A pandemia de COVID-19 tem se caracterizado como um dos principais problemas de saúde pública ocorridos nos últimos anos (Banerjee & Rai, 2020). Em decorrência da falta de uma vacina ou de tratamentos específicos, diversas ações foram implementadas com o objetivo de diminuir o número de casos e reduzir a quantidade de mortes que estavam sendo provocadas pela doença. Entre essas ações, as mais expressivas em contexto global foram a quarentena, o isolamento social e o distanciamento social (Wilder-Smith & Freedman, 2020).
No Brasil, a principal medida adotada pelos estados e municípios tem sido o distanciamento social. O distanciamento social tem como principal objetivo reduzir as interações entre pessoas em uma comunidade mais ampla, na qual os indivíduos podem ser infecciosos, mas ainda não foram identificados e, portanto, ainda não estão isolados (Wilder-Smith & Freedman, 2020). Segundo os autores, como a doença é transmitida na maioria das vezes por gotículas respiratórias que exigem certa proximidade das pessoas, o distanciamento social pode reduzir a transmissão. Embora seja uma medida importante, não é totalmente eficaz na prevenção da doença se as pessoas não tomarem as devidas precauções e seguirem as orientações.
A implementação dessas medidas teve um impacto macrossocial no contexto brasileiro que já estava passando por uma série de problemas de diversas naturezas. As medidas adotadas acabaram interferindo em questões econômicas, sociais, políticas, nas relações familiares e nos aspectos de saúde física e mental da população. Especificamente em termos de saúde mental, as implicações da COVID-19 têm sido evidenciadas como sendo um aspecto que merece atenção na atual conjuntura vivida (Ornell et al., 2020; Pfefferbaum & North, 2020). Situações de crise geralmente aumentam os riscos de sintomas psicopatológicos como ansiedade, depressão e pânico. Como os prazos da pandemia crescente são incertos, o isolamento é agravado e pode levar à solidão, o que pode ter efeitos prejudiciais no bem-estar físico e mental (Banerjee & Rai, 2020; Elmer et al., 2020).
Além disso, prognósticos incertos, escassez de recursos para testes e tratamento, imposição de medidas de saúde pública que impedem a liberdade pessoal, perdas financeiras crescentes e mensagens conflitantes das autoridades são potenciais estressores que têm causado sofrimento mental e aumentado do risco de transtornos psiquiátricos no período da pandemia de COVID-19 (Cao et al., 2020; Pfefferbaum & North, 2020). Esses aspectos, somados com o estresse provocado pelas novas demandas emergentes da pandemia, fazem do distanciamento social um evento que pode ser estressor a depender da forma como cada sujeito enfrenta esse período e dos recursos disponíveis para lidar com a nova realidade posta.
Uma das populações que foi significativamente afetada pela pandemia de COVID-19 e pelas medidas de distanciamento social que entraram em vigor foi a de estudantes do Ensino Superior. Os esforços para reduzir a propagação do vírus COVID-19 entre as populações mais jovens e adultas levaram ao fechamento generalizado de escolas, universidades e outras instituições de ensino em muitos países, sendo que até março de 2020, 150 países fecharam escolas e instituições educacionais, representando mais de 80% da população estudantil do mundo (Sahu, 2020).
Com isso, os estudantes universitários tiveram suas vidas acadêmicas completamente transformadas com o advento da pandemia uma vez que praticamente todas as atividades foram suspensas e/ou entraram em um processo de readequação frente às demandas que surgiram no campo da educação. Muitas universidades decidiram suspender as aulas presenciais em resposta às preocupações intensificadoras em torno do COVID-19 e essa ruptura brusca pode levar a consequências psicológicas negativas entre estudantes universitários, que podem ficar angustiados diante das incertezas e pela interrupção abrupta das atividades acadêmicas (Zhai & Du, 2020).
O fechamento das instituições de ensino, além de impactar nas atividades didáticas, também provocou impactos nas pesquisas, atendimentos à comunidade e estágios que vinham sendo desenvolvidos. Muitos estudantes precisaram interromper seus projetos de pesquisa e estágios quando as universidades fecharam. Essas interrupções nos projetos de pesquisa e estágios, deste modo, poderão comprometer os programas de estudos e atrasar a graduação dos estudantes, sendo mais um evento estressor para os mesmos (Zhai & Du, 2020).
Com a nova realidade posta, consequentemente os estudantes tiveram que se adaptar a uma nova rotina de vida, que nem sempre se mostra positiva e requer mudanças de diferentes naturezas. A transferência do ensino presencial para outras modalidades de ensino remoto é vivenciada pelos estudantes de diferentes maneiras, a depender das condições emocionais de cada sujeito, da capacidade de adaptação, dos recursos disponíveis que possuem, do ambiente em que estão inseridos, entre outros elementos que podem se fazer presentes nesse contexto.
Assim, em situações como a do COVID-19, a saúde mental pode ser impactada e causar implicações na vida dos estudantes. Sabe-se que a saúde mental dos universitários é afetada significativamente quando confrontada com emergências de saúde pública e requer atenção e apoio da sociedade, da família e das instituições de ensino (Cao et al., 2020).
Neste sentido, estudos realizados com a população universitária têm sugerido algumas variáveis que podem estar associadas a piores indicadores de saúde mental durante a pandemia de COVID-19 (Cao et al., 2020; Elmer et al., 2020; Tang et al., 2020). Na China, Cao et al. (2020) avaliaram estudantes universitários da Faculdade de Medicina de Changzhi em termos de ansiedade e fatores associados ao período de epidemia na região pelo COVID-19. Os resultados indicaram que a presença de sintomas de ansiedade foi associada positivamente aos prejuízos econômicos, do cotidiano e das atividades acadêmicas e negativamente ao apoio social. Também na China, Tang et al. (2020), em avaliação transversal, trouxeram dados de avaliações com universitário sugestivos de que durante o período do isolamento houve presença de indicadores de estresse, de estresse pós-traumático, de depressão e de medo. Sono de curta duração, estar cursando anos finais, residir em áreas afetadas podem ser considerados como variáveis de risco da saúde mental, em especial para o estresse.
O estudo longitudinal realizado por Niedwiedz et al. (2020) observou que houve aumento significativo no sofrimento psicológico durante o período de isolamento vivenciado no Reino Unido por conta da pandemia, situando mulheres e jovens estudantes como grupos mais vulneráveis. O estudo, que também avaliou o consumo de álcool, apontou que a proporção de pessoas que bebem quatro ou mais dias por semana aumentou à medida que bebiam demais nas avaliações anteriores à pandemia, situando o consumo de álcool como uma variável de risco à saúde mental. No entanto, o número de pessoas que consomem sete ou mais dose de bebidas em uma única ocasião, considerado comportamento de risco, diminuiu. O estudo longitudinal realizado por Elmer et al. (2020) considerou avaliações de graduando e pós-graduandos suíços realizadas nos anos de 2019 e 2020, durante o isolamento exigido pela pandemia do COVID-19, e destacou que nesta última avaliação houve o aumento dos sintomas de depressão, ansiedade, estresse e sentimento de solidão.
