Introdução
Diante de um cenário de opressão e exploração dos povos indígenas, percebemos que no universo da escrita indígena de autoria feminina no Brasil também estão refletidas essas injustiças e apagamentos de que foram vítimas os povos originários, em especial as mulheres, as primeiras vítimas da violência e da exploração dos colonizadores. Essa destruição está presente também na literatura, pois além de só tardiamente as escritoras indígenas apareceram no cenário nacional, tiveram também que sempre travar uma longa batalha para poderem se expressar e ter suas obras publicadas. Ao adentrar esse universo, notamos que o silenciamento está relacionado com o apagamento da cultura e das tradições dos povos originários.
No entanto, apesar desse passado de exclusão das escritoras indígenas, é possível notar que nas últimas décadas há um maior reconhecimento dessas mulheres no movimento de escrita e resistência no país, em especial da escritora indígena Eliane Potiguara, que aparece como a pioneira desse movimento de resgate das vozes femininas no Brasil. Eliane inaugura a Literatura Indígena de autoria feminina em solo brasileiro com contribuições de suma importância para a consolidação desse espaço literário para as populações locais.
Eliane Potiguara, além de escritora e ativista, é também professora, graduada em Letras pela UFRJ, e em 2022 recebeu o prêmio doutora honoris causa do Conselho Universitário (Consuni) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A escritora fundou ainda Rede Grumin de Mulheres Indígenas. De acordo com Assunção (2022, p. 10) certamente «o caminho aberto por Eliane Potiguara foi decisivo para que outras mulheres -sejam elas escritoras e/ou lideranças indígenas- formassem um segmento determinante para a emancipação e representatividade feminina no cenário cultural brasileiro».
A partir da fala de Assunção (2022) notamos o compromisso com a causa indígena que a escritora tem mostrado ao longo dos anos de enfrentamento e denúncia das injustiças cometidas contra seu povo. Por toda a sua trajetória a escritora é considerada uma referência na literatura indígena de autoria feminina, sendo considerada a primeira escritora indígena brasileira, visto que a escrita foi, ao longo da história, uma prerrogativa dada aos homens como prioridade dentro de uma esfera machista a patriarcal. Às mulheres sempre f o papel de cuidar dos filhos, da casa e nunca de escreverem e contarem suas próprias histórias ou ainda contarem sua versão da história.
Em Eliane Potiguara temos a personificação das lutas das mulheres indígenas que foram obrigadas a sair de suas aldeias vivendo longe de suas tradições e de sua cultura. A autora segue denunciando, por meio da escrita, a situação de marginalização e apagamento de sua cultura. Eliane Potiguara é considerada uma mulher «singular, à frente de seu tempo, a Potiguara é protagonista do movimento de mulheres indígenas, denunciando, em instâncias nacionais e internacionais, situações de vulnerabilidade, ameaças, violências, opressões e discriminação contra mulheres indígenas» (Silva, 2018; Potiguara, 2018, p. 19).
A militância e o ativismo de Eliane são reconhecidos não somente no Brasil, mas também pelo mundo a fora, devido sua participação em conferências e seminários mundiais enquanto uma das embaixadoras da ONU pelos direitos indígenas. Portanto, onde sua voz puder ser ouvida, ela não se omite na defesa de seu povo, e com sua liderança segue abrindo caminhos para as gerações futuras. Por meio de sua poesia a autora «encuentra estrategias para restablecer esa relación con substancial, asumiendo, por ejemplo, desde la voz de un sobreviviente la tozudez de la persistencia» (Rodríguez, 2017, p. 306). Potiguara permanece como a voz que sobreviveu e segue lutando.
Em seu livro Metade cara, metade máscara (cuja primeira edição é de 2004), a autora evidencia a situação que ela e sua família passaram relatando as condições de muitos povos nativos que foram perseguidos pela ganância dos grupos econômicos que atuavam nas regiões indígenas brasileiras, disseminando violência e morte. Apesar desse cenário caótico e destrutivo para Viveiros de Castro (2011, p. 257), o «povo indígena é uma multiplicidade viva, em perpétuo devir, em perpétua divisão, recombinação, diferenciação», e por meio dessa afirmação compreendemos que a escritora se recusa a ver seu povo sendo destruído sem lutar, ela permanece nesse «perpétuo devir» para preservar a memória e vida dos povos originários.
A partir do exposto, o presente trabalho tem como objetivo principal destacar o protagonismo e as contribuições da escritora indígena Eliane Potiguara para a Literatura Indígena de autoria feminina no Brasil. Percebe-se assim como a autora de configura como uma voz de resistência em meio ao silenciamento da cultura e literatura escrita e produzidas pelos próprios indígenas.
