Introdução
As Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) têm transformado a educação e mudado a forma como o processo de ensino-aprendizagem é concebido e planeado, tendo ainda a Organização das Nações Unidas para a Educação (UNESCO), por meio da Agenda 2030, reconhecido o potencial das TICs para impulsionar o progresso, reduzir a desigualdade digital e promover sociedades do conhecimento inclusivas ( ; ; ).
O uso cada vez mais frequente de tecnologias digitais na vida pessoal, profissional e social tem aumentado a complexidade dos ambientes educacionais, exigindo que os educadores repensem as práticas de ensino e atualizem as suas habilidades digitais para melhorar o processo de ensino-aprendizagem, o que implica responsabilidade sobre o uso crítico, ético e criativo das tecnologias digitais ().
Em 2018, o Conselho da União Europeia (re) elencou oito competências essenciais para a Aprendizagem ao Longo da Vida (ALV), dentre elas as competências digitais (Conselho da União ), sendo que, para algumas dessas competências foram desenvolvidos quadros de referência específicos pela Comissão Europeia por meio do Joint Research Centre (JRC) e do Conselho Europeu, conforme demonstra a Figura 1.
Competência Digital Docente
A competência digital é um termo que se originou a partir da necessidade de definir as habilidades essenciais para uma sociedade do conhecimento em constante evolução, e está diretamente relacionado com o desenvolvimento tecnológico atual e com as expectativas de conhecimentos necessários ao exercício da cidadania numa sociedade em que as práticas se revelam cada vez mais digitalmente mediadas. A competência digital é considerada central e relaciona-se em específico com os tipos de habilidades que pessoas digitalmente fluentes devem possuir, além de ser fundamental para a inclusão social, participação cívica e crescimento sustentável da sociedade atual ( ; Ilomäki et al., 2016; Span- ).
A competência digital pode ser definida como a “Utilização segura, crítica e criativa das tecnologias digitais para alcançar objetivos relacionados com trabalho, empregabilidade, aprendizagem, lazer, inclusão e/ou participação na sociedade” (Ferrari, 2012, p. 3).
A mais recente publicação da União Europeia que trata das competências digitais dos cidadãos assume a designação DigComp 2.2: The Digital Competence Framework for Citizens ( ), encontrandose já traduzida em várias línguas, incluindo o português (Lucas et al., 2022) e espanhol ().
Dada a importância das competências digitais, diversos estudos (Costa et al., 2008; ), relatórios técnicos ( ; Verdú-Pina et al., 2022), recomendações () e iniciativas governamentais () têm sido desenvolvidas em torno da avaliação e certificação dessas competências, como o European Digital Skills Certificate (EDSC) ( ), conforme previsto na ação 9 do Plano de Ação para a Educação Digital 2021-2027 ().
A Competência Digital Docente (CDD) pode ser definida como o conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relativas aos aspectos tecnológicos, informativos e comunicacionais utilizados no contexto educativo-formativo, agregando bons critérios pedagógicos e didáticos para a integração efetiva desses elementos no processo de ensino-aprendizagem de forma consciente das implicações deles na formação digital dos estudantes ().
A CDD vem ganhando força, através de organizações oficiais que apoiam o valor e demandam o desenvolvimento das mesmas na sociedade atual em que estamos imersos (), como a e a Comissão Europeia ( ), além de instituições prestigiadas globalmente como o e o .
Várias forças estão resultando em novos desafios e despertando a necessidade urgente na transformação do ensino superior para o futuro, o que traz um impacto significativo na mudança do papel dos docentes. Essas forças incluem a quarta revolução industrial, as inovações pedagógicas, o aumento da quantidade de informação disponível online, ênfase na ALV, os avanços em inteligência artificial e a mudança para lógicas de Educação Aberta, incluindo, entre outros, os Recursos Educacionais Abertos (REA) e o Open Access, tais forças têm tornado o processo de ensino mais orientado para o uso eficiente e pedagogicamente produtivo de recursos digitais (Ally, 2019; Lebrún et al., 2021; Oliva et al., 2014).
Para garantir que as IES consiguem lidar com os desafios trazidos pelo progresso socioeconómico e pelas mudanças tecnológicas, é necessário que seus profissionais estejam devidamente capacitados, sendo uma das principais áreas críticas de formação neste sector, as competências tecnológicas, os conhecimentos digitais e informacionais, considerando-se que tais tecnologias, quando utilizadas corretamente em sala de aula, podem promover o desenvolvimento de competências digitais dos estudantes do ensino superior, bem como o progresso institucional, (Area-Moreira et al., 2016; Heitink et al., 2016; ; Narasuman, 2016) sendo ambas essas dimensões altamente desejadas.