Deste modo, em uma situação como a da pandemia de COVID-19, podem surgir nessa população sintomas de estresse, ansiedade e depressão, entre outros quadros psicopatológicos, motivados ou potencializados pela realidade vivenciada também podem contribuir para a diminuição da crença de autoeficácia acadêmica. A autoeficácia é um conceito geral que se refere ao quanto as pessoas acreditam em suas capacidades para atingir determinados objetivos ou tarefas com sucesso (Bandura, 1994). No caso da crença de autoficácia acadêmica, a crença é referente a objetivos e tarefas acadêmicas dos estudantes de diversas modalidades de ensino (Palezuela, 1983) e está associada a melhores resultados e desempenhos no contexto de aprendizagem (Ianchite et al., 2020).
Considerando os aspectos anteriormente mencionados e a necessidade de produção de evidências acerca da adaptação desse público a esse significativo período, o objetivo do presente estudo foi avaliar mudanças e estabilidades em indicadores de saúde mental (depressão, ansiedade e estresse), de saúde (consumo de álcool e quantidade de horas de sono) e crença de autoeficácia acadêmica de estudantes universitários, antes e durante a pandemia da COVID-19, a fim de compreender como eles têm se adaptado à nova realidade estudantil. Considerando que as investigações acerca dessa temática encontram-se em curso, espera-se que o presente estudo possa contribuir com o diálogo em torno não apenas da adaptação desses estudantes, mas também acerca da saúde dessa população.
Método
Trata-se de um estudo misto (quantitativo e qualitativo), que faz parte de uma investigação mais ampla que teve por objetivo investigar a saúde mental, os fatores de risco e de proteção e a relação com o rendimento acadêmico em estudantes universitários. Ele foi dividido em etapas. A Etapa I consistiu na avaliação quantitativa, longitudinal, descritiva e correlacional de indicadores de saúde, saúde mental e crença de autoeficácia, avaliados no ano de 2019 (antes da pandemia do COVID-19) e no ano de 2020 (durante a pandemia do COVID-19). A Etapa II consistiu na investigação qualitativa, descritiva e de corte transversal, cuja coleta foi realizada em 2020, a partir da deflagração da pandemia. A Etapa II foi apresentada seguindo o protocolo COREQ para estudos qualitativos (Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research).
Participantes
Etapa I - Participaram 20 estudantes universitários de diferentes cursos de instituições brasileiras, sendo que três eram oriundos de instituições estaduais, dez de federais, cinco de municipais e dois de universidades privadas. Com relação à área do curso, sete estudantes eram provenientes da área de ciências biológicas e da saúde, sete da área de exatas e seis de humanidades. Seis estudantes estavam frequentando o 1º ano, seis o 2º ano, quatro o 3º ano, três o 4º ano e um o 5º ano. Quatro se identificaram como do sexo masculino, 15 como feminino e um estudante se identificou como não binário. A média de idade inicial foi de 20.8 anos (DP = 3.4), variando de 18 a 33 anos. Quatro participantes eram casados e 16 estavam solteiros.
Etapa II - Participaram quatro estudantes universitários, convidados dentre os 20 participantes na Etapa I, com idade entre 18 a 20 anos (Média = 19.5 anos, DP = 1.0), sendo três do sexo feminino e um do sexo masculino, sendo três solteiros e um casado. Todos estudantes cursavam instituições públicas, sendo que um era oriundo de uma instituição estadual, dois de uma federal e um de uma municipal. Dois eram provenientes da área de exatas e dois de biológicas. Um estudante estava cursando o 1º ano, um o 2º ano e dois o 3º ano.
Medição
(a)Questionário de caracterização. Composto por questões formuladas para obter informações sociodemográficas (sexo, idade, estado civil), quantidade de horas de sono diárias e sobre o curso (área, ano do curso e tipo de instituição - se municipal, estadual, federal ou privada). Este instrumento foi empregado nas Etapas I e II.
(b)Depression, Anxiety and Stress Scale - Short Form (DASS21). Validada para a população brasileira por Vignola e Tucci (2014). A escala é baseada no modelo tripartido em que os sintomas de ansiedade e depressão se agrupam em três estruturas básicas. Uma primeira, (a) definida pela presença de afeto negativo, como humor deprimido, insônia, desconforto e irritabilidade, que são sintomas inespecíficos e estão incluídos tanto na depressão como na ansiedade; a segunda engloba (b) fatores que constituem estruturas que representam sintomas específicos para depressão (anedonia, ausência de afeto positivo); por fim, a última estrutura refere-se aos (c) sintomas específicos de ansiedade (tensão somática e hiperatividade), somando um total de 21 itens, com opções de resposta em escala likert. Este instrumento foi empregado na Etapa I.
(c)Escala de Autoeficácia Percebida Específica das Situações Acadêmicas - EAPESA (Palenzuela, 1983). Avalia as crenças sobre a capacidade da pessoa executar um comportamento especificamente para situações acadêmicas. É composta por 10 itens distribuídos em formato likert de nove pontos, variando como discordo totalmente a Concordo completamente. Este instrumento foi empregado na Etapa I.
(d)AUDIT - C (Alcohol Use Disorders Identificationa Test). É um teste de rastreamento do consumo abusivo de álcool e foi elaborado com apoio da Organização, sendo uma versão curta da versão completa - AUDIT (Bradley et al., 2007). É composto por três questões, com possibilidades de respostas variando entre 0 a 4 pontos. A primeira investiga a frequência, a segunda a quantidade e a terceira, com que frequência se toma seis ou mais doses de uma vez. A pontuação para homens e para mulheres são diferentes, sendo que podem indicar o risco para o padrão de consumo abusivo ou dependente do álcool - baixo, moderado, alto e severo. Neste estudo optou-se por usar o total como medida do Consumo de álcool. Este instrumento foi empregado na Etapa I.
(e)Roteiro de entrevista semiestruturado. Elaborado pelos autores do estudo e aplicado na Etapa II, contendo 17 questões que versavam sobre como os estudantes estavam vivenciando o período da pandemia de COVID-19.
Procedimentos de coleta e análise de dados
Etapa I. Na avaliação inicial, realizada nos meses de junho e julho do ano de 2019, participaram 199 estudantes que foram acessados através de convites feitos nas redes sociais - Facebook e Whatsapp, dos quais 113 informaram o e-mail e explicitaram o desejo de colaborar na continuidade da pesquisa. Em abril do ano de 2020, todos os 113 voluntários foram novamente convidados através de mensagem enviada por e-mail, a participar da reavaliação. Neste e-mail foi enviado também um link que dava acesso ao formulário, no Google Forms, aos instrumentos, tal como foi feito na primeira coleta, realizada em 2019. O link ficou disponível para receber acessos até a saturação de respostas, ou seja, quando não houve mais novos casos por um período de sete dias seguidos.
