesquisa foi realizada com 292 estudantes de graduação dos cursos de psicologia, pedagogia e administração de três universidades particulares da região de Campinas, interior do estado de São Paulo, sendo 83% do sexo feminino, com idade média de 24 anos (DP= 7.73) dos cursos de Psicologia (30.47%), Pedagogia (38.01%), Administração (14.04%), Relações Públicas (10.61%) e Publicidade (6.84%). Os estudantes foram considerados leigos por não terem cursado nenhuma disciplina sobre criatividade ou que abordasse este tema. A escolha da amostra se deu por conveniência. A amostra dos Países Baixos, tal como descrita no artigo de Baas et al. (2015) foi composta por 176 estudantes de graduação (Mulheres= 73.9%), com idade média de 20 anos (DP= 5.0), que não tiveram contato com a disciplina de criatividade. Esta amostra foi coletada por conveniência entre estudantes que preenchiam créditos para uma disciplina. Não se possui informação qual era a disciplina cursada.
Instrumento
Um questionário brasileiro com 11 itens foi criado para avaliar as mesmas áreas relacionadas no estudo 1, publicado no artigo de Baas et al. (2015) a fim de proporcionar uma comparação transcultural. O instrumento holandês, indagava sobre as situações ou circunstâncias que propiciam o aparecimento da criatividade: 1) por esforço consciente; 2) de forma desfocada; 3) de modo deliberado; 4) de maneira inesperada; 5) durante viagens; 6) atividades relaxantes; 7) durante o trabalho; 7) sob pressão de tempo; 9) quando se está sozinho; 10) na presença de outras pessoas; 11) com pessoas criativas. Do mesmo modo como realizado no estudo dos Países Baixos foi utilizado um questionário e não um teste validado.
Procedimento
Os estudantes brasileiros foram convidados a participar da pesquisa após explicação dos seus objetivos durante o segundo semestre de 2018. Responderam então ao Termo de Consentimento Livre em sala de aula. Na amostra dos Países Baixos também os estudantes assinaram um Termo de Consentimento, tal como explicado no artigo de Baas et al. (2015).
Analise de dados
Os resultados obtidos dos estudantes brasileiros em cada uma das áreas medidas pela escala foram comparados com os resultados dos estudantes holandeses, descritos no artigo de Baas et al. (2015), por meio do pacote SPSS. Foram feitas análises descritivas e o teste t de Student para identificar se existiam diferenças significativas entre os dois países. Do mesmo modo que ocorreu no estudo dos Países Baixos, as pontuações na escala pelos brasileiros foram submetidas a uma análise fatorial exploratória, com rotação Varimax, a fim de verificar se existiam os mesmos agrupamentos de itens.
Resultados
A fim de comparar as respostas dos estudantes brasileiros e holandeses foi utilizado o teste t de Student de acordo como demonstrado na Tabela 1.
Como pode ser observado na Tabela 1, houve diferenças significativas entre os estudantes brasileiros e holandeses sobre as condições facilitadoras ao aparecimento da criatividade. Os brasileiros deram maior importâncias às atividades de viagem e relaxantes, ao contrário dos holandeses que preferiram as atividades que requerem atenção concentrada e estar sozinho.
A análise fatorial dos componentes principais, com a rotação Varimax, visou comparar a composição da estrutura de itens brasileiros com àquela já obtida com a população holandesa. Dois fatores foram definidos para a extração, afim de permitir a comparação com a amostra dos Países Baixos. Os itens selecionados para cada fator, com composição acima de .30 são apresentados na Tabela 2.
De acordo como apresentado na Tabela 2, dois fatores puderam ser encontrados entre os participantes brasileiros que explicaram 48.09 % da variância. O fator 1 explicou 32.29% da variância (λ= 3.55) e congregou os itens relacionados ao imprevisto, viagens, repouso, mesa do trabalho e aspectos sociais (estar sozinho, com outras pessoas, com pessoas criativas). O segundo fator explicou 15.80% da variância (λ= 1.73), sendo composto por itens relacionados à atenção concentrada, esforço planejado e forma deliberada.
Já para os holandeses, segundo relato na publicação de Baas et al. (2015), a composição de 2 fatores, pelo mesmo método, explicou 59.77% da variância. O fator 1 (λ= 2.53) explicou 31.56% da variância e foi composto por itens que destacavam a atenção concentrada, o esforço planejado, mesa de trabalho e com pressão de tempo. Já o segundo fator (λ= 2.26) explicou 28.21% da variância, sendo composto por esforço planejado, imprevisto, viagens e repouso.
Assim sendo, considerando as diferenças significativas entre as médias dos grupos assim como a ordem de importância dos fatores que propiciam, pode-se confirmar as diversidades culturais na percepção da criatividade. Confirmam-se assim as hipóteses sobre a importância dos valores culturais na compreensão dos leigos sobre criatividade.
