Introdução
Por pouco mais de um século, o “Relatório Flexner” desencadeou uma série de reformulações, pautadas no paradigma biomédico, que se fizeram notar tanto na prática quanto no ensino nos cursos de formação profissional na área de saúde. Contudo, a discussão atual no ensino superior na área de saúde aborda a insuficiência deste modelo na formação de um profissional capaz de traduzir todo o seu conhecimento técnico-científico, por meio de relações sociais com a população que permeiem o processo saúde-doença, em indicadores epidemiológicos favoráveis nas comunidades onde ele está inserido ( ; Pagliosa & Da Ros, 2008; Bravo et al., 2014).
No Brasil, o acesso cada vez mais democrático ao ensino superior, tem evidenciado esta necessidade de extrapolação da educação superior para além do seu domínio estritamente técnico-científico (Ristoff, 2014). Neste contexto, elementos de relevância social que incidam sobre o processo saúde-doença da população devem ser agregados visando uma aprendizagem significativa, realizada em cenários reais de ensino-aprendizagem, que favoreçam o desenvolvimento equânime e concomitante dos domínios psicomotor, cognitivo e afetivo no estudante ( ). Contribuem ainda para esta mudança de paradigma no ensino superior em saúde, a adoção, pelos cursos de graduação, de matrizes curriculares e projetos políticos pedagógicos que articulem as tensões no campo do saber (formação como movimento de produzir-se; formação como território do trabalho vivo; formação como experimentação; e formação como criação), em consonância com as diretrizes curriculares nacionais para formação na área da saúde e também com os princípios doutrinários e organizativos do Sistema Único de Saúde (SUS) (; ; De Negri et al., 2017; Grillo et al., 2019).
A confluência de tais fatores situam a micropolítica do SUS como um espaço privilegiado, onde o singular encontro trabalhador-usuário ocorre (Abrahão & Merhy, 2014; Moura & Silva, 2015), onde afetos e subjetivações na dimensão profissional da gestão do cuidado são produzidos. Ressalta-se que tais afetos e subjetivações constituem a base para a aprendizagem significativa do processo saúde-doença e uma formação crítica, reflexiva e ética do profissional de saúde (; Oliveira et al., 2015).
Nesse contexto, este estudo objetivou avaliar a integração dos saberes da tríade ensino-serviço-comunidade, utilizando a Aprendizagem Baseada em Projetos (ABP) associada ao Portfólio Coletivo na formação do nutricionista dentro da micropolítica do Sistema Único de Saúde (SUS). Relata-se um recorte ensaístico de uma experiência acadêmica de integração de conhecimentos da áreas de Nutrição e Alimentação, Nutrição Clínica, Nutrição Social e Saúde Pública, protagonizada por estudantes na micropolítica do SUS, experienciando a tríade ensino--serviço-comunidade, o desenvolvimento de competências (conhecimentos, habilidades e atitudes) e o currículo oculto na construção do cuidado em saúde e nutrição (Simões, 2005; ; Azimpour & Khalilzade, 2015).
Método
Trata-se de um estudo transversal, qualitativo, descritivo e exploratório de dados empíricos gerados por estudantes de uma Instituição Federal de Ensino Superior (IFES), a partir de uma experiência de Aprendizagem Baseada em Projetos (ABP) associada ao Portfólio Coletivo (PC). A coleta de dados foi realizada a partir de dados secundários registrados e descritos no PC. As etapas metodológicas do processo ensino-aprendizagem são apresentadas a seguir.
Aprendizagem Baseada em Projeto e Portfólio Coletivo
A metodologia da ABP foi adotada neste estudo concebendo-se a educação como um ato político, espontâneo, libertador, coletivo, solidário e comprometido, capaz de articular teoria e prática de maneira crítico-reflexiva, na qual liderança, gestão, relação e colaboração interprofissionais são trabalhadas em um contexto social real (Figura 1) (Simões, 2005).
Nesta abordagem a aprendizagem se dá essencialmente a partir de um projeto com aplicação prática, no qual competências e valores são estruturados utilizando métodos sistemáticos de ensino, com acompanhamento do processo e avaliação formativa do estudante ( ; Queiroz et al., 2016; Zancul et al., 2017).
Visando potencializar a ABP, foi introduzido o portfólio, como um instrumento de aprendizagem, de desenvolvimento de habilidades e de avaliação de competências e da própria aprendizagem, a fim de favorecer a integração de saberes no desenvolvimento de competências para atuação do nutricionista no SUS (Costa et al., 2018).