Dos contactados, quatro responderam ao e-mail informando que concluíram a graduação e 33 acessaram o formulário, sendo que destes, dois não aceitaram participar após a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e nove não informaram e-mail, impossibilitando a identificação de seus dados na avaliação realizada em 2019, permanecendo no presente estudo 20 participantes.
Para a análise de dados desta Etapa I, as respostas foram arquivadas em planilha do Excel, tabuladas conforme a especificidades dos instrumentos e em seguida transpostas para o software estatístico SPSS - versão 20. Foram realizadas análises descritivas e, após a verificação da normalidade, foram empregados o teste de Correlação de Pearson e o Teste t de Student para medidas emparelhadas. O nível de confiança para as análises foi de 95%.
Etapa II. Inicialmente foram convidados para participar desta etapa os 20 estudantes da Etapa I que responderam aos instrumentos nos anos de 2019 e 2020. Os convites foram realizados via e-mail. Um dos pesquisadores desenvolveu um e-mail padrão explicando os objetivos do estudo, a importância do mesmo e os aspectos éticos envolvidos, sendo que, dos 20 e-mails disparados, somente cinco responderam. Quatro estudantes se disponibilizaram a participar dessa segunda fase, já no contexto da pandemia, e um desistiu alegando não estar em condições de responder à referida entrevista. Com os que aceitaram participar, foi disponibilizado um número de WhatsApp pelo qual poderiam tirar dúvidas e fazer perguntas que fossem pertinentes para eles. Todos os participantes entraram em contato usando o referido aplicativo e, por meio desse, foram feitas explicações sobre como ocorreria a entrevista e o agendamento de datas e horários para as entrevistas. Foi explicado que para a realização das vídeo-chamadas era importante que os mesmos escolhessem um local reservado para conversarem sem serem interrompidos e que pudesse guardar o sigilo das informações. Dois participantes solicitaram que a câmera fosse desligada após o início da conversa, para que a chamada ficasse mais estável.
Devido ao distanciamento social imposto, as entrevistas foram realizadas online por meio de vídeo-chamadas com os participantes, utilizando as plataformas digitais Google Meet e Skype. As entrevistas tiveram duração média de meia hora, foram audiogravadas digitalmente e transcritas na íntegra para a análise. A organização do corpus ocorreu por meio da análise de conteúdo temática de Braun e Clarke (2006). Os temas emergentes foram posteriormente interpretados a partir da literatura da área.
Resultados
Os resultados serão apresentados de modo a contemplar primeiramente a parte quantitativa do estudo (Etapa I) e, em seguida, a parte qualitativa (Etapa II).
Avaliação Quantitativa (Etapa I)
Associações entre as variáveis na avaliação realizada em 2019 e 2020
Os dados quantitativos apresentam as correlações entre as variáveis realizadas separadamente para as duas avaliações - 2019 e 2020, e as medidas repetidas, com a finalidade verificar mudanças nas médias entre os dois anos. Na Tabela 1 constam as correlações obtidas entre as variáveis avaliadas no ano de 2019 (área em branco) e no ano de 2020 (área tachada em cinza).
Nota: A área tachada em cinza apresenta os coeficientes de correlação entre as variáveis avaliadas no ano de 2020, enquanto a área em branco apresenta os coeficientes de correlação obtidos com variáveis avaliadas em 2019. * p ≤ .05; ** p ≤ .01; * p < .001.
Conforme pode ser observado na Tabela 1, no ano de 2019 foram significativas as associações da Depressão com o Estresse, a Ansiedade e a Crença de Autoeficácia. No ano de 2020 continuaram significativas as associações da Depressão com Estresse e Ansiedade. O Estresse foi associado com Ansiedade, com a Crença de Autoeficácia Acadêmica e com o Ano do Curso nas avaliações dos anos 2019 e 2020. A Crença de Autoeficácia Acadêmica também foi correlacionada, de modo significativo, com ao Ano do Curso. As demais associações não foram significativas.
Ainda se observa na Tabela 1 que as associações significativas foram de intensidade moderada ou forte. As associações fortes foram observadas entre Depressão e Estresse (avaliações do ano de 2019 e 2020), Ansiedade e Estresse (avaliação realizada no ano de 2019), Ansiedade e Ano do Curso (avaliação realizada no ano de 2020), as demais foram de ordem moderada. Também se nota que a direção da correlação foi negativa para a Crença de Autoeficácia Acadêmica com Depressão (avaliação realizada no ano de 2019), com Ansiedade (avaliação realizada no ano de 2020), com Estresse (avaliações realizadas no anos de 2019 e 2020) e para o Ano com Estresse (avaliações realizadas no anos de 2019 e 2020) e Ansiedade (avaliação realizada no ano de 2020).
Medidas repetidas - 2019 e 2020
Na Tabela 2 estão apresentadas as comparações das medidas avaliadas nos anos de 2019 e 2020 e os coeficientes de correlação das variáveis. Nota-se que as médias de Estresse, Ansiedade, Depressão e quantidade de horas de sono foram estatisticamente semelhantes nas avaliações feitas em 2019 e 2020. A Crença de Autoeficácia Acadêmica e o Consumo de Álcool apresentaram média significativamente menor em 2020. Os coeficientes de correlação indicam associação significativa entre a avaliação feita em 2019 com a de 2020, de ordem moderada para as medidas de Depressão, Crença de Autoeficácia Acadêmica e Consumo de Álcool, e forte para a Quantidade de horas de Sono. As demais correlações não foram significativas.
Avaliação Qualitativa (Etapa II)
Com base na análise das entrevistas foram construídas três categorias temáticas elaboradas após a leitura e codificação do material transcrito. Essas categorias temáticas representam como a pandemia de COVID-19 e o distanciamento/isolamento social interferiram na vida dos estudantes, nos aspectos de saúde mental destes e como os mesmos se adaptaram diante da nova conjuntura que surgiu.
Adaptação pessoal diante da pandemia de COVID-19
O primeiro aspecto dessa categoria refere-se à adaptação pessoal diante da suspensão das atividades acadêmicas e do estabelecimento do isolamento social subsequente. Os estudantes descreveram não estarem preparados para a suspensão das aulas que foram encerradas rapidamente sem haver um aviso prévio que possibilitasse a adaptação à nova realidade. Ao mesmo tempo houve a descrição de que já imaginavam que as atividades de ensino seriam interrompidas e que poderia acontecer o isolamento social devido ao contexto internacional instaurado e pelo crescente número de casos da doença e de mortes que passaram a ser registrados. Pelas falas dos estudantes é possível observar como esse evento foi vivenciado.
Acho que a sala inteira na verdade ficou chocada. Era praticamente a primeira semana de aula e em um dos intervalos surgiu esse boato que iriam parar as aulas. A universidade tomou um posicionamento e confirmou que realmente iriam parar naquele dia, no dia seguinte não teria mais aulas (Participante 1).
Ah eu já esperava, porque eu estava acompanhando sobre a evolução do Coronavírus nos outros países e estava óbvio que o Brasil também teria que adotar isso (distanciamento/isolamento social) (Participante 2).