Metodologia
No que se refere aos procedimentos metodológicos, nosso estudo se trata de uma pesquisa bibliográfica sobre a trajetória da escritora a partir de outras vozes indígenas que ressaltam sua importância. É feita também a análise de alguns fragmentos de poemas do seu livro Metade cara, metade máscara (2018), para evidenciar pontos críticos da produção. Como aporte teórico, nos baseamos nos estudos Castro (2022), Graúna (2012), Mendonça (2012), Mignolo (2017), entre outros.
Desse modo, para atingirmos nosso objetivo, primeiramente foi feita uma pesquisa bibliográfica para obter mais informações a respeito do tema do presente estudo, pois conforme destaca Fonseca (2002, p. 32), «qualquer trabalho científico inicia-se com uma pesquisa bibliográfica, que permite ao pesquisador conhecer o que já se estudou sobre o assunto».
Selecionamos também alguns poemas e textos de Eliane a serem analisados, assim como alguns depoimentos de outras vozes indígenas sobre a trajetória e importância de Eliane Potiguara, presentes também em seu livro Metade cara, metade máscara (2018).
Em seguida, partimos para a análise dos poemas, textos e depoimentos que abordam o percurso da escritora, para assim estabelecer uma perspectiva a partir das vozes que conhecem e compartilham suas lutas, ou seja, os escritores e as escritoras indígenas. Além de estudiosas e estudiosos da temática dos povos originários, são também apresentamos a voz da própria autora por meio de sua escrita presentes no seu livro. Por-tanto, temos perspectivas que convergem para uma certeza: o protagonismo de Eliane Potiguara como escritora e ativista na luta pelos direitos indígenas é inegável.
Resultados
Inicialmente recordamos que a Literatura Indígena pode ser definida como a literatura «feita por pessoas que vêm das comunidades dos povos indígena, que têm um amplo conhecimento e vivência de suas culturas, é uma literatura que nasceu como uma forma de resistência» (Fuentes, 2021, s. p.). Essa literatura indígena, que antes era produzida apenas por indígenas homens, testemunha o destaque de mulheres indígenas que começaram seu processo de escrita a partir da poesia de Eliane Potiguara, que se propõe a cantar em seus versos a história dos povos nativos.
O nome da escritora paraibana Eliane Potiguara aparece como a mulher pioneira no movimento da escrita indígena de autoria feminina, com seu poema «Identidade Indígena», escrito em 1975, em cujos versos iniciais a escritora ressalta que resistirá para que a sua história seja conhecida, ela será essa «agulha que ferve no meio do palheiro» para incendiar tudo a sua volta, contando o massacre do seu povo, a partir do relato da destruição da sua família:
Mas enquanto eu tiver o coração aceso
Não morre a indígena em mim
E nem tão pouco o compromisso que assumi
Perante os mortos
De caminhar com minha gente passo a passo
E firme, em direção ao sol. Sou uma agulha que ferve no meio do palheiro
Carrego o peso da família espoliada Desacreditada, humilhada
Sem forma, sem brilho, sem fama
(Potiguara, 2018, p. 113).
Desse modo, fica evidente nos versos do poema o desejo de resgate da identidade coletiva desse povo, da cultura nativa. A escritora se coloca como representante da gente humilhada e desacreditada devido a ganância dos grupos que controlavam o capital em seu estado. Assim, por meio do eu-lírico, ela se compromete a lutar pelo resgate da identidade plural não apenas de sua família, mas de todo um povo que foi excluído, pois «ao longo da história da colonização, os povos indígenas vivenciaram a impossibilidade de escrever e expor o seu jeito de ser e de viver em sua própria língua» (Graúna, 2012, p. 268). Assim, a luta pela preservação dessa identidade indígena vem desde os primórdios do processo colonizador.
Ademais, ainda que os colonizadores tenham impedido os povos originários de vivenciarem sua língua e suas crenças, é possível perceber que suas tradições não morreram, pois «muito antes da colonização, a vocação enunciativa dos povos indígenas, isto é, a palavra indígena ecoa como sinal de sobrevivência e continuará ecoando contra os conflitos gerados pela cultura dominante» (Graúna, 2012, p. 269). Portanto, a preservação e o resgate dessa identidade é algo de extrema importância para a literatura indígena, como uma possibilidade de existência.