As IES têm como desafio para os próximos anos desenvolver competências digitais em seus estudantes face a uma inevitável extinção de empregos e profissões que não se enquadram neste novo panorama: de uma Economia e de uma Sociedade Digital (Ortigoza et al., 2021).
A incorporação das TICs no ensino superior tem tido um impacto significativo no corpo docente, resultando em uma mudança substancial no processo de ensino, estimulando que se deixe para trás o ensino transmitido com base em metodologias convencionais e se adotem ambientes de aprendizagem tecnologicamente enriquecidos, promovendo atividades que geram autonomia e colaboração entre os estudantes ( ; Mirete et al., 2020; ).
Today, educators at tertialy level need to adapt to these changes and become more deliberately competent in technology, in order to respond to new challenges and demands something that has been a recurrent theme since the turn of the century. ( )
Quadro de Referência DigCompEdu
O referencial central na presente investigação, o DigCompEdu: Quadro Europeu de Competência Digital para Educadores, destina-se a todos os níveis educacionais (Lucas & Moreira, 2018), não possuindo, dessa forma, elementos-chave para o ensino online, nem mesmo o blended learning (Mattar et al., 2020; ). Sendo assim, entendeu-se necessário desenvolver um estudo que identifique se as competências contidas neste quadro de referência são aplicáveis quanto à prática docente no ensino superior online, mesmo que não represente a totalidade de competências digitais necessárias, o que possibilitará o desenvolvimento de novos quadros de referência em formato de extensões, tomando como referencial central o DigCompEdu.
O DigCompEdu é composto por 22 competências organizadas em 6 áreas, conforme a Figura 2, possuindo 6 níveis de proficiência e adotando um modelo de progressão cumulativa da competência digital, haja vista que cada descritor de nível superior inclui todos os descritores de nível inferior, ou seja, grau crescente de complexidade, do A1 ao C2.
O quadro de referência DigCompEdu tem seu uso consolidado na comunidade científica internacional (Caena & Redecker, 2019; ; Dias-Trindade & Moreira, 2018; ; Lucas et al., 2021; ). São diversos os trabalhos que buscam validá-lo ( ; Cabero-Almenara, Guillén-Gámez, et al., ; Cabero-Almenara, Gutiérrez-Castillo, et ; ; ), bem como o seu instrumento nativo, o DigCompEdu CheckIn 2019 ( ; Gallardo-Echenique et al., 2023; Ghomi & Redecker, 2019; ; ).
Apesar de a União Europeia possuir diversos referenciais em relação às competências digitais ligadas à educação (Kampylis et al., 2015; ; A. Santos, 2017, 2019), não se identifica a nível europeu um quadro relacionado especificamente ao nível de ensino superior nem em relação à modalidade de ensino online.
Esse artigo tem como objetivo validar empiricamente, do ponto de vista da prática docente, o DigCompEdu Quadro Europeu de Competência Digital para Educadores quanto à sua aplicabilidade no nível de ensino superior online, por meio de entrevistas com docentes que lecionam neste contexto.
Metodologia
Este artigo adota uma abordagem aplicada ao buscar oferecer uma solução por meio da aplicação do conhecimento com o objetivo de validar as competências estruturantes do DigCompEdu no contexto específico da prática docente no ensino superior online. A abordagem metodológica implementada abrange o planejamento e os procedimentos, desde pressupostos gerais até métodos detalhados de coleta, análise e interpretação de dados, classificando-os em categorias distintas de abordagens: qualitativas, quantitativas e mistas (Mattar & Ramos, 2021).
Adotou-se como abordagem metodológica qualitativa o processo de recolha de dados por meio da pesquisa de campo assente na aplicação de entrevistas semiestruturadas, buscando assim alcançar maior profundidade e detalhamento. Estas foram realizadas entre junho e julho de 2022 com docentes do ensino superior português.
Para Mattar e Ramos (2021), a entrevista é uma técnica de recolha de dados rica e bastante utilizada em pesquisas na área da educação, o que possibilita recolher a perspectiva de diferentes agentes (estudantes, professores, gestores, coordenadores, supervisores, psicólogos e funcionários em geral), cujas experiências individuais e coletivas constituem, efetivamente, a educação. Ainda segundo Babbie e Roberts (2018), a entrevista semiestruturada é organizada em torno de perguntas gerais e temas predefinidos, embora a a ordem das perguntas e os temas abordados possam variar conforme o entrevistador e a dinâmica estabelecida entre este e o entrevistado.