O estabelecimento de uma nova rotina também foi um dos aspectos mencionados em termos de adaptação pessoal, uma vez que os estudantes tiveram que reorganizar o que faziam. Ao mesmo tempo, nesse período, também surgiram outras atividades para serem realizadas devido à disponibilidade de tempo que passaram a ter e uma readequação do que poderiam ou não fazer diante do cenário que passaram a vivenciar.
Infelizmente não consegui criar uma rotina ainda por conta da minha irmã que eu tenho que distrair ela. Eu acabo me desmembrando entre fazer as atividades que eu estou tendo EAD, as lições da minha irmã, que eu tenho que ajudar também e os afazeres de casa (Participante 1).
Muita coisa mudou. Antes eu até fazia mais atividade física, mas agora eu não faço mais. Fico só cozinhando em casa... doce. Mas em relação ao estudo eu achei até bom a quarentena, porque eu estava muito sobrecarregada. Eu consegui ter tempo pra terminar minha iniciação, eu consegui adiantar muita coisa. Pra mim a quarentena em si até contribuiu (Participante 2).
Eu cozinho, faço comida o tempo todo, fico fazendo uns doces pra me distrair. Eu faço parte de um grupo PET [Programa de Educação Tutorial], então eu faço várias atividades desse grupo. É o que eu mais gasto meu tempo fazendo e também fico nas redes sociais como sempre. Passo bastante tempo nas redes sociais. Eu já tinha esse hábito, mas ele se intensificou com o excesso de tempo livre (Participante 3).
Ainda em relação a rotina os participantes mencionaram as alterações e dificuldade enfrentadas durante o distanciamento/isolamento social. Pelas falas é possível perceber que os mesmo tiveram que se ajustar diante do contexto de terem que ficar em suas casas e buscarem alternativas para ocupar parte do tempo que antes era dedicado, sobretudo, aos estudos presenciais.
Minha rotina bagunçou completamente, antes eu acordava de manhã já ia pra escola, dava aula e ia pra faculdade, às vezes até direto da escola pra faculdade, então agora eu ando acordando tarde, dormindo umas quatro da manhã, três da manhã e acordando às dez da manhã. Desde a semana passada eu estou tendo que acordar um pouco mais cedo (para fazer atividades do trabalho). Só que está sendo bem estressante, bem cansativo ... estressante, mais estressante do que tava na sala de aula (Participante 2).
No começo eu tentei organizar, tentei criar tipo um horário pra seguir, mas eu vi que não consigo fazer isso muito bem. Então eu só fui fazendo as coisas na medida que elas precisavam ser feitas (Participante 3).
Eu tenho trocando a noite pelo dia, então a noite eu tenho feito as coisas da faculdade... porque de dia eu não consigo (Participante 4).
Adaptação acadêmica diante da pandemia de COVID-19
A adaptação acadêmica foi descrita como sendo um desafio diante de um novo modelo de ensino que passou a ser adotado, com a disponibilização de aula por meio de plataformas digitais. Em outra situação, todas as aulas estavam suspensas e a instituição estava pensando como ia ofertar as atividades. Nota-se, nesse sentido, que a forma como cada estudante estava vivendo as atividades de ensino durante o distanciamento/isolamento social esteve relacionada a como a instituição de ensino havia se organizado para enfrentar essa realidade posta.
Sinceramente, está sendo bem difícil manter uma concentração assim, um foco, porque eu tenho um pouco de dificuldade em prestar muita atenção em videoaula ... as atividades que estou fazendo geralmente são em grupo no Google Meet mesmo, que fica mais fácil de eu prestar atenção. Quase todas, pra não dizer todas (as disciplinas), têm atividade prática, mas não tá dando pra fazer (Participante 1).
Não estou tendo nenhuma disciplina. Só dois professores entraram em contato com a gente. Um professor fez uma vídeo-chamada com a gente conversando sobre o momento atual em si, nada relacionado com a faculdade e a coordenadora conversou com a gente sobre as medidas que estavam sendo planejadas (Participante 2).
Estou fazendo somente atividades de extensão ... Mas relacionado à graduação em si não, porque as aulas foram suspensas (Participante 3).
As aulas continuam a distância. Mas nada assim, presencial. Todas as aulas práticas que a gente estava tendo nesse semestre a gente vai esperar pra quando voltar e ver o que dá pra fazer, porque é o último ano, né? Aí fica um pouquinho complicado (Participante 4).
Outro aspecto referente à adaptação acadêmica que os estudantes manifestaram enfrentar diante da pandemia foram as dificuldades decorrentes do isolamento social.
Acho que minha dificuldade maior está sendo a concentração e um pouco de talvez, não sei se falta de vontade ou interesse seria a palavra certa. Mas falta isso, proatividade de falar: “- Não! Eu vou, vou ver todas, vou conseguir seguir tudo direitinho no tempo certo!”. Porque além da falta de concentração, tem a privacidade, porque lá onde eu tô residindo atualmente não tem uma privacidade e aí acaba complicando um pouco, acabo procrastinando um pouco. (A maior dificuldade é) De querer, de ter interesse de conseguir, seria força de vontade mesmo, se sentar num canto e falar: “-Olha, desculpa, mas agora esse momento e pra mim, pros meus estudos!”. Acabo não conseguindo por conta das outras coisas que eu tenho que fazer (Participante 1).
A maior dificuldade é o nosso próprio desânimo né? A gente está num ritmo de estudar, num ritmo que ia começar a ter provas e do nada dá o baque, então a gente até esquece alguns conteúdos e fica meio assim perdido. A gente já perdeu muita coisa que a gente tava vendo nos primeiros dois meses de aula. Isso interfere tanto no aprendizado quanto nessa angústia de quando as aulas vão retornar. Eu já tinha planos de iniciar o mestrado no início do ano que vem. E agora como é que eu vou fazer tudo isso? (Participante 2).
Eu sinto que passar tanto tempo sem estudar eu tô esquecendo muita coisa, eu tô perdendo totalmente o ritmo de estudar. Eu acho que quando voltar as aulas em si, eu vou estar muito perdido. Acho que vai ser bem difícil acompanhar as matérias (Participante 3).
O aprendizado não é a mesma coisa. Então tá bem complexo aprender, tirar dúvidas. Não fica 100% claro, então tá bem difícil (Participante 4).
Consequentemente, esses estudantes mencionaram que essa nova realidade de ensino ou de ausência de atividades de ensino pode ou não ter um impacto na formação profissional a depender de como elas forem reorganizadas ou de como cada um está se envolvendo nas atividades substitutivas das aulas presenciais. Esses posicionamentos que ora referem impactos e ora sugerem a permanência da realidade anterior à pandemia podem ser representados pelas falas a seguir:
Vai impactar muito. É, tanto naquilo que, assim... Têm matérias que você mesmo tendo (aula) presencial, já e um pouco mais difícil de você entender. Eu acredito que não adianta você assistir a aula, fazer as anotações, acompanhar tudo certinho sem você realmente você aprender, porque uma hora você vai precisar disso durante a sua carreira. Principalmente a questão de concentração e pelo fato de ser você que manda no seu EAD. Não tem o professor na frente falando. A maioria das aulas que eu tô tendo são gravadas, então eu consigo pegar pra assistir quando eu quiser, digamos assim, acaba ficando mais por minha conta mesmo (Participante 1).