Desenho e Cenário do Estudo (Etapa de Problematização da ABP)
A ABP foi desenvolvida no contexto da disciplina Gestão de Unidades de Alimentação e Nutrição II, do curso de graduação em Nutrição da Universidade Federal de Viçosa, campus Viçosa, Minas Gerais, Brasil, tendo como prática de ensino o desenvolvimento de um projeto para a promoção de alimentação saudável de maneira a atender uma determinada coletividade. Essa prática de ensino, vigente desde 2008, consiste do planejamento e execução de um evento, por estudantes da disciplina, tendo como facilitadores o professor coordenador e um técnico de nível superior. Para a edição realizada no 2º semestre/2014, alvo deste estudo, algumas adaptações metodológicas foram necessárias: promoção da interação academia-SUS, a partir da inclusão de público-alvo externo (gestantes usuárias e nutricionista do SUS) à academia; ampliação da equipe do projeto pela inclusão de 02 docentes facilitadores; promoção da interação facilitadores-estudantes de nutrição-estudantes participantes do Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (PRÓ-Saúde)/Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde); realização de oficinais mensais problematizadoras (03 oficinas no semestre letivo), a fim de desenvolver as competências (conhecimentos, habilidades e atitudes) dos estudantes em situações reais de sua atuação profissional, tendo como base princípios do “Peer Instruction”, propostos por Eric Mazur (Zancul et al., 2017). A questão norteadora do projeto, “Como integrar os conhecimentos das áreas de Técnica Dietética, Gestão de Unidades de Alimentação e Nutrição, e Saúde Pública no planejamento e execução de um evento especial para contemplar as necessidades nutricionais e de saúde de uma coletividade atendida no SUS?”, foi elaborada a partir destas oficinais. Como resposta foi concebido o evento “chá de bebê” para gestantes do SUS.
Implementação de Ações (Etapa de Desenvolvimento da ABP)
Focando a interação ensino-serviço-comunidade, o evento foi planejado para um público aproximado de 35 pessoas, com duração prevista de 03 horas. Assim, esse público foi constituído por 10 gestantes e 01 nutricionista do SUS, 14 estudantes da disciplina, 02 estudantes de Educação Física/ UFV, 04 facilitadores e 04 professores, externos ao projeto, participantes do processo de avaliação. A disponibilidade de recursos foi o fator limitador do número de pessoas.
Durante o processo de planejamento os estudantes da disciplina sentiram necessidade de interagir com outras áreas de saber, visando oferecer um evento diferenciado, proporcionando uma experiência única a seu público. Desta forma, os participantes do PRÓ-Saúde/PET-Saúde auxiliaram os estudantes da disciplina na seleção de unidades de saúde pertencentes às Redes de Atenção à Saúde (RAS) do município, para subsequente seleção das gestantes usuárias do SUS. As gestantes, foram selecionadas, a partir de sua manifestação voluntária, em consultas de pré-natal e atividades educativas coletivas. Suas preferências e restrições alimentares, visando a composição do cardápio do evento e a elaboração das preparações, foram levantadas nestes momentos.
Desse modo, os estudantes de Nutrição atuaram no planejamento do cardápio, construção das fichas técnicas das preparações, elaboração das preparações, considerando as particularidades do período gestacional no que tange alimentação e nutrição, em consonância com o tipo e horário do evento. Os estudantes de Educação Física contribuíram com a realização de uma oficina de exercícios de respiração e relaxamento para gestantes, planejada para ocorrer durante a execução do evento.
Aos facilitadores reservou-se o papel de orientar, intervir pontualmente em intercorrências não dirimidas pelos próprios estudantes e participar da avaliação formativa por meio do PC solicitado a eles. Ressalta-se que todos os movimentos, sentimentos e impressões experimentados por todos os participantes durante o percurso de execução do projeto foram registrados no portfólio, reafirmando seu potencial como instrumento de ensino-aprendizagem (Costa et al., 2018).
Realização do Evento e Avaliação do Projeto (Etapa de Síntese da ABP)
A síntese do projeto se deu a partir da execução do evento e avaliação dos dados obtidos com os instrumentos de avaliação, em vigência na disciplina desde o ano de 2008: PC; ‘Ficha de Avaliação do Planejamento e Execução do Evento’ (contendo informações sobre o convite, cardápio e serviço, custo do evento e disponibilidade do portfólio para consulta durante o evento); e ‘Ficha de Avaliação do Estudante por seus Pares e de Autoavaliação’.