Discussão
A concepção de criatividade, a partir de evidências cientificas, é crucial para ajudar os profissionais a selecionar e modelar os processos e circunstancias que estimulam a criatividade (Colin, 2017). As crenças de leigos sobre criatividade, ou suas teorias implícitas podem influenciar o julgamento sobre criatividade dos indivíduos em várias situações, como por exemplo, na compreensão dos pais, no conceito de professores, na tomada de decisões administrativas ou políticas dos gestores (Lim & Plucker, 2001; Silva & Nakano, 2012). Assim sendo, torna-se importante investigar as teorias implícitas que os leigos possuem sobre a criatividade pois nos permitem entender como é percebido o comportamento criativo, e elaborar pesquisas que tragam evidências que ajudem a fundamentar o conhecimento empírico relacionado com a criatividade (Runco, 1990).
Este estudo visou verificar se o conhecimento de leigos era influenciado por elementos culturais, considerando que o Brasil possui raízes latinas ao contrário dos Países Baixos, com uma cultura predominantemente germânica. Neste sentido, buscou replicar um estudo realizado com estudantes holandeses de graduação, realizado por Baas et al. (2015), considerados como leigos em criatividade, sobre suas concepções sobre as situações que favorecem o aparecimento da criatividade. Interessantemente, no estudo original com os Países Baixos, os participantes apontaram que a criatividade ocorria de forma inesperada, aparecendo em viagens e em companhia de pessoas criativas. Porém, quando as respostas dos holandeses foram comparadas com as dos brasileiros, a importância das condições de relaxamento e viagens foi ainda mais forte ou importante para os brasileiros, denotando assim uma característica da cultura latina por situações de maior flexibilidade nos ambientes, e preferencias por situações ou atividades grupais.
Do mesmo modo, ao ser comparada a ordem dos fatores favoráveis à criatividade houve diferenças entre a cultura brasileira e a dos países baixos. Embora a composição dos fatores tenha sido semelhante entre estes dois países, sendo um fator composto de situações menos estruturadas como imprevisto, viagens, repouso, e estar ou não em companhia de pessoas e um outro fator sendo composto por condições estruturadas, tais como atenção focada, mesa de trabalho, esforço planejado e pressão de tempo, a ordem de preferência destes fatores foi diferente para brasileiros e holandeses. Os brasileiros demonstraram maior importância para o primeiro fator enquanto para os holandeses o segundo fator apareceu como sendo de maior importância. Novamente as diferenças da cultura latina que prefere situações menos estruturada do que a cultura holandesa pode ser notada.
Os resultados encontrados nesta pesquisa indicam que existem crenças predominantes entre as pessoas de diferentes culturas quando se comparam as opiniões de leigos. Por sua vez, indicam também que os estados mentais que conduzem ao processo criativo também são confusos (Chermanin & Hommel, 2010; Oliveira et al., 2016), a despeito de existir considerável número de pesquisas que demonstram a existência de processos específicos que podem facilitar o aparecimento de ideias criativas (Morais et al.; 2015, Runco & Jagger, 2012; Sternberg, 2012).
Tal resultado condiz com o que refere Alencar e Fleith (2003b) de que a criatividade é concebida como um fenômeno sociocultural, apontando uma rede complexa de interações e variáveis entre o indivíduo e sociedade para a expressão criativa. Oliveira (2010) também reforça a influência que a cultura exerce sobre a criatividade, dependendo da situação, das pessoas e de seus elementos constituintes. Demonstra também que a criatividade tem um grande apelo e importância para as pessoas pois estas desenvolvem fortes crenças sobre a natureza a organização e o desenvolvimento da criatividade (Kaufman & Beghetto, 2013).
Sem dúvida, ideias criativas podem surgir de várias formas, de maneira consciente planejada, sendo desenvolvida por técnicas específicas de geração de ideias (Isaksen et al., 2015), de forma inconsciente, através de insights, ou ainda em situações de relaxamento (Jankowska & Karwowski, 2015; Runco, 2010; Wechsler, 2008). Entretanto, a estratégia a ser utilizada por educadores, pais, consultores e gestores para desenvolver criatividade deve considerar as preferências culturais, representadas por aqueles que ainda não sabem sobre este processo, ou seja, são leigos. Assim sendo, esta pesquisa nos indicou as condições em que leigos preferem criar, nestes dois países, trazendo situações que podem ser utilizadas em programas de treinamento para a criatividade, tendo os brasileiros preferencias por situações menos estruturadas e mais relaxadas do que as pessoas dos países baixos.
Esta pesquisa teve algumas limitações como o fato da amostra ser composta por estudantes de uma única região do Brasil, ou seja, do Estado de São Paulo, não possibilitando generalizar os resultados encontrados para outras partes do país. Também o mesmo ocorreu com os holandeses, vindos de uma única cidade e universidade. Estudos futuros, inclusive com outras carreiras universitárias poderão trazer mais informações sobre as percepções de leigos a respeito da criatividade.
Os resultados deste estudo evidenciaram a importância de compreender como as pessoas pensam sobre o processo criativo para que possamos construir e oferecer espaços facilitadores para a expressão e o desenvolvimento da criatividade em diferentes contextos. Portanto, o conceito de criatividade deveria ser estudado considerando a cultura de cada país, afim de que possa ser mais compreendida como criatividade é percebida e valorizada dentro de cada contexto.