Eu acho que na minha formação, nada (não vai impactar). Exceto, se voltar as aulas por exemplo, eu tenho aulas em laboratório e teria mesmo que repor presencial, então não interferiria em nada na minha vida profissional (Participante 2).
Eu acredito que sim. Principalmente por conta disso, ficar tanto tempo sem exercitar o conhecimento que a gente aprende (Participante 3).
Olha, pode e não pode. Eu acho que se não tivesse tendo essas aulas e eles paralisassem e esperassem melhorar a situação pra voltar, poderia impactar. Mas como a gente está tendo aula, só as práticas que não, isso a gente dá um jeito. O ensino a distância é muito horrível, é muito ruim. Não dá pra você tipo, não dá pra você ter aquela conexão com o professor e é muito estranho. Eu escolhi o curso presencial porque eu não me dou bem em ficar sentada assistindo e agora tá sendo isso (Participante 4).
A saúde mental diante do distanciamento social
Os estudantes manifestaram como os novos contextos que estavam vivenciando estavam interferindo em suas condições de saúde mental por meio do surgimento de sintomas psicopatológicos ou potencializando sintomas já existentes. Essas repercussões podem ser ilustradas com as falas a seguir:
É um monte de sentimento ao mesmo tempo. É bem complicado. Eu já fiquei muito confusa, quase me atacou crise de ansiedade, porque no final do ano passado, no final do ano retrasado, perdão, eu comecei a ter crise de ansiedade, que eu nunca tinha tido. Só que depois de um tempo parou, não aconteceu mais, mas nesse período de isolamento ela deu sinais de que iria voltar. Eu consegui controlar, conter um pouco, mas eu fico com receio de que vá acontecer. Senti bastante tristeza, sentimento de quando para assim e analisa, achar que eu estou sozinha. Mas, é, não tem como explicar muito bem, porque são coisas que passam em menos de um segundo pela minha mente. Eu vou pensando várias coisas, criando várias paranoias em frações de segundo. É bem estranho explicar (Participante 1).
Eu tô um pouco desanimada, tanto com o tempo que está passando muito rápido, acho que esse mês voou e não deu pra render tanto quanto eu gostaria. E preocupada também com formatura, com tantas outras coisas que também aconteceriam esse ano e que não vão mais acontecer (Participante 2).
Eu achei que eu ia sentir em um âmbito geral, mal, por causa de tanto tempo sem interagir com as pessoas. Mas eu acredito que estou lidando de uma maneira razoável. Eu acho que eu estou lidando bem por ficar sozinho por muito tempo, o tempo foi passando e eu só me acostumei. Mas não deixa de ser estranho. Ah! Eu sinto falta de sair de casa, gosto bastante de ficar fora de casa, não necessariamente com pessoas em ambientes e tal, mas eu gosto bastante de andar, por exemplo, isso que eu sinto falta (Participante 3).
Muito mal, muito mal psicologicamente, fisicamente. Então, é que eu me cobro muito, sabe? E durante essa quarentena e tudo que está acontecendo eu não estou tendo muito ânimo pra fazer as coisas. Não tô tendo ânimo, eu me cobro o dobro do que eu deveria. Então isso está me fazendo muito mal. Eu fico cansada eu não consigo fazer nada. Eu durmo um pouco mais, eu costumo trocar a noite pelo dia, não estou conseguindo assistir as aulas porque eu tô cansada no horário da aula (Participante 4).
Em relação à saúde mental, os estudantes também mencionaram o que têm feito para cuidar ou não dos aspectos emocionais durante a pandemia. Essas respostas retratam estratégias desenvolvidas para fazer frente às demandas de saúde mental que emergiram nesse período.
Cheguei a procurar psicólogos, porém eu encontrei até pessoa que conseguiu me propor uma ajuda muito boa e assim, por um valor muito acessível. Porém no momento eu não tô conseguindo nem esse valor que é acessível então eu acabei não conseguindo nada. O que talvez esteja ajudando bem pouco seria assistir filme que sai um pouco da realidade, quando é um filme emocional, coloca pra fora (Participante 1).
Olha... beber uma cerveja conta? É... acho que beber uma cerveja assistindo uma série é o que eu ando fazendo para cuidar da minha saúde mental. As séries viraram aliadas agora, né? (Participante 2).
Eu acho que eu não tenho feito nada voltado para a minha saúde, eu tenho tentado seguir as atividades que eu estava seguindo antes do período de isolamento (Participante 3).
Eu sou muito sentimental, então é bem difícil eu falar desse assunto. Mas eu não estou fazendo nada, porque eu não sei o que fazer, tô bem perdida até nisso. Sempre fui, mas de um tempo pra cá eu tinha melhorado, eu estava conseguindo me segurar em algumas situações. Mas confesso que durante o isolamento eu tenho me sentido bem pra baixo (Participante 4).
Quando perguntados que sugestões dariam para colegas universitários cuidarem da saúde mental, os estudantes manifestaram suas opiniões em relação ao que acreditavam ser importante para atenuar o momento vivido e para cuidarem dos aspectos emocionais.
Eu acho que seria procurar um profissional porque assim, eu acredito que conseguiria ajudar em várias questões e até entender mais quais são essas questões, porque às vezes a gente não tá se sentindo muito bem... (Participante 1).
Eu acho muito interessante a prática de meditação. Meditar, refletir um pouco sobre o que está acontecendo é importante. Tirar um momento só seu, pra você respirar um pouco, tomar uma água, pegar uns cinco minutos e ficar tranquilo ... se informar sobre tudo que está acontecendo, acho importante também a leitura de artigos, tentar procurar saber mais sobre isso (Participante 2).
Eu acho que o principal seria não tentar cobrar alguma coisa nesse período. Tipo, muitas vezes eu fiquei pensando: “-Nossa eu não tô rendendo nada!” Tentando fazer essa parte que eu tô fazendo. Aí eu lembrei depois: “O mundo também tá acabando quase! Acho que não era pra eu ficar me cobrando tanto assim.” Acho que esse é o principal ponto que eu tento lembrar pra mim mesmo (Participante 3).
Eu acho que pra eles tirarem um tempinho pra eles, sabe? Assistir uma série, fazer alguma coisa em casa mesmo assim, pra tentar relaxar e tentar esquecer um pouco a pressão da faculdade (Participante 4).