O PC foi utilizado como instrumento de avaliação formativa, compartilhada entre estudantes e facilitadores, a cada etapa do evento proposto a fim de analisar a evolução do trajeto percorrido e de registrar os sentimentos e impressões de estudantes, gestantes e demais participantes do evento, ao final da sua execução. A ‘Ficha de Avaliação do Planejamento e Execução do Evento’ foi preenchida pelos facilitadores membros do projeto e 04 membros externos convidados para exercer esta função, conforme realizado anualmente dentro da prática pedagógica utilizada na disciplina. Cada membro da equipe dos estudantes foi avaliado individualmente pelos pares, além de autoavaliar-se, utilizando a ‘Ficha de Avaliação do Estudante por seus Pares e de Autoavaliação’.
Visando assegurar anonimato e sigilo de informações, foi atribuído um número aleatório para cada participante do evento. Esta numeração evidencia que as informações prestadas se originaram de indivíduos diferentes.
Aspectos Éticos
Como o estudo foi elaborado a partir de atividades de uma prática de ensino regular da referida disciplina, utilizando dados secundários obtidos de registros no PC, foi dispensada a apreciação pelo Comitê de Ética em Pesquisa/Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CEP/CONEP), visto que o estudo configura-se como relato de uma “atividade realizada com o intuito exclusivamente de educação, ensino ou treinamento sem finalidade de pesquisa científica, de alunos de graduação...” ().
Resultados
A ABP possibilitou a reposta à questão norteadora do projeto, a partir da interação ensino-serviço--comunidade.
A realização do evento consistiu em um momento de confraternização entre todos os atores sociais envolvidos, em um ambiente harmonioso, diferenciado e decorado pelos estudantes de Nutrição de acordo com a temática proposta. Toda a dinâmica do evento foi executada com o intuito de acolher as gestantes do SUS, assegurando visibilidade social às sete que compareceram.
Protagonismo e profissionalismo dos estudantes foram evidenciados ao: a) planejarem um cardápio consistente com as necessidades nutricionais e particularidades de saúde e do período gestacional destas mulheres e ao mesmo tempo atenderem aos demais participantes; b) construírem fichas técnicas apropriadas de todas as preparações servidas; c) elaborarem preparações consonantes com a qualidade nutricional, sensorial e higiênico-sanitária e com o tipo e horário do evento; d) criarem e elaborarem manualmente os convites personalizados com a temática do evento.
A oficina para as gestantes, realizada pelos estudantes de educação física durante o evento, proporcionou um momento acolhedor e de integração entre todos os participantes, num contexto diferente do cotidiano, e especialmente dedicado às gestantes.
A articulação com o SUS foi um processo inovador na elaboração do evento realizado. Os desafios e fortalezas identificados na execução do projeto são listados no Quadro 1.
A conjunção entre ABP e PC oportunizou aos estudantes um trabalho harmônico entre os domínios fundamentais da aprendizagem ( ) conforme observado no Quadro 2:
Por meio do uso de fala livre, registrada no portfólio, foi possível perceber os sentimentos e a produção de afetos dos participantes do evento. A Figura 2 traz alguns relatos expressivos dos participantes.
Os relatos evidenciam como as categorias do ‘domínio afetivo’ (receptividade, resposta, valorização, organização e caracterização) foram plenamente trabalhadas com os estudantes a partir da execução deste projeto (). Ademais, conforme registrado no Quadro 2, os domínios ‘cognitivo’ e ‘psicomotor’ também se fizeram presentes na aprendizagem.
Discussão
A inclusão do SUS como cenário real de prática para o desenvolvimento do projeto na disciplina de Gestão de Unidades de Alimentação e Nutrição II mostrou-se viável tendo em vista a excelência com a qual o evento foi realizado. A aproximação dos usuários do SUS às atividades de ensino proporcionou novos desafios os quais, para serem superados, requereram o desenvolvimento de novos conhecimentos, habilidades e atitudes dos estudantes, viabilizando a integração dos saberes da tríade ensino-serviço-comunidade (Quadro 1). Ressalta-se que essa aproximação atende às Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Nutrição (; ), contribuindo para formação de profissionais comprometidos com as necessidades de saúde da população e com o desenvolvimento do SUS.
A conjunção da ABP ao PC, nessa prática pedagógica, mostrou-se adequada para o trabalho dos conceitos-ferramentas utilizados para o desenvolvimento do projeto com os estudantes. A intencionalidade da escolha destas ferramentas visou o trabalho para além da apreensão dos conhecimentos técnico-científicos, buscando a aquisição de outras competências importantes para a formação do nutricionista (Quadro 2). Neste contexto, sentimentos vivos como ‘alteridade’, ‘acolhimento’ e ‘vínculo’, foram possibilitados e externados a partir do corpo desta experiência, sob a lógica de humanização no SUS (Oliveira et al., 2015; Passos & Carvalho, 2015; ). Assim, o evento, além da confraternização e promoção da alimentação saudável inseridas na atividade acadêmica, alcançou um status de um chá de bebês real, inclusive cumprindo sua função social, com iniciativa dos estudantes de arrecadação e distribuição de fraldas às gestantes participantes.