De acordo com Gonzales Muñoz (2022), a oralidade teve uma contribuição fundamental para a existência da literatura indígena, uma vez que permitiu a conservação dos relatos e testemunhos orais daqueles povos que tiveram sua voz silenciada:
Las representaciones orales devienen desde antes de la conquista de los pueblos prehispánicos. En este contexto se reproducen una serie de testimonios con el propósito de describir diversas situaciones que ocurren en la época. Las manifestaciones, crónicas y testimonios se convierten en importantes documentos, ya que «reescriben» una parte de la historia, principalmente desde el punto de vista de los que «no tienen voz» (Gonzales Muñoz, 2022, p. 3).
A manutenção desses relatos que emergiram da tradição oral foi a forma que os povos nativos encontraram para se manter na história. São eles os grandes contadores das tradições, e por meio desses ensinamentos ancestrais sua identidade vai se mantendo viva na memória das anciãs que foram transmitindo esses saberes aos mais jovens.
Conforme um dos maiores líderes indígenas brasileiros, o também escritor Ailton Krenak, a importância desses relatos trazidos por uma mulher indígena evidencia que Eliane Potiguara foi essa
voz mulher extemporânea, marcando a diferente visão de gênero, que nós seus irmãos de luta, todos formados no mundo masculino, tínhamos dificuldade de entender. [...] convocando para outras poéticas da Terra Mãe, uma longa jornada até publicar Metade Cara, Metade Máscara, seu livro totem que veio para firmar a escrita feminina contemporânea indígena (Krenak, 2018; Potiguara, 2018, pp. 11-12).
O espaço aberto por ela, permanece dando visibilidade a outras escritoras indígenas, e sua contribuição é necessária pois até então só se tinha a perspectiva masculina, como bem relata Krenak.
Nesse cenário é notório, conforme os estudos da Crítica Feminista, que em todas as áreas as mulheres foram silenciadas, e especificamente no contexto da literatura, nosso campo de interesse, desde a época colonial as mulheres indígenas já estavam submetidas a esse silenciamento, processo que
significou o começo de uma relação plena de conflitos, acordos e discrepâncias, em que a exclusão e a marginalidade das mulheres indígenas esteve na base da construção das colônias espanholas; não obstante, os vencidos conservaram até a morte suas crenças em um intenso processo de resistência que repercutiu profundamente em nossa história e em nossa cultura (Guardia, 2013, p. 16).
No entanto, apesar de as mulheres indígenas serem as primeiras vítimas dos colonizadores europeus, especificamente os espanhóis que colonizaram a maior parte da América, elas foram também as que mais resistiram. Por meio das tradições que preservaram em suas memórias, as suas influências permanecem até as gerações atuais sendo fundamentais para a preservações dos saberes indígenas.
Diante disso, entendemos que Eliane Potiguara se configura como essa voz coletiva das primeiras mulheres indígenas, aquela que grita, que subverte a ordem patriarcal, que é duplamente excluída por ser mulher e por ser indígena, ocupando as margens da história, sendo sempre empurrada para fora. É desse lugar marginal que os versos de Eliane Potiguara ecoam «diluindo as fronteiras de mundos urbanos e rural, transcendendo o lugar comum, que se interroga sobre o lugar do ÍNDIO, nas sociedades capturadas pelo colonialismo ocidental, grita, grita aos quatro cantos “Eu sou da América do Sul”...» (Krenak, 2018; Potiguara, 2018, p. 12). Além disso, esse «colonialismo ocidental» que menciona o líder indígena, pode ser entendido como uma face do processo de «colonialidade», entendido por Walter Mignolo (2017) como
uma «matriz ou padrão colonial de poder», o qual ou a qual é um complexo de relações que se esconde detrás da retórica da modernidade (o relato da salvação, progresso e felicidade) que justifica a violência da colonialidade. E descolonialidade é a resposta necessária tanto às falácias e ficções das promessas de progresso e desenvolvimento que a modernidade contempla, como à violência da colonialidade (Mignolo, 2017, p. 13).
Conforme Mignolo, a colonialidade conceitua esse processo de apagamento e violência contra os povos colonizados, e segundo o autor, é necessário fazer o caminho inverso, a resposta a ser dada deve ser a «descolonialidade» para desmascarar a falsa imagem de progresso e modernidade. Nesse propósito estão comprometidos escritores e escritoras indígenas ligados ao movimento de resistência, a descolonialidade por meio de suas escritas e ativismos para impedir que esse processo continue avançado e se perpetuando de outras formas, disfarçadas, mas que não deixam de ser nocivos como foi no passado.
Nesse movimento, Eliane Potiguara segue lutando pelo direito de existir do seu povo, direito esse que foi usurpado de sua família no início do século XX, conforme ela relata em seu livro Metade cara, metade máscara (2018) a respeito do assassinato de um indígena de sua família: «conta-se que o índio X [...] por combater a invasão às terras tradicionais no Nordeste, foi assassinado cruelmente, [...]. Amarraram-lhe pedras aos pés, enfiaram um saco em sua cabeça e o arremessaram ao fundo das águas do litoral paraibano» (Potiguara, 2018, p. 24). A autora utiliza sua voz poética para expor o horror que passou sua família e o povo potiguara. Desde os primórdios da colonização esses povos são ameaçados e perseguidos, os verdadeiros donos das terras foram expulsos e ao resistir eram mortos de forma brutal. Uma realidade violenta a qual vem sendo submetidos os povos nativos que a mais de cinco séculos resistem para preservar a vida.
Em seu livro Metade cara, metade máscara, Eliane Potiguara traz vários textos em forma de poemas, narrativas, crônicas e relatos. Podemos perceber a diversidade e a capacidade criativa da escritora, que sempre exalta a sabedoria das mulheres indígenas, conforme temos na narrativa intitulada: «Mulher indígena: mãe, mulher e professora»:
Essa mulher não está condicionada psicológica e historicamente a transmitir o espírito de competição e dominação segundo os moldes da sociedade contemporânea. O poder dela é outro. Seu poder é o conhecimento passado através dos séculos e que está reprimido pela história. A mulher, intuitivamente, protege os seios e o ventre contra seu dominador e busca forças nos antepassados e nos espíritos da natureza para a sobrevivência da família. Todos esses aspectos foram mais preservados do que no homem (Potiguara, 2018, p. 46).
Ao demonstrar que a mulher indígena é portadora dessa sabedoria ancestral, a escritora evoca sua crença na ancestralidade por meio dos «espíritos da natureza», como modo de preservação da mulher/mãe natureza, que é fonte do saber e da vida, e que a diferencia do homem. Proteger os seios e o ventre é um modo de proteger a vida. Na sua concepção (ventre) e manutenção (alimentação - seios), o corpo dessa mulher se configura como templo sagrado da vida.
Nesse sentido, o processo colonizador foi extremamente violento com as mulheres, seus corpos, violentados, e como «vítimas primeiras da misoginia europeia, [...] as indígenas [...], perdem o direito sobre os filhos, sobre os seus corpos, sendo obrigadas a gastá-los em trabalhos forçados. Humilhadas e ofendidas, [...] foram expostas publicamente a surras e chicotadas» (Mendonça, 2012, p. 89). A situação das mulheres indígenas mostra que elas estavam expostas a todo tipo de violência, desde castigos físicos até a sua existência como ser humano, visto que muitas delas não resistiam às torturas físicas e psicológicas a que eram submetidas.
No poema «Mulher», Eliane Potiguara fala dessa violência ao mesmo tempo em que conclama as mulheres a gritarem e resistirem. Nas duas primeiras estrofes do poema autora incentiva também as mulheres a «beberem» da fonte da sabedoria ancestral para que possam contar a sua história:
Vem, irmã
bebe dessa fonte que te espera
minhas palavras doces ternas.
Grita ao mundo
a tua história
vá em frente e não desespera.
Vem, irmã
bebe da fonte verdadeira
que faço erguer tua cabeça
pois tua dor não é a primeira
e um novo dia sempre começa.
(Potiguara, 2018, p. 83).
A escritora, por meio de seu eu-lírico, se projeta como inspiração e força para que outras mulheres possam «erguer a cabeça» sabendo que sua dor é coletiva, e que mais de «quatro séculos de sofrimento, miséria e abandono constituem doloroso depoimento sobre a condição do índio americano» (Queiroz, 1962, pp. 21-22). Porém, apesar desse cenário desolador, ao final da segunda estrofe surge a esperança de «um novo dia».
Na sequência do poema a autora apresenta elementos da natureza, com aqueles que darão forças as mulheres indígenas e as farão florescer novamente, a relação intima com a natureza, algo sempre presente nas culturas indígenas e que pode ser visto nos versos seguintes:
Vem, irmã
lava tua dor à beira-rio
chama pelos passarinhos
e canta como eles, mesmo sozinha
e vê teu corpo forte florescer.
Vem, irmã
despe toda a roupa suja
fica nua pelas matas
vomita o teu silêncio
e corre - criança - feito garça.
(Potiguara, 2018, p. 83).
A voz poética convida a mulher/irmã a restabelecer sua ligação com as matas; anteriormente os versos mencionam os pássaros e a água, agora o elemento invocado é a floresta, local para romper o silencio, em que «como um armamento, as crenças, as forças vitais arrancam essa mulher da posição silenciada, de invisibilidade, de debilidade» (Schneider, 2018; Potiguara, 2018, p. 15). A escritora deseja que as mulheres usem as forças ancestrais e sua relação com esses elementos para se libertarem e continuarem acreditando na sua força. A última estrofe do poema ressalta a liberdade e o espírito guerreiro das mulheres indígenas:
Vem, irmã
liberta tua alma aflita
liberta teu coração amante
procura a ti mesma e grita:
sou uma mulher guerreira!
sou uma mulher consciente!
(Potiguara, 2018, p. 83).
A partir dos versos acima, o poema busca esse movimento de conscientização da força da mulher guerreira que teve de enfrentar sozinha a violência, sendo muitas vezes as únicas sobreviventes, como ocorrera com a família da escritora, na qual somente as mulheres sobreviveram ao massacre da invasão das terras. Sendo os homens guerreiros eram sempre os primeiros a serem mortos por serem a primeira linha de defesa, as mulheres tinham que tomar a frente das famílias, o cuidado com os filhos e da luta pela sobrevivência, conforme Dorrico (2018)
Eliane empreende uma luta em favor das mulheres indígenas do Brasil. Marias, mulheres, indígenas que experienciaram as mazelas da sociedade paraibana e carioca, mas que, no entanto, souberam manter vivas as tradições ancestrais, a cosmologia e a herança espiritual. Assim, a identidade literária de Eliane denota e conota ancestralidade e resistência política (Dorrico, 2018; Potiguara, 2018, p. 18).
Portanto, o projeto literário de Eliane Potiguara pode ser compreendido como pessoal pois vem de sua bisavó, que viveu esse processo de migração entre a Paraíba e o Rio de Janeiro. É também um projeto coletivo à medida que a autora se propõe a resgatar as tradições e ancestralidade de sua família e de seu povo. Por meio da literatura ela «enfatiza a mulher indígena na beleza, na força, na sabedoria e na resistência aos projetos coloniais e neocoloniais, dando forma a uma linguagem em prosa ou poesia, em diálogo intercultural, cuja matriz está em sua memória e na de seu povo» (Dorrico, 2018; Potiguara, 2018, p. 18). A escritora potiguara se converte nessa multiplicidade de vozes, evocando as mulheres de outras gerações que resistiram e foram exemplos e fontes dos saberes que ela eterniza nos seus escritos.
Conclusões
Concluímos que ao analisar a trajetória de Eliane Potiguara na literatura e na vida podemos constatar que sua importância é fundamental para a compreensão das lutas contra a colonização na vida dos povos indígenas brasileiros. O apagamento da cultura, das tradições e da ancestralidade desses povos não foi completo graças a essas mulheres que resistem bravamente, denunciando a perseguição que sofreram desde que os europeus chegaram nessas terras. Dentre essas mulheres, Eliane Potiguara permanece como a primeira voz de resistência feminina que ecoou para além dos seus parentes indígenas.
Sua voz é a que grita, que deseja reconstruir o espaço que sempre pertenceu aos povos indígenas, mas que foi brutalmente arrancado deles. «Vale considerar aqui que uma das formas de resistir à cultura dos colonizadores foi tratar das perdas resultantes da tentativa de descaracterização cultural, apontando claramente a violência por meio da qual os nativos foram não apenas tratados, mas também retratados» (Schneider, 2018; Potiguara, 2018, p. 15). Assim, a escritora segue cumprindo a promessa que fez ao seu povo de não deixar morrer a indígena dentro dela, falando a partir de uma voz coletiva daqueles que viveram esse processo, dando voz aos vencidos.
A escritora se incumbiu à missão junto com outras mulheres de reconstruir e acessar por meio da literatura esses espaços e raízes. Finalizamos ressaltando que é pela força de mulheres como Eliane Potiguara que hoje podemos ter acesso a relatos que constituem o que conhecemos como literatura indígena. Mesmo sendo vítima de todo tipo de violência, a escritora permaneceu resistindo e abrindo caminho para todas as mulheres que vieram depois, como fizeram anteriormente sua bisavó, sua avó e sua mãe, «Marias, mulheres guerreiras». Portanto, por sua trajetória como escritora e ativista, ela tem merecidamente esse protagonismo como primeira escritora indígena do Brasil, mesmo que isso não se trate de um feito individual, mas sim de uma coletividade de vozes, como uma portavoz do povo indígena.