Segundo a Organização Mundial de Saúde ([OMS], 2018), o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno neurobiológico do desenvolvimento definido pela combinação de déficits persistentes na comunicação social e padrões inflexíveis de comportamento e interesse. Pessoas com TEA podem apresentar sintomas com severidades diferentes, com ou sem deficiência intelectual e/ou prejuízo da linguagem funcional. Os déficits tendem a persistir ao longo da vida e a gravidade do transtorno impacta o funcionamento global do indivíduo em múltiplos contextos, como familiar, social, educacional, ocupacional, entre outros (OMS, 2018; Associação Americana de Psiquiatria, APA, 2014).
A prevalência do TEA ainda não é documentada em diversos países, principalmente naqueles em desenvolvimento. A melhor estimativa do TEA, de estudos mais recentes, é de 0,69%, o que representa a incidência do transtorno de uma em cada 145 crianças (Myers et al., 2019). A razão estimada do TEA entre homem/mulher é de 3:1 (Happé, 2019). No Brasil, apenas em 2019 o TEA foi incluído no censo demográfico (Lei 13.861, 2019). Dados epidemiológicos, no entanto, são fundamentais para guiar as políticas públicas de assistência e saúde, devendo ser priorizados em pesquisas sobre o tema (Paula et al., 2011).
Uma revisão sistemática com meta-análise de Lai et al. (2019) demonstrou ser prevalente a co-ocorrência de transtornos psiquiátricos em indivíduos com TEA, evidenciando maiores índices de transtornos de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), de ansiedade, de sono, depressivos, obsessivo-compulsivos, entre outros. Essas conjugações pioram os prognósticos e a qualidade de vida desses indivíduos, pois aumentam sua vulnerabilidade, inclusive a mortalidade (Lai et al., 2019). Indivíduos com TEA e deficiência intelectual, comparados a uma população-padrão, possuem, em média, o risco de mortalidade quase triplicado, sendo este maior para o sexo feminino (Woolfenden et al., 2012).
As dificuldades em habilidades sociais estão fundamentalmente no eixo do diagnóstico do TEA e constituem um déficit, seja de aquisição ou desempenho, na habilidade necessária e apropriada para a interação social, de acordo com o contexto e valores socioculturais (Little et al., 2017). Segundo Del Prette e Del Prette (2017), as habilidades sociais são comportamentos verbais e não-verbais aprendidos ao longo da vida que favorecem a manutenção e a boa qualidade das relações interpessoais. Na infância, as habilidades sociais promovem a qualidade de vida e do bem-estar, favorecendo as relações interpessoais. As habilidades sociais incluem habilidades de expressão de afeto, responsabilidade, desenvoltura social, autocontrole, civilidade, entre outras, sendo recursos pessoais que instrumentalizam a criança a lidar com adversidades e estresse, prevenindo problemas na infância e na adolescência (Del Prette & Del Prette, 2017).
No TEA, os déficits em habilidades sociais ocorrem especificamente em três áreas: na reciprocidade socioemocional, na comunicação não-verbal e no desenvolvimento e manutenção de relações (Little et al., 2017). Os prejuízos derivados desses déficits acometem precocemente esses indivíduos, prejudicando sua adaptação e aceitabilidade social. Intervenções precoces para melhora da comunicação e habilidades sociais podem ser extremamente benéficas para essa população, e em geral, envolvem os pais, os terapeutas e os educadores (Paul & Simmons, 2019).
As habilidades sociais educativas são um repertório de comportamentos indispensável para agentes educativos, ou seja, para aqueles que se dispõem a contribuir na aprendizagem e no desenvolvimento do outro, sobretudo no contexto da inclusão de crianças com necessidades educativas especiais (Del Prette & Del Prette, 2008). Criar condições educativas, transmitir conhecimentos acerca de habilidades sociais, monitorar e estabelecer a disciplina de modo positivo são habilidades capazes de promover o desenvolvimento socioemocional das crianças e favorecer tanto a aceitação e o convívio social quanto o desempenho acadêmico (Del Prette & Del Prette, 2008).