Discussão
A pandemia de COVID-19 trouxe repercussões importantes para a vida de todas as pessoas devido aos impactos nos sistemas de saúde e na elevada taxa de mortalidade. No contexto brasileiro, os números atuais da pandemia têm colocado o país entre as dez nações com maior número de infectados e de mortos. Consequentemente, o impacto psicológico gerado pela pandemia tem interferido nas condições de saúde mental de uma parcela significativa da população. Além de um medo concreto da morte, a pandemia do COVID-19 trouxe implicações para outras esferas como a organização familiar, fechamento de escolas, empresas e locais públicos, mudanças nas rotinas de trabalho, isolamento, levando a sentimentos de desamparo e abandono, além de ter aumentado a insegurança devido às repercussões econômicas e sociais (Ornell et al., 2020). Esses elementos, combinados, têm promovido repercussões importantes para a saúde mental, sendo que os seus efeitos ainda precisam ser estudados a longo prazo.
Os dados obtidos na Etapa I corroboram o estresse como uma variável importante devido à sua associação com piores indicadores de saúde mental - ansiedade e depressão, nas duas avaliações, 2019 e 2020, concordando outros estudos (Cao et al., 2020; Elmer et al., 2020; Tang et al., 2020). Porém, os coeficientes também sugerem que conforme o ano acadêmico os universitários apresentam menos sintomas de estresse nas duas avaliações, menos ansiedade, em 2020, dados diferentes do encontrado por Tang et al. (2020), onde estar nos anos finais foi associado a piores indicadores de saúde mental durante a pandemia. Esses mesmos autores também encontraram relação entre a curta duração do sono e sintomas de estresse, o que não foi encontrado neste estudo em tela.
A ansiedade avaliada no ano de 2019 se associou com a depressão e o estresse e, no ano de 2020, também foi associada fortemente com o ano do curso, porém de modo indireto, sugerindo que os alunos dos anos iniciais, durante a pandemia, apresentam mais ansiedade, o que difere dos dados obtidos por Tang et al. (2020), que indicaram os anos finais como mais vulneráveis em termos de riscos à saúde mental na pandemia.
Os dados também não corroboram a sugestão de Cao et al. (2020) no que se refere à relação significativa entre a ansiedade e atividades acadêmicas, já que neste estudo a ansiedade não foi associada significativamente à crença de autoeficácia acadêmica, como era esperado. Mas vale ressaltar que nas duas avaliações se observou associação inversa da crença de autoeficácia acadêmica com o estresse e como esta variável tem associação com a ansiedade, pode-se hipotetizar de que haja efeito indireto a ser explorado.
Também era esperado que o consumo de álcool e sono de curta duração se relacionasse com as medidas de saúde mental. Porém, as correlações não foram significativas, diferindo dos resultados encontrados por Tang et al. (2020) no que se refere ao sono e a Elmer et al. (2020), que sugeriram aumento no consumo de álcool associados a menor estresse. De todo modo, o cenário das associações da avaliação realizada em 2019, antes da pandemia da COVID-19, é muito semelhante às avaliações feitas em 2020, que foi realizada durante a fase inicial do isolamento no Brasil. Nota-se que a depressão deixou de ser associada à menor crença de autoeficácia no ano de 2020, o ano acadêmico passou ser fortemente associado a menor ansiedade e deixou de estar associado à maior crença de autoeficácia acadêmica, sugerindo que o contexto inicial do isolamento pode ter afetado tais relações, e neste caso, a variável com maior sensibilidade para este período poderia ser a ansiedade.
As avaliações de medidas repetidas podem ser analisadas considerando dois aspectos. Um deles é o comparativo da média nas duas avaliações, que indicou diminuição significativa da Crença de Autoeficácia Acadêmica e do consumo de álcool dos estudantes, durante o período de quarentena. Não houve diferenças significativas nas médias de depressão, ansiedade, estresse e quantidade de horas de sono, contrariando o levantamento o estudo de Elmer et al. (2020), que reportou aumento significativo dos sintomas depressivos, de estresse e de ansiedade em estudantes suíços durante o período de isolamento, em comparação com avaliações realizadas anos anteriores.
Outro indicador provém das associações que sugerem estabilidade nas medidas de depressão, crença de autoeficácia, consumo de álcool e o sono. Deste modo, a avaliação obtida no ano de 2019 segue estável durante a pandemia. Foram estáveis as medidas de depressão, crença de autoeficácia, consumo de álcool e sono. Já as medidas de estresse e ansiedade não indicou associação significativa entre os anos, sugerindo variações intraindividuais, o que nos leva a inferir que tais variáveis podem ser mais sensíveis ao contexto da pandemia independente de estados anteriores.
No que se refere à avaliação qualitativa (Etapa II), nas falas dos participantes do presente estudo foi possível observar aspectos referentes às vivências e organização da vida pessoal, acadêmica e o impacto da pandemia nas condições de saúde mental. A ruptura da vida acadêmica, a incursão em um contexto de distanciamento social, as novas realidades de ensino ou a ausência de atividades de ensino, a adaptação diante desse cenário e as implicações desses eventos nos aspectos emocionais foram temáticas emergentes.
As falas dos participantes demonstram que o fato da suspensão das aulas terem ocorrido de forma abrupta foi um evento que os surpreendeu. Desse modo, tiveram que lidar com uma nova realidade marcada por incertezas, uma vez que não foram prestadas informações sobre como as atividades seriam organizadas a partir daquele momento e da suspensão das atividades presenciais.
A interrupção das atividades de ensino que ainda estavam no início do semestre letivo pode ser considerada como uma ruptura significativa nas vivências dos universitários, uma vez que estas ocupam a maior parte do tempo desses sujeitos, pois muitos dedicam-se integralmente aos estudos. Também é importante considerar que uma parcela dos estudantes estava no processo de transição do ensino médio para a universidade, sendo esse um momento marcado por ansiedades e expectativas que foram interrompidas com o fechamento das instituições de ensino. Deste modo, percebe-se que a pandemia do COVID-19 repercutiu na vida dos estudantes de diferentes maneiras, dependendo não apenas do nível e do curso dos estudos, mas também do ponto que estes estavam (Daniel, 2020). Aqueles que chegam ao final de uma fase da educação e passam para outra, como aqueles que estão passando da escola para o ensino superior, ou do ensino superior para o emprego, enfrentam desafios específicos que precisarão ser considerados.
A soma de diferentes fatores com o distanciamento/isolamento social coaduna para que o momento seja potencialmente estressor e impactante para os estudantes. Deste modo, embora seja uma medida necessária para a situação atual, suspender as aulas presenciais e operacionalizar atividades remotas pode ter um impacto psicológico para os mesmos. O encerramento das aulas promove uma ruptura na rotina, nas relações estabelecidas, no planejamento que tinham, levando-os muitas vezes a vivenciarem um limbo entre a saída da universidade e o estabelecimento de uma nova rotina. Alguns podem ter dificuldades com a solidão e o isolamento enquanto se protegem devido a desconexões de amigos e parceiros e podem ter consequências psicológicas negativas (Zhai & Du, 2020). Somado a isso, em determinadas situações, os estudantes também precisarão interromper projetos de pesquisa e estágios devido ao fechamento da instituição e com isso podem comprometerem seu programa de estudos (Zhai & Du, 2020).