A validade e a confiabilidade da coleta de dados por entrevista é transversal, destacando-se especialmente nos aspectos relacionados à estrutura, processo e prática da entrevista, incluindo o objetivo de minimizar o impacto que o entrevistador e a situação da entrevista podem exercer sobre as respostas dos entrevistados.
O processo de coleta e de análise de dados foi desenvolvido com a total garantia dos preceitos éticos e legais, estando de acordo com a carta ética para a investigação em educação e formação do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (ULisboa), bem como o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) recebendo o parecer favorável nº 2.906 da Comissão de Ética (CdE).
Participantes
Esta investigação parte de um estudo mais amplo que possui duas fases, estando este artigo situado na segunda fase.
A primeira fase teve como objetivo aferir o nível de proficiência das competências digitais dos docentes do ensino superior português com a participação de 846 participantes de diversas áreas científicas e de estabelecimentos públicos e privados pertencentes aos dois subsistemas de ensino superior português: ensino universitário e politécnico (; ). Dentre as perguntas de caracterização destes participantes, uma delas foi a proporção que lecionavam nas diferentes modalidades: i. 100% presencial, ii. 30% online e 70% presencial, iii. 70% online e 30% presencial, e iv. 100% online. A segunda fase, a qual este artigo diz respeito, partiu da amostra da primeira fase (n=846) com um recorte considerando apenas os docentes que indicaram lecionar no mínimo com 30% da sua carga horária na modalidade online, resultando em 331 participantes. Desses, apenas 221 puderam ser contactados em função do fornecimento dos dados pessoais ser opcional. Dos 221 contactados para participar no processo de entrevista, 25 manifestaram interesse (11,3%), indicando data e hora para a entrevista, porém, três deles, por motivos diversos, não puderam participar. Dessa forma, o presente estudo conta com uma amostra de 22 docentes, junto dos quais se realizaram processos de entrevista individual.
Guião de Entrevista
O guião de entrevista foi organizado em duas dimensões: i. preâmbulo, a qual informações básicas da investigação são transmitidas aos entrevistados, bem como o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE); e ii. quadro de referência, com o objetivo de verificar a aplicabilidade das 22 competências do DigCompEdu (22 questões, sendo uma por competência).
As questões seguiram o padrão “Em que medida, na sua atividade de ensino online, a questão da [descrição da competência] é importante?”.
O guião foi validado por meio de uma entrevista piloto com um docente que atendia aos critérios dos entrevistados. Como resultado, foram feitas modificações nos termos utilizados a fim de tornar as perguntas mais compreensíveis para os entrevistados com diversos níveis de competência digital. Além disso, foram efetuados ajustes na quantidade de questões para garantir que as entrevistas não excedessem uma duração máxima de 90 minutos.
Procedimento de Recolha de Dados
Os docentes entrevistados foram questionados em relação à importância das 22 competências contidas no DigCompEdu com o objetivo de verificar a aplicabilidade no ensino superior online. A totalidade das entrevistas perfez 33:18:19 (trinta e três horas, dezoito minutos e dezanove segundos), registando-se uma duração média de 1:30:50 (uma hora, trinta minutos e cinquenta segundos), sendo realizadas por videoconferência por meio do software Zoom Colibri (versão 5.2 para MAC, serviço disponibilizado pela FCCN, sendo esta a Unidade de Computação Científica da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) de Portugal.
Para o processo de transcrição individual das entrevistas, foi utilizado o editor de texto Word for MAC (Microsoft, versão 16.61), e os nomes dos docentes foram codificados com letras do alfabeto [Docente A, B, C...], garantindo, dessa forma, o anonimato. Após a transcrição das entrevistas, o conteúdo foi agrupado por competência (questão) e importado para o NVivo (Lumivero, versão 2021) para codificação e análise.
Análises de dados
A análise das entrevistas foi alicerçada nos procedimentos de análise de conteúdo propostas por Bardin (2020), a qual propõe três polos cronológicos: i. pré-análise; ii. exploração do material; e iii. tratamento dos resultados, ou seja, a inferência e a interpretação. De acordo com Mattar e Ramos (2021), “como em outros métodos de análise e interpretação de dados, especialmente no caso de abordagens qualitativas, a análise de conteúdo está fundamentada nos processos de codificação e categorização” (p. 279).