Conforme Freitas e Del Prette (2014), o autismo constitui-se, dentre as diversas categorias de necessidades educacionais especiais, condição fortemente preditora de déficits em habilidades sociais. Promover o ensino de habilidades para a iniciativa e manutenção de relacionamentos interpessoais é uma ação necessária para prevenção de agravos dos déficits existentes devido ao isolamento social (Frankel et al., 2010). O desenvolvimento de programas de treinamento em HSE efetivos para agentes educativos torna-se, assim, extremamente relevante (Del Prette & Del Prette, 2008), principalmente para pais de crianças com TEA. Por outro lado, para tanto, é fundamental caracterizar as HSE de pais ou cuidadores principais de crianças com TEA e estabelecer a relação entre as habilidades parentais e as habilidades sociais de seus filhos.
Uma revisão sistemática da produção brasileira em HSE, realizada por Vieira-Santos et al. (2018), indicou a ausência de estudos articulando as HSE de pais e o TEA especificamente. Três dos artigos presentes nessa revisão estudaram amostras de crianças com Atraso no Desenvolvimento Global (Fantinato & Cia, 2014), com Deficiência Auditiva e Distúrbio de Linguagem (Bolsoni-Silva et al., 2010) e com TDAH (Rocha et al., 2013). Apesar de não abordarem o TEA, os resultados destes últimos são relevantes por tratarem de categorias de necessidades educacionais especiais. Estes estudos reforçam a hipótese de correlação positiva entre as HSE dos pais e as habilidades sociais dos filhos, já atestado em diversos outros estudos com populações típicas (Bolsoni-Silva & Borelli, 2012; Bolsoni-Silva & Marturano, 2002; Bolsoni-Silva et al., 2008a; Bolsoni-Silva et al., 2008b).
Outra revisão da literatura, abrangendo também estudos internacionais, foi realizada especificamente sobre HSE de pais de crianças com TEA (Agostini & Freitas, 2020). Essa revisão apontou que apesar de não serem encontrados estudos que investigaram as HSE de pais de crianças com TEA, utilizando-se especificamente da terminologia adotada por Del Prette e Del Prette (2008), nove estudos em língua inglesa investigaram comportamentos parentais que apresentam correspondência com as classes e subclasses do Sistema de Habilidades Sociais Educativas de Del Prette e Del Prette (2008). Dentre as classes mais estudadas estiveram as habilidades dos pais para ensinar conteúdos de habilidades sociais e monitorar positivamente seus filhos. Analisando-se também revisões sistemáticas de literatura de programas de educação e/ou treinamento de pais de indivíduos com TEA, observou-se que a maioria aborda comportamentos parentais que Del Prette e Del Prette (2008) categorizam como HSE, como estratégias educativas para ensinar e manter habilidades de comunicação, socialização e brincar (Dawson-Squibb et al., 2019; Preece & Trajkovski, 2017).
Estudos de caracterização de comportamentos parentais de pais de crianças com TEA são escassos apesar da grande relevância destes para a compreensão das influências de características específicas dos pais sobre os resultados dos programas de educação e treinamento nos quais esses sejam o público-alvo (Shalev et. al., 2019). Ainda de acordo com autores, intervenções com crianças com TEA cujos pais são mediadores têm se destacado como práticas com evidências acumuladas de efetividade. Os poucos estudos que têm focado aspectos específicos da parentalidade, que se referem, em especial, à dimensão do suporte/apoio parental, como sincronia parental, responsividade e sensibilidade, avaliam os efeitos do comportamento dos pais sobre o repertório da criança. Em conjunto, eles têm demonstrado que a sensibilidade materna está associada, por exemplo, ao desenvolvimento da linguagem e desfechos comportamentais positivos nas crianças. Também a sincronia parental, que consiste na sensibilidade da mãe ao interpretar e responder adequadamente aos sinais de comunicação das crianças, seja de modo verbal ou não verbal, foi diretamente relacionada às habilidades comunicacionais das crianças ao longo do tempo. Os resultados desses estudos, em geral, sugerem que déficits em habilidades sociais nos pais poderiam afetar a flexibilização e sensibilidade para adaptar suas estratégias parentais às necessidades das crianças (Boonen et al., 2015).