A COVID-19 representou a entrada em um contexto de incertezas, remetendo os sujeitos a terem que se reorganizarem em termos de rotinas diárias. Mesmo nas situações em que as pessoas já estavam mais preparadas para viver o distanciamento/isolamento, ainda assim esse evento não deixa de ser algo que destoa de todo o contexto histórico já vivido no caso dos estudantes brasileiros, pois nunca no território nacional havia sido experienciada uma situação semelhante a que é vivida atualmente com a pandemia.
Estas situações vivenciadas de emergências de saúde pública podem afetar a saúde, a segurança e o bem-estar dos indivíduos causando insegurança, confusão, isolamento emocional e estigma, sendo que esses efeitos podem se traduzir em uma série de reações emocionais, comportamentos não saudáveis e descumprimento das diretrizes de saúde pública (Pfefferbaum & North, 2020). O despreparo emocional para esses desastres biológicos tem efeitos prejudiciais, pois essa situação é sem precedentes em todas as medidas (Banerjee & Rai, 2020).
Os impactos da pandemia e do isolamento/distanciamento social sobressaíram-se na saúde mental dos estudantes. Esses efeitos foram relatados no presente estudo seja por meio do surgimento de sintomatologias psicopatológicas ou por meio do reforçamento de sintomas pré-existentes. Em muitas ocasiões, o medo do desconhecido aumenta os níveis de ansiedade em indivíduos saudáveis, bem como naqueles com condições de saúde mental pré-existentes (Shigemura et al., 2020).
A forma de vivenciar esses eventos e a nova rotina é particular de cada sujeito e cada um pode vivenciá-lo de uma forma a depender dos recursos de enfrentamento que possuem. Neste sentido, é importante que, para além da saúde física, os cuidados com a saúde mental sejam considerados nessa população, pois na pandemia o número de sujeitos que são impactados emocionalmente pela doença chega a ser maior do que o número de pacientes infectados pelo vírus, como já evidenciado em outros contextos de adoecimento como o descrito por Reardon (2015).
Diferentes fenômenos incorrem para que situações de emergência de saúde pública, como é o caso da COVID-19, sejam vivenciadas de forma intensa e possam gerar situações de estresse nos estudantes. Um surto de uma pandemia global causa medo e preocupação entre muitos e supostamente influencia o bem-estar cognitivo de cada indivíduo (Shah et al., 2020). Estudo realizado na China demonstrou que os estressores relacionados à COVID-19 incluíram estressores econômicos, efeitos na vida cotidiana e atrasos acadêmicos, sendo associados positivamente ao nível de sintomas de ansiedade, enquanto o apoio social foi negativamente correlacionado com sua ansiedade (Cao et al., 2020).
As dificuldades da adaptação ao isolamento social e, consequentemente, os impactos que isso provoca nas condições de saúde mental muitas vezes podem estar ligados aos contextos em que os estudantes foram inseridos após o estabelecimento do distanciamento social pelo governo e a interrupção das atividades acadêmicas. As incertezas diante do tempo de duração da pandemia, da retomada das atividades de ensino, a preocupação com o futuro profissional e com as próprias condições de saúde e de familiares, podem ser fatores que interferem na vida desses sujeitos. No contexto da epidemia da COVID-19, alguns dos principais estressores estão relacionados à duração da quarentena, ao distanciamento social, à frustração e ao tédio, bem como ao acúmulo de tarefas, incluindo a realização de atividades normalmente feitas fora de casa (Enumo et al., 2020).
Na amostra em apreço, a falta de informações em relação à transição do ensino presencial para o remoto foi um aspecto destacado pelos estudantes. No entanto, há que se reconhecer que mesmo as instituições de ensino estavam em processo de adaptação, buscando flexibilizações que oportunizassem, de algum modo, a continuidade dos estudos em um cenário no qual ainda é impossível predizer quando o ensino presencial poderá ser retomado. Pesam nesse contexto, portanto, a falta de planejamento prévio dessas instituições em termos do domínio de ferramentas digitais de comunicação para a educação remota, mas também as instabilidades promovidas pela pandemia. Planejar o ensino remoto requer diversos ajustes, passando não apenas pelo domínio de aspectos técnicos, mas também da formação de professores capacitados para esse exercício e mesmo de preparação dos alunos para essa transição. Esse interstício durante a pandemia tem sido prolongado, o que requer que os planejamentos inicias também sejam constantemente revistos não apenas no sentido de promover uma adaptação, mas possibilitar um ensino de qualidade enquanto durarem as políticas de isolamento e de distanciamento impostas às instituições de ensino superior.
A pandemia de COVID-19 rompeu com a realidade vivenciada pela maioria dos estudantes que, muitas vezes, tinham um cotidiano agitado pelas atividades pessoais e acadêmicas que desenvolviam fora de casa. Para alguns dos estudantes entrevistados a pandemia pode significar um momento para rever estilos de vida, replanejar atividades, organizar situações que não estavam bem sistematizadas, de modo que o isolamento social pode ser um momento para se reencontrar diante do que viviam. Por outro lado, quando a pessoa encontra dificuldades para se readaptar, o isolamento pode caracterizar-se como um período desgastante para o sujeito que passa a ter hábitos de vida prejudiciais. Observa-se que a pandemia do COVID-19 parece ter interrompido a velocidade frenética da sociedade hipermoderna e colocou em xeque a noção de interação social ilimitada. Sob essas restrições sociais, os indivíduos foram forçados a se reconciliarem com uma realidade de isolamento que pode contribuir para o tédio (Banerjee & Rai, 2020), mas, em contrapartida, também para o autoconhecimento e para uma maior conexão consigo mesmo, em um movimento mais introspectivo. Todos esses aspectos, quando somados. impactam consideravelmente no bem-estar e na qualidade de vida dos sujeitos.
As atividades acadêmicas remotas são dispositivos que podem ser úteis e auxiliarem os estudantes a não terem as atividades de ensino totalmente prejudicadas. As instituições de ensino que conseguiram se adaptar rapidamente a essa realidade e auxiliar os estudantes com os recursos necessários tiveram maior facilidade para o retorno parcial das atividades de ensino e pesquisa. É importante que as universidades desenvolvam uma série de ações para auxiliarem os estudantes no enfrentamento desse momento, principalmente em relação aos problemas relacionados a interrupções que ocorreram nas atividades que desenvolviam. Além da educação remota, o aconselhamento dos alunos deve continuar, a fim de fornecer suporte acadêmico nessa fase. O corpo docente deve trabalhar para manter a conexão e ajudar os alunos a processarem e resolverem as preocupações acadêmicas causadas pela interrupção do semestre (Zhai & Du, 2020).
Nesse sentido, como trazido nas falas, é mister que as instituições de ensino possam refletir sobre como aumentar a motivação dos estudantes nesse novo contexto interativo. Pesam sobre esse período elementos como a flexibilização de tempos e espaços educacionais, de modo que algumas atividades remotas podem ser realizadas de modo assíncrono, segundo a disponibilidade dos alunos. Embora essa flexibilização possa ser importante no amadurecimento do aluno de ensino superior, há que se criar estruturas didáticas e institucionais que permitam que essas condições contribuam para o desenvolvimento do estudante e não para a diminuição do seu interesse e consequente possibilidade de evasão. Assim, é importante investir esforços para que as atividades remotas veiculadas durante a pandemia possam ser suficientemente convidativas a esses estudantes. Obviamente que isso não pode ocorrer de modo apartado da realidade que temos vivenciado, promovendo a necessidade de um ensino cada vez mais engajado e que, de fato, seja uma resposta adaptativa a um contexto complexo.