A análise de conteúdo culminou com a criação dos índices: (a) sim, (b) não, (c) neutro e (d) sem resposta; quando questionados em relação à importância de uma determinada competência para o ensino superior online.
Para a criação do “indicador de aplicabilidade”, foi considerado exclusivamente o percentual do índice “sim” em relação ao total de entrevistados nesta segunda fase (n=22) sendo considerados os seguintes intervalos de aplicabilidade: a) não aplicável (0 a 25%); (b) pouco aplicável (26 a 50%); (c) aplicável (51 a 75%); e (d) muito aplicável (76 a 100%).”
Resultados
Caracterização da Amostra
A amostra foi composta por 22 docentes do ensino superior português. Quanto ao nível de formação, 77,35% (n=17) são doutores, 9,1% (n=2) mestres e 13,6% (n=3) licenciados, sendo 59,09% (n=9) do gênero masculino e 40,91% (n=13) do feminino. Em relação à faixa etária, 13,6% (n=3) possuíam entre 35 e 44 anos, 40,9% (n=9) entre 45 e 54 anos, e 45,5% (n=10) entre 55 e 64 anos. Quanto à lecionação, 27,3% (n=6) lecionam na licenciatura, 36,4% (n=8) no mestrado e 36,4% (n=8) no doutoramento, sendo que, em quatro opções de proporção entre modalidades, 63,6% (n=14) dedicavam 30% de sua carga horária online, 22,7% (n=5) se dedicavam 70% online e 13,6% (n=3) lecionavam 100% online. Em relação às instituições a que se encontravam afiliados, 72,7% (n=16) estavam vinculados a universidades e 27,3% (n=6) a institutos politécnicos, sendo destas 95,5% (n=21) instituições públicas e 4,5% (n=1) instituições privadas.
Resultado Global
Considerando os indicadores de aplicabilidade anteriormente descritos, os resultados apontam que, no global, o DigCompEdu revelou ser entendido como “aplicável” ao contexto do ensino superior online. Ainda sim, no recorte por área, os resultados revelaram-se distintos: (a) Envolvimento Profissional, (b) Avaliação e (c) Capacitação dos Aprendentes foram consideradas “muito aplicáveis”, enquanto (a) Recursos Digitais, (b) Ensino e Aprendizagem e (c) Promoção da Competência Digital dos Aprendentes foram consideradas “aplicáveis”, conforme Figura 3.
Resultado por Competências
Competências da área 1: Envolvimento Profissional (EP).
As competências: (a) Comunicação Institucional, Prática Reflexiva e (c) Desenvolvimento Profissional Contínuo (DPC) Digital foram consideradas “muito aplicáveis”; enquanto (d) Colaboração Profissional foi considerada “aplicável”, conforme demonstrado na Figura 4.
Em relação à Comunicação Institucional (1.1), os entrevistados relatam sobre a importância da comunicação institucional, enunciando afirmações como: “Sim, é bastante diferente, e quem não faz fica de fora,… quer dizer, eu sinto que hoje a comunicação, através de ferramentas digitais é absolutamente central” [Docente Q]. Embora relatem preocupações em relação a uma possível redução de comunicação entre os estudantes do ensino online, “O que eu acho é que se perde sempre um pouco, ou seja, há uma parte de contato entre, sobretudo entre os alunos, não tanto entre o professor e os alunos” [Docente L].
Na competência Colaboração Profissional (1.2), foram indicadas diversas atividades como podendo ser beneficiadas com o uso de tecnologias digitais para o ensino superior online como as relativas a: (a) metodológica, “Sim, acho que ajuda, especialmente a partilha de experiências e de metodologias.” [Docente T]; (b) produção científica “...[...] é muito útil o online, estamos a escrever um artigo científico, nós não podemos responder a revisores sozinhos, nós temos que consultar o resto da equipa, a própria submissão é online, a notificação é online” [Docente F]; e (c) logística “Há muito mais facilidades, nós quebramos as barreiras que existem. Quando colaboramos com colegas estávamos sempre dependentesdo da possibilidade de nos deslocarmos para outra cidade” [Docente D].
Na competência Prática Reflexiva (1.3), os entrevistados demonstraram refletir sobre o próprio uso das tecnologias digitais, seja em relação: (a) à sua continuidade, “Sim, eu acho que é importante, porque eu penso que o digital é uma ferramenta que veio para ficar, com as quais teremos que cada vez trabalhar mais” [Docente S]; e o (b) sentido da sua utilização, “...[...] para mim, tecnologias surgem sempre com uma aplicação prática, ou seja, integradas em estratégias de ensino” [Docente B].