Toda a importância e potência da micropolítica do trabalho nas organizações de saúde corroborando com o ensino superior, enfatizando o uso de tecnologias leves na gestão do cuidado, e por conseguinte fomentando a humanização da atenção à saúde no locus onde esta é efetivamente produzida (Castiel et al., 2014) foi revelada, aprendida e apreendida pelos estudantes com a execução deste projeto, conforme observado nos registros realizados no PC. Ainda por meio desses registros foi possível extrair informações acerca da satisfação das gestantes e de outros participantes do projeto com o evento.
A análise dos resultados evidencia o alcance dos objetivos de maneira positiva, com o enfrentamento favorável dos desafios identificados no contexto do projeto (Quadro 1). Possivelmente, contribuíram para os resultados encontrados as fortalezas a seguir: a) boa aceitação da proposta pelo SUS de integrar o serviço com a universidade, facilitando a aproximação com a comunidade; b) desenvolvimento de novas habilidades nos domínios cognitivo, psicomotor e afetivo (Quadro 2), a partir do envolvimento de pessoas de diferentes áreas de atuação, trabalhando em sincronia nas múltiplas atividades do projeto.
Os agenciamentos vivenciados pelos estudantes, a percepção e a compreensão do papel de cada ator do SUS (o profissional de saúde, na dimensão profissional; o gerente da equipe, na dimensão organizacional e; o gestor do sistema, na dimensão sistêmica) foram fundamentais para o trabalho vivo da participação popular e do controle social (um dos princípios organizativos do SUS). Além de fortalecer, deste modo, também a gestão participativa do SUS, junto às gestantes deste projeto, tendo como premissa a alimentação saudável, para além da nutrição dos indivíduos, promoveu a aproximação de pessoas e culturas, a socialização de conhecimentos e a convivência entre seres humanos, embasando a formação do “cuidado de si” e a corresponsabilização em saúde na produção do comum, sem o risco de se produzir mais do mesmo, dentro do modelo de produção social da saúde (; ; ., Ely & Toassi, 2018).
Ações de empreendedorismo também foram trabalhadas neste projeto com os estudantes. Gestão de recursos financeiros e busca ativa por patrocinadores externos e parcerias/integração com estudantes de outros cursos de graduação da IFES foram realizadas. A conexão com estudantes de outros cursos propiciou o desenvolvimento de uma educação interprofissional ( ; Lawlis et al., 2019), no momento em que o SUS, como cenário de prática, proporciona um espaço de compartilhamento de percepções e experiências, necessário para a sua formação. Ressalta-se que tais afetamentos impactam, para além da formação acadêmica, na educação continuada dos profissionais da rede SUS e na qualidade de vida de seus usuários.
O estudo evidenciou que a integração ensino--serviço-comunidade foi bem sucedida e revelou a importância de superar os novos desafios, por todos os envolvidos, que foram desencadeados com a aproximação das atividades acadêmicas com o SUS.
A metodologia empregada constituiu-se como uma possibilidade de realização de um processo ensino-aprendizagem significativo na formação do nutricionista, integrando demandas de saúde da comunidade e da rede SUS e contemplando a tríade ensino-serviço-comunidade. O impacto positivo do uso conjunto da ABP e PC foi observado nos estudantes e experimentado pelos docentes, uma vez que esta integração se apoia na relação dialógica entre educando e educador.
Conhecimento e aprendizado foram construídos e mediados a partir dos agenciamentos ‘estudante-estudante’, ‘estudante-facilitador’, ‘estudante-servidor do SUS’, ‘estudante-usuário do SUS’, ‘facilitador-facilitador’, ‘facilitador-servidor do SUS’ e ‘facilitador-usuário do SUS’, integrandose os quatro pilares da educação, propostos por Jacques Delors (; Silva, 2008; ; De Negri et al. 2017). Paralelamente, os registros no PC, evidenciaram a presença e relevância do ‘currículo oculto’ (Azimpour & Khalilzade, 2015), evidenciando aos docentes que formas de melhor explorá-lo na formação generalista, humanista, crítica e reflexiva do nutricionista, devem ser buscadas.O estudo possibilitou o fornecimento de informações preciosas para a discussão departamental acerca da revisão da matriz curricular e do projeto político-pedagógico do curso de Nutrição em questão, centrada na perspectiva da inserção do estudante nos cenários reais de ensino-aprendizagem e possibilitou também, de maneira secundária, a compreensão viva do conceito de ‘integralidade em saúde’ e do desenho e modus operandi das RAS no SUS.