Outro aspecto que merece destaque nas falas dos estudantes refere-se às orientações que os mesmos realizaram para outros colegas universitários em termos de cuidado em saúde mental. A criação de estratégias de enfrentamento diante da realidade vivida é muito importante para que os estudantes se adaptem e consigam lidar com as demandas desse período. É importante que nesse momento de distanciamento social em que as pessoas ficarão fechadas nos espaços de suas residências, as mesmas encontrem atividades que possam ser desenvolvidas para minimizar o impacto causado por esse evento. Nesse contexto que foram remetidos, é importante que os estudantes universitários adaptem estratégias de enfrentamento para atender às suas necessidades específicas e promover sua resiliência psicológica (Zhai & Du, 2020).
Além dos aspectos mencionados pelos estudantes que podem atenuar o impacto causado pelo distanciamento/isolamento social outros elementos são descritos na literatura científica como importantes para que esse momento seja vivido de forma menos estressora. Entre os aspectos que podem ser relevantes para que as pessoas vivam o isolamento de forma menos impactante está a necessidade de garantir uma boa compreensão da doença, realizar orientações sobre como evitar o tédio, enfrentamento e gerenciamento do estresse, demonstrar que a comunicação com a família e os amigos é essencial, reforçar que o que a situação vivida pode ajudar a manter outras pessoas seguras, incluindo aquelas particularmente vulneráveis, entre outros aspectos (Brooks et al., 2020).
Compartilhar essas estratégias nos espaços educacionais pode ser um recurso importante para que também a Universidade possa ser um espaço de promoção de saúde mental e de cuidado e acolhimento neste contexto pandêmico. Pensar a adaptação acadêmica não pode ser uma ação apartada da discussão acerca da adaptação pessoal de cada estudante. Para além dos aspectos individuais que reportam formas particulares de responder a esse contexto e as mudanças impostas, há que se refletir, cada vez mais, como podemos produzir cuidado de modo coletivo. A utilização dos espaços e dos tempos no ensino superior podem fornecer um importante contexto promotor de saúde. Assim, recomenda-se que também os professores e gestores educacionais devam estar atentos aos elementos aqui recuperados de modo não apenas a manter os processos de ensino e aprendizagem, mas possibilitarem a aprendizagem de importantes aspectos relacionados à formação profissional, como a ética, o cuidado com o outro e o reconhecimento de que o desenvolvimento individual não pode suplantar o desenvolvimento coletivo, discussão esta cada vez mais emergente no contexto pandêmico.
Considerações finais
Os aspectos observados mostram que as vivências da pandemia do COVID-19 foram experienciadas como desafiadoras pelos estudantes entrevistados. Os dados encontrados fornecem um retrato sobre como tem sido a realidade para uma parcela significativa de universitários que tiveram suas rotinas interrompidas diante de uma doença potencialmente grave e que tem causado inúmeros transtornos e impactos no modo de vida social que as pessoas. Os relatos em apreço mostram diferentes realidades e modos particulares de responder a essas mudanças.
Os dados da Etapa I podem ser considerados exploratórios das medidas quantitativas que podem ter sido afetadas pela pandemia. Muitos dos resultados se diferiram da literatura apresentada e são sugestivos de poucas mudanças. No entanto, há de se considerar que a avaliação quantitativa foi realizada durante o mês de abril do ano 2020, no início do período de isolamento social. Ainda assim, houve diminuição da crença de autoeficácia, provavelmente ocasionada pela instabilidade da situação local e global. O consumo de álcool entre os estudantes também diminuiu, reforçando que para os jovens, o consumo de bebida ocorre em meios sociais.
Também houve sugestão de que o estresse e a ansiedade podem ser as medidas mais sensíveis ao contexto, por conta da ausência de estabilidade entre as medidas, enquanto a depressão está associada ao estado anterior, assim como a crença de autoeficácia e o consumo de álcool e sono. Deste modo, o investimento em medidas preventivas ao estresse e ansiedade neste momento de pandemia pode ser frutífero para prevenir outros problemas de saúde mental, assim como intervenções que procurem reestabelecer a crença de autoeficácia acadêmica dos estudantes.
No entanto, há de se considerar que a presente pesquisa contou com uma pequena adesão dos estudantes na avaliação longitudinal - apenas 10% dos cerca de 200 participantes de uma avaliação inicial, o que demonstra a dificuldade em estudos de seguimento. O número de participantes não permitiu análises mais robustas e que pudessem verificar o efeito preditor de variáveis anteriores que podem prever mudanças nos indicadores de saúde mental, mas ainda assim, considera-se relevante tais resultados, com a sugestão de que novas avaliações sejam realizadas no período avançado da pandemia.
A análise aprofundada dos casos permitiu não apenas retratar realidades, mas disparar reflexões que podem e devem atravessar o modo como pensamos não apenas a educação formal nesse novo contexto desenvolvimental, mas como a Universidade pode se colocar a serviço de um cuidado que, incidindo primeiramente em seus estudantes pode se propagar para diferentes espaços de cuidado, inclusive no âmbito doméstico, representando uma potência que deve ultrapassar os sentidos contemporâneos da manutenção do ensino na modalidade remota.
Todos os aspectos discutidos neste estudo corroboram para que o momento vivido seja potencialmente estressor, angustiante e crie um contexto de incertezas e apreensões que precisam ser considerados e observados, pois impactam na qualidade de vida, na saúde física e mental dos sujeitos. Assim, assevera-se que a Universidade possui um papel de destaque nesse contexto. Em um primeiro momento, como representado nas falas dos participantes, esse papel esteve relacionado à manutenção das atividades pelo ensino remoto, possibilitando que diversos estudantes dessem continuidade aos seus estudos, o que possui um sentido importante na posterior retomada do ensino presencial. Aventa-se que essa manutenção seja importante para esses estudantes não apenas estejam engajados em atividades, mas que compreendam a transitoriedade desse período. Superados os desafios mais emergentes dessa adaptação, é premente que essas instituições se coloquem a serviço também da promoção de saúde. Assim, o ensino não pode ser resumido à continuidade dos tradicionais processos de ensino-aprendizagem pensando exclusivamente na evolução do estudante em um curso específico, mas como um convite ao desenvolvimento, ao amadurecimento e a um cuidado que deve ser pensado em termos coletivos. Ultrapassar os sentidos sobre o que é a adaptação, do nível pessoal para o acadêmico, deve envolver uma atitude que convide alunos, professores e gestores a corporificarem a Universidade e os demais espaços formativos como campos prioritários e potentes para fazer frente a esse período de maior mobilização emocional.