Na competência Desenvolvimento Profissional Contínuo Digital (DPC) Digital (1.4), os entrevistados relatam a diferença entre as formações online e presencial, salientando que no online a formação revela-se particularmente importante. Destacam-se também relatos de melhoria nesse contexto com a prática na utilização das ferramentas digitais, não necessariamente por meio de formações, mas por meio de práticas de autoformação: “Sem dúvida, todo o meu progresso até aqui também se deve um pouco ao meu domínio sobre determinado tipo de ferramentas.” [Docente J].
Competências da área 2: Recursos Digitais (RD).
A competência (a) Seleção foi considerada “muito aplicável”, enquanto (b) Criação e Modificação e Gestão, Proteção e Partilha foram consideradas “aplicáveis”, conforme demonstrado na Figura 5.
Em relação à competência Seleção (2.1), os entrevistados assinalaram essa competência como elementar e de particular relevância para os docentes: “É fundamental. Eu acho que esse é um dos grandes papéis do professor é selecionar os bons recursos e separar o trigo do joio” [Docente H]; “É decisiva. É algo que eu faço constantemente, porque é precisamente isso que me interessa, são as potencialidades dos recursos para determinados fins” [Docente B]; e “Isso é o trabalho regular de um professor. Um professor quando prepara uma unidade curricular tem que selecionar conteúdos” [Docente A].
Já na competência Criação e Modificação (2.2), os entrevistados enalteceram a criação e modificação de recursos digitais: “[...] a grande potencialidade é essa: que qualquer pessoa tenha competências para construir determinados recursos, modificar esses recursos [...]” [Docente B], embora expressam fatores ligados à necessidade de valorização dessa competência: “[...] já há algum tempo quero fazer novos materiais, novos recursos, mas isso é pouco valorizado para efeitos de progressão na carreira docente” [Docente A], bem como a (b) Alta Carga de Trabalho envolvida nesse processo: “[...] esse trabalho é um trabalho de profundidade, é trabalhoso, é dispendioso e exige aí sim, que se faça… Enfim, há pessoas que são nativas e que fazem tudo bem” [Docente E].
Em sentido semelhante, os entrevistados, de uma forma geral, relatam a relevância da competência Gestão, Proteção e Partilha (2.3): “Essa é uma matéria que tem uma regulamentação europeia recente. Está também já nos diversos cantos do mundo, é uma preocupação cada vez maior” [Docente Q], embora com opiniões bastantes conflitantes em relação às práticas profissionais e institucionais em relação à partilha de materiais.
Competências da área 3: Ensino e Aprendizagem (EA).
As competências (a) Ensino e (b) Orientação foram consideradas “muito aplicáveis”, enquanto
(c) Aprendizagem Colaborativa e (d) Aprendizagem Autorregulada foram consideradas “aplicáveis”, conforme demonstrado na Figura 6.
Em relação à competência Ensino (3.1), os entrevistados relataram com certa clareza o reconhecimento da importância da mobilização das competências digitais no próprio processo de en sino online: “...[...] utilizo em todas as áreas curriculares, desde a didática onde é indispensável a outras disciplinas” [Docente B].
Na competência Orientação (2.3), os entrevistados relataram o aumento da frequência da comunicação relacionada à orientação online, contudo, também indicam pontos negativos decorrente desse aumento da frequência de pedidos de orientação advindos da redução da autonomia: “Online nem param para pensar, portanto. Agora surgiu esta dúvida, vou ler isso, não sei o que é que é isso, escrevo ao professor” [Docente J].
Em relação à competência Aprendizagem Colaborativa (3.3), embora essa competência tenha sido considerada “aplicável”, uma parcela dos entrevistados assinalaram a sua não aplicabilidade, atestando ainda a baixa eficiência da aprendizagem colaborativa para o ensino online: “Se nós estivermos a falar de aprendizagem colaborativa, ou seja, eles reunirem-se, falar, fazerem trabalhos de grupo… Aí, eu acho que dificulta, tenho a sensação de que dificulta o online” [Docente F]; e “Isso eu acho que não, piorou um pouco, quando eles fazem trabalho de grupo, estão juntos é melhor do que quando estão separados por ZOOM” [Docente M].
Na competência Aprendizagem Autorregulada (3.4), os entrevistados atestam a importância dessa competência dos estudantes: “Isso é absolutamente necessário; é fundamental no online” [Docente Q]; porém, afirmam sentir em geral haver a falta dessa competência nos estudantes: “[...] independentemente do regime, eles não fazem autorregulação das aprendizagens. Porque eles acumulam tudo mesmo, toda a matéria até a data do teste” [Docente N] e “A autorregulação dos estudantes é uma coisa que eu acho que falha na maior parte dos alunos” [Docente D].
Competências da área 4: Avaliação (AV).
As competências (a) Estratégias de Avaliação e (b) Feedback e Planificação foram consideradas “muito aplicáveis”, enquanto (c) Análise de Evidências foi considerada “aplicável”, conforme demonstrado na Figura 7.
Na competência Estratégias de Avaliação (4.1), os entrevistados indicam sua aplicabilidade, relatando a avaliação contínua como meio preferencial: “[...] o nosso modelo pedagógico (primeiro ciclo) prevê que sigam com uma vertente da avaliação contínua, por exemplo, que ao longo do semestre possam realizar dois pequenos trabalhos” [Docente A].
Na competência Análise de Evidências (4.2), os entrevistados assinalaram considerar critérios rigorosos na seleção das evidências registradas pe los Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA): “[...] por exemplo, participação num grupo de discussão, mas não pode ser o número de participações, tem que ser o que é que foi dito nesse grupo de discussão” [Docente E], indicando, inclusive, o uso de ferramentas externas avançadas de data analysis: “[...] tivemos há uns dois ou três anos um projeto que utilizava o Google Analytics. E era ótimo” [Docente C].
Na competência Feedback e Planificação (4.3), os entrevistados evidenciaram a importância do feedback e planificação para o ensino online: “[...] no ensino à distância, é fulcral haver feedback, portanto tem que se fornecer feedback” [Docente A]; destacando-se ainda como detendo maior relevância comparativamente ao ensino presencial: “No online há uma maior preocupação com o feedback, até porque existe essa insegurança de não estarmos presentes. Isso leva-nos, portanto, a criar momentos de feedback sistemático” [Docente Q].
Competências da área 5: Capacitação dos Aprendentes (CA).
A competência (a) Acessibilidade e Inclusão e (b) Envolvimento Ativo foram consideradas “muito aplicáveis”, enquanto (c) Diferenciação e Personalização foram consideradas “aplicáveis”, conforme demonstrado na Figura 8.
Em relação à competência Acessibilidade e Inclusão (5.1), os entrevistados evidenciaram sua aplicabilidade: “É extremamente importante. Não conseguir assegurar isso, é criar situações de discriminações entre alunos e, portanto, condicionar a aprendizagem” [Docente D]; bem como destacam a necessidade em responder à pluralidade das deficiências: “[...] acessibilidade para invisuais é uma coisa, para deficientes auditivos é outra, para estudantes com problemas cognitivos de aprendizagem é ainda outra coisa” [Docente E]. Na competência Diferenciação e Personali-
zação (5.2), os entrevistados expressaram sua importância para o ensino online: “Sim, acho que ... é uma das vantagens do ensino online” [Docente E]; e ainda atestam como características natas do ensino online, em contrapartida às metodologias empregadas no passado: “É absolutamente necessário, no processo online não vejo por que não, aliás, é próprio, é adequado exatamente para essas situações, um estudante, tem maior disponibilidade” [Docente T].
Na competência Envolvimento Ativo (5.3), os entrevistados relataram que o ambiente online favorece o envolvimento ativo dos estudantes, seja por se sentirem mais desinibidos: “Há um conjunto de alunos, como sabemos, que são mais introvertidos. Esses, no regime online, participam mais do que no presencial” [Docente Q]; ou até geracional “[...] talvez se verifique maior envolvimento porque estão muito vocacionados para fazer tudo o que for online” [Docente F]. Os entrevistados ainda atestam a importância dessa competência: “Se nós não conseguirmos que os estudantes se envolvam nas atividades de aprendizagem com entusiasmo, nós não estamos a fazer o nosso trabalho como deve ser, não é?” [Docente E].
Competências da área 6: Promoção da Competência Digital dos Aprendentes (PC). As competências (a) Comunicação e Colaboração Digital e (b) Criação de Conteúdo Digital foram consideradas “muito aplicáveis”; enquanto que a competência (c) Literacia da Informação e dos Média foi considera “aplicável”; e, por fim, as competências (d) Uso Responsável e (e) Resolução de Problemas Digitais foram consideradas como “pouco aplicáveis”, conforme demonstrado na Figura 9.
Na competência Literacia da Informação e dos Média (6.1), os entrevistados relataram a grande importância das competências digitais nos estudantes ao ingressarem no ensino superior online: “[...] se um estudante vem para um ensino online sem literacia digital, não tem qualquer hipótese de ter sucesso” [Docente E]. Trazem ainda preocupações relativas ao aumento da necessidade de formação dos docentes devido ao aumento no nível de proficiência dos estudantes: “O que vai acontecer num futuro muito breve, já para o semestre que vem, é que os alunos vão exigir mais. Nós vamos ter que correr à frente dos alunos” [Docente C].
Na competência Comunicação e Colaboração Digital (6.2), os entrevistados relataram, de forma geral, a importância da promoção das competências de comunicação e colaboração digital como estratégia de ensino: “[...] os alunos têm que fazer um processo de cocriação; cocriação é trabalharem com organizações, com empresas e com stakeholders externos” [Docente Q]; porém, relatam dificuldades em selecionar as tecnologias e as ferramentas, pois os alunos tendem a adotar as suas próprias: “[...] nunca conseguimos disponibilizar ferramentas de comunicação e colaboração que fossem utilizadas pelos estudantes, isto é, eles procuram outras que não são controladas por nós” [Docente E]. Destacam ainda a vantagem dos estudantes que dominam as tecnologias no online: “Neste caso, o que eu percebi foi que o aluno, ou os alunos que dominavam melhor os instrumentos de trabalho ficavam com a responsabilidade sobre o trabalho, e os outros eram mais passivos no online” [Docente I].
Na competência Criação de Conteúdo Digital (6.3), os entrevistados atestam sua aplicabilidade, assumindo ainda a necessidade de estimular o protagonismo dos estudantes: “[...] desenvolvam o poder e a capacitação de se apropriarem dessas ferramentas e as utilizarem também, serem construtores, produtores de conhecimento, não simples consumidores” [Docente B].
Na competência Uso Responsável (6.4), embora considerada “pouco aplicável”, parte dos entrevistados relataram a importância dessa competência no ensino online: “Essa questão da segurança passou a ser também muito importante de ser incorporada nos nossos conteúdos” [Docente G]; indicando ainda o nível de ensino como fator decisório na promoção dessa competência: “Portanto, uma coisa é eu ter um ensino online com crianças, do liceu, outra coisa é falar de adultos, [...] devemos ter boas práticas nesse sentido, ou seja, na utilização correta dos recursos” [Docente E].
Por fim, em relação à Resolução de Problemas Digitais (6.5), embora considerada “pouco aplicável”, os entrevistados reconhecem a importância, porém não a integram nas suas unidades curriculares: “Acho que é assim, esses problemas, eles têm sempre que os resolver, porque toda gente tem problemas desses, mas integrar isso na nossa prática, não” [Docente E].
Discussão
Diversos estudos foram aplicados na população do ensino superior com o questionário nativo, o DigCompEdu (DigCompEdu CheckIn 2019), obtendo de forma geral o nível de proficiência de competências digitais intermediário (B1 - Integrador) ( ; Fernández-Morante et al., 2023; ). Apesar dessas múltiplas aplicações do referencial europeu de competência digital para educadores, não se encontraram estudos que assegurem a aplicabilidade de cada uma das competências contidas neste quadro de referência à realidade do ensino superior, nomeadamente daquele que se realiza online. O presente estudo procurou compensar essa limitação.
Por meio de entrevistas com docentes do ensino superior online, a presente investigação objetivou empiricamente, do ponto de vista da prática docente, analisar a aplicabilidade esse quadro de referência ao contexto do ensino superior na modalidade online.
Os resultados gerais apontaram para a sua aplicabilidade, registando, sobretudo, dados que consideram, “aplicável” as várias competências consideradas. Quanto às áreas analisadas (seis) de forma independente, os resultados variam desde “muito aplicável” nas áreas Envolvimento Profissional, Avaliação, e Capacitação dos Aprendentes, até a “aplicável” nas áreas relativas a Recursos Digitais, Ensino e Aprendizagem, e Promoção da Competência Digital dos Aprendentes, atestando assim que mesmo com esse recorte o referencial é entendido pelos docentes inquiridos como aplicável à sua prática.
As cinco competências contidas na área “Promoção da competência digital dos aprendentes” do DigCompEdu estão ligadas às cinco áreas do DigComp 2.2: Quadro Europeu de Competência Digital para Cidadãos (Lucas et al., 2022), ou seja, a Comissão Europeia delega de forma clara a responsabilidade da promoção das competências digitais dos cidadãos/estudantes pelos docentes ().
Dentre as seis áreas, a área 6 “Promoção da competência digital dos aprendentes” assinalou o menor percentual de docentes (61,82%) a indicarem “sim” à sua aplicabilidade no ensino superior online, o que pode estar relacionado com o facto das competências contidas nessa área, discutidas em mais detalhes adiante, se relacionarem com saberes técnicos (associados a áreas formativas específicas, p. ex., informática) e/ou ao entendimento que essas competências não deveriam ser necessariamente promovidas pelos docentes nos estudantes dos diferentes cursos superiores, contrariando assim a expectativa da Comissão Europeia no alinhamento dos quadros de referência (DigCompEdu e DigComp).
Com a ampliação do recorte por competência, das 22 contidas no quadro de referência, 63,64% (n=14) foram consideradas “muito aplicáveis”, 27,27% (n=6) “aplicáveis” e apenas 9,09% (n=2) foram consideradas “pouco aplicáveis”. Estas ultimas referem-se especificamente à competência 6.4 “Uso Responsável” e 6.5 “Resolução de Problemas Digitais”; ambas contidas na área 6, relativa à “Promoção da Competência Digital dos Aprendentes”.
A competência Uso Responsável (6.4) preconiza atividades que visam transmitir aos estudantes uma atitude favorável em relação às tecnologias digitais, encorajando o seu uso criativo e crítico, capacitando-os em relação à proteção de dispositivos, conteúdo digital e dados pessoais a fim de que possam entender as medidas de segurança, proteção, riscos, ameaças e privacidade em ambientes digitais. Nessa competência, 18,18% (n=4) dos entrevistados apontaram a sua não aplicabilidade e 45,45% (n=10) a sua aplicabilidade, os demais docentes optaram por não responder (n=1) ou a resposta foi neutra (n=7).
A competência Resolução de Problemas Digitais (6.5) preconiza a inclusão de atividades, tarefas e avaliações de aprendizagem que incentivem os estudantes a personalizar ambientes digitais, resolver problemas técnicos ao usar dispositivos e reconhecer a necessidade constante de atualizações de suas competências digitais, destacando ainda a importância de que os alunos identifiquem e escolham as tecnologias digitais adequadas para resolver os problemas e utilizem-nas de forma criativa para gerar conhecimento. Nessa competência, 45,45% (n=10) dos entrevistados apontaram a sua não aplicabilidade e 27,27% (n=6) a sua aplicabilidade, a resposta dos demais docentes foi neutra (n=6).
O referencial sob análise considera que as competências digitais são amplas, abrangentes e instrumentais na sociedade atual e que, por conseguinte, os docentes têm a responsabilidade de promover o seu desenvolvimento nos seus estudantes na medida que as tecnologias digitais estão a cada dia mais incorporadas ao processo de ensino e aprendizagem, pois a habilidade de fomentar as competências digitais dos estudantes se torna um componente essencial das competências digitais dos docentes. Contudo, docentes do ensino superior não perspectivam de igual forma.
Importante destacar que a área 6, “Promoção da Competência Digital dos Aprendentes”, está no eixo “Competências dos Aprendentes”, ou seja, é a capacidade de promover uma dada competência e não uma competência intrínseca ao docente necessária para executar uma determinada atividade docente.
Os docentes entrevistados consideram que por se tratarem de estudantes jovens adultos, essas competências já deveriam encontrar asseguradas, por exemplo, ao “Uso Responsável”, um dado docente indicou que “[...] já são adultos [...] mas, por acaso, não é daquelas coisas que nós falemos com eles” [Docente R]; relativamente à competência “Resolução de Problemas Digitais”, referem que “[...] esses problemas eles têm sempre que os resolver, porque toda gente tem problemas desses. Mas integrar isso na nossa prática, não faz sentido” [Docente E], nomeadamente porque as IES apresentam serviços específicos para esse efeito “Há um serviço de apoio aos estudantes, uma linha direta para onde eles recorrem quando há algum desse tipo de problema” [Docente L].
Apesar de cumprindo o objetivo, o presente estudo apresenta como limitações o tamanho da amostra, bem como o fato dos docentes atuarem apenas no contexto de um Estado-Membro da União da Europeia. Como estudos futuros, sugere-se validar a aplicabilidade deste quadro de referência com uma amostra maior, em dimensão e amplitude, envolvendo outros países da união europeia, bem como especialistas em educação a distância e adotando outra estratégia de recolha de dados.