Portanto, apesar das evidências empíricas consistentes dos efeitos positivos de treinamentos de pais de crianças com TEA sobre o desenvolvimento de seus filhos, atestou-se uma escassez de estudos nacionais e internacionais que enfoquem aspectos comportamentais da parentalidade desses pais, como as HSE. Ademais, no contexto brasileiro, constatou-se uma carência de estudos que tenham avaliado as habilidades sociais de crianças com TEA e correlacionado com as HSE dos seus pais.
Objetivos
Essa pesquisa, portanto, visa contribuir para o avanço dos estudos nesta temática, apresentando, como objetivo geral, caracterizar o repertório de HSE de pais ou principais cuidadores de crianças com TEA e a investigação de fatores sociodemográficos e clínicos associados. Além disso, como objetivos específicos, buscou-se: (1) caracterizar o repertório de habilidades sociais das crianças; (2) relacionar o repertório de HSE dos pais com o repertório de habilidades sociais das crianças, (3) relacionar variáveis sociodemográficas dos pais/cuidadores e características clínicas das crianças às suas próprias habilidades sociais e às HSE de seus pais; e (4) verificar o grau de predição de variáveis que se mostrarem significativas nessas análises sobre as habilidades sociais das crianças.
Método
Participantes
Participaram desta pesquisa 62 pais ou cuidadores principais de crianças com TEA de uma microrregião da Zona da Mata/MG atendidas pelos Serviços Especializados de Reabilitação em Deficiência Intelectual e/ou Autismo (SERDI). Os pais tinham idades entre 25 e 76 anos (M= 37.55, DP= 9.35). Destes, a maioria (90.3%) era do sexo feminino, de nível de escolaridade entre médio e fundamental (77.5%), nível socioeconômico C (75.8%) e sem trabalho remunerado (64.5%). O estado civil prevalente foi casado (43.5%), seguido de união estável (19.4%) e solteiro (19.4%). Dentre os pais e cuidadores, 41.9% possuíam apenas um filho, 35.5% dois filhos e 22.6% três ou mais filhos. A maioria dos participantes (66.1%) relatou não ter mais nenhum parente com autismo, além do filho.
A maioria das crianças com TEA era do sexo masculino (88.7%), entre 3 a 12 anos (M=6.16, DP=2.80), sem comorbidades declaradas pelos entrevistados (61.3%). Sobre o tempo de tratamento aproximado no SERDI, 15% estavam a menos de um ano no serviço, 33.3% possuíam entre 1 e 2 anos de tratamento, 31.7% entre 3 e 4 anos de tratamento e 20% a mais de 5 anos. A maior parte das crianças (77.1%) fazia entre 3 e 4 tipos de tratamento no serviço dentre atendimentos de fonoaudiologia, fisioterapia, psicologia, terapia ocupacional, serviço médico, entre outros. Esses dados encontram-se descritos na Tabela 1.
Os critérios de inclusão para os pais ou cuidadores foram: terem idade a partir de 18 anos, serem de ambos os sexos e serem os principais cuidadores da criança, indicados pelos serviços ou autorrelatados. Os critérios de inclusão para as crianças foram: serem atendidas no SERDI e terem diagnóstico de TEA segundo a equipe multidisciplinar do serviço e por um médico. Os prontuários das crianças foram acessados no intuito de verificar se o diagnóstico das crianças estava de acordo com o DSM-5 (APA, 2014). No entanto, essa informação nem sempre se encontrava descrita nos prontuários. Ademais, os métodos de diagnóstico variavam nos serviços, sendo que alguns utilizavam de checklists, entrevistas com cuidadores, observações clínicas por profissionais de modo individual e/ou coletivo). Optou-se, assim, por incluir um questionário de condições clínicas das crianças na entrevista com os pais ou cuidadores, com perguntas para esclarecimentos sobre o diagnóstico médico das crianças, incluindo na pesquisa apenas crianças com diagnóstico formal de TEA, dado por médico e equipe multidisciplinar.
O critério de exclusão para os pais foi a realização prévia de algum tipo de treinamento em habilidades sociais autorrelatado e a dificuldade de compreender os itens dos instrumentos utilizados, verificada a partir da Técnica de Sondagem (Guillemin et al., 1993).
Locais do estudo
Os SERDI têm como finalidade exclusiva o atendimento em saúde das pessoas com Deficiência Intelectual e/ou Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). Todos os quatro SERDI tipo I de uma microrregião da Zona da Mata/MG foram incluídos na pesquisa, bem como o SERDI de tipo II, o qual serve de referência para essa microrregião. Estes serviços funcionam nas respectivas Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAEs) de suas cidades, através de convênio firmado entre as instituições e o Sistema Único de Saúde (SUS) do estado de Minas Gerais. (Deliberação n. 1.403, 2013)
Delineamento
Trata-se de uma pesquisa de levantamento com corte transversal para caracterização das HSE de pais e/ou cuidadores principais de crianças com TEA e das habilidades sociais de seus filhos. Utilizou-se da Comparação com Grupo Estático, para comparar subgrupos de pais definidos pelas variáveis sociodemográficas e/ou clínicas dos filhos. Trata-se também de uma pesquisa correlacional, pois estabeleceu o grau de covariação entre duas variáveis a serem estudadas: as HSE dos pais de crianças com TEA e as habilidades sociais de seus filhos e também o grau de predição das HSE dos pais em relação às habilidades sociais dos seus filhos. A classificação dos delineamentos da pesquisa foi baseada em Selltiz et al. (1987).
Medição
Inventário de Habilidades Sociais Educativas (IHSE -Del Prette & Del Prette, 2013)
Este inventário foi elaborado e validado por Del Prette e Del Prette (2013). Seu objetivo é avaliar as habilidades sociais educativas de pais e mães de crianças entre 2 e 17 anos. É um questionário de autorrelato contendo 60 itens que descrevem comportamentos sociais dos pais apresentados na relação com seus filhos. As alternativas de resposta são apresentadas em uma escala Likert que varia de nunca ou quase nunca (0) a sempre ou quase sempre (4). Os itens da escala foram elaborados a partir do Sistema de Categorias de Habilidades Sociais Educativas, proposto por Del Prette & Del Prette (2008).
A escala possui cinco fatores: F1 = Estabelecer limites, corrigir, controlar; F2 = Demonstrar afeto e atenção; F3 = Conversar/dialogar; F4 = Induzir disciplina, e; F5 = Organizar condições educativas. Foi feita uma análise de consistência interna pelo coeficiente alfa de Cronbach, tendo sido obtido um valor de alfa= .957 para o escore global e os seguintes valores para as subescalas: F1 = .936, F2 = .883, F3 = .851, F4 = .791 e F5 = .748. As correlações entre os itens e o escore total também foram positivas e significativas para todos os itens, variando de .372 a .692 (Del Prette & Del Prette, 2013). Este instrumento foi cedido pelos autores para sua utilização nesta pesquisa, não tendo sido ainda publicado.
Inventário de Habilidades Sociais, Problemas de Comportamento e Competência Acadêmica de Crianças - (Social Skills Rating System) - SSRS (Gresham & Elliot, 1990), adaptação e padronização brasileira (Del Prette et al., 2016)
Este inventário foi criado por Gresham e Elliot para avaliar crianças e adolescentes entre três e 18 anos (1990) e adaptado e padronizado para a população brasileira por (Del Prette et al., 2016) para avaliação de crianças entre seis e 13 anos. Seu objetivo é avaliar o repertório de habilidades sociais, problemas de comportamento e competência acadêmica de crianças, utilizando-se de três informantes: crianças, pais e professores. No que se refere às Habilidades Sociais, as opções de respostas são apresentadas por uma escala do tipo Likert, que inclui: 0 = nunca, 1 = algumas vezes ou 2 = muito frequente. O SSRS possui amplas evidências de validade e fidedignidade, descritas em seu manual (Del Prette et al., 2016).
A escala utilizada nessa pesquisa foi a de Habilidades Sociais para pais. Ela possui 25 itens distribuídos em cinco fatores: F1 = Responsabilidade, F2 = Autocontrole, F3 = Afetividade/Cooperação, F4 = Desenvoltura Social e F5 = Civilidade. A escala para pais obteve um valor de alfa de .86, para o escore global e os seguintes valores para as subescalas: F1 = .69, F2 = .73. F3 = .62, F4 = .65 e F5 = .63 (Del Prette et al., 2016).
Para verificar algumas propriedades psicométricas do SSRS na amostra do presente estudo, que continha crianças a partir dos três anos, foram verificadas a fidedignidade do instrumento, bem como as evidências de consistência interna por meio da correlação entre o escore global e as subescalas. O teste de fidedignidade, por meio do alfa de Cronbach resultou em índices adequados de consistência interna (acima ou próximos de .70) para o escore geral e as subescalas (Urbina, 2007): escore geral (α=.898, N=23) e F1 (α=.727, N=4), F2 (α=.742, N=5), F3 (α=.678, N=6), F4 (α=.803, N=4) e F5 (α=.774, N=4). No que se refere à consistência interna, as correlações de Spearman entre o escore global e as subescalas, obtiveram correlações positivas fortes e significativos (p < .01), variando entre .670 e .869. As correlações entre as subescalas variaram entre .321 e .717, sendo na grande maioria, também significativas (p < .01). Apenas uma correlação entre subescalas (F2 e F4) não se mostrou significativa (r = .218, p = .089)
Questionário Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB) 2012
Este questionário serve para avaliar o nível socioeconômico da amostra. Trata-se de um questionário elaborado por ABEP - Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa, para avaliar as classes socioeconômicas da população, com base na posse de bens das famílias. Para cada bem possuído há uma pontuação e cada classe é definida pela soma dessas pontuações. As classes são definidas pelo CCEB, a partir da renda familiar, como: A, B, C, D e E. O entrevistado responde a questões sobre posse de bens, renda familiar e sobre o grau de instrução/ escolaridade do chefe da família.
Questionário sociodemográfico
Este questionário encontra-se presente no cabeçalho do IHSE (Del Prette & Del Prette, 2013). Consiste em perguntas sobre a idade, o sexo e a escolaridade da criança avaliada, bem como dos seus pais, neste caso incluindo também a naturalidade.
Questionário de variáveis clínicas e condições de vida dos pais
Este questionário foi criado no âmbito da presente pesquisa para identificar as variáveis clínicas das crianças, como data do diagnóstico de TEA, presença de comorbidades, condições de vida dos pais, condições de moradia, quantidade de filhos, entre outras.
Procedimento de coleta de dados
O presente estudo foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa da instituição (CAAE 07065518.5.0000.5151/Parecer 3.180.936) e pelas coordenações dos serviços de saúde onde foi realizado, seguindo rigorosamente suas diretrizes. O recrutamento e agendamento das entrevistas foi realizado por telefone e/ou pessoalmente nos SERDI. Os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A aplicação dos instrumentos foi realizada pela própria pesquisadora, com até três cuidadores por vez, nos próprios serviços, conforme disponibilidade dos participantes. Para aqueles participantes que desejaram, as perguntas foram lidas pela pesquisadora, de modo a facilitar a compreensão dos mesmos dos itens dos instrumentos. Foi solicitado que os entrevistados sempre respondessem ao IHSE e ao SSRS com base na sua relação com o filho ou criança com TEA.
Análise de dados
Os dados foram analisados por meio do programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS), versão 23.0. No que se refere às análises estatísticas preliminares, foram realizadas análises de normalidade. O teste Kolmogorov-Smirnov (K-S) e, de forma complementar, a assimetria e a curtose foram utilizadas para averiguar a normalidade dos dados cujos resultados basearam as escolhas entre os testes paramétricos (teste de Pearson) e não-paramétricos (teste de Spearman).
Análises de Normalidade
Obteve-se a confirmação da distribuição normal dos dados para o escore global da escala IHSE (K-S = .10, p = .18) e os fatores F3 (K-S = .09, p = .20), F4 (K-S = .07, p = .20) e F5 (K-S = .09, p = .20) dessa escala. Além disso, o escore global da escala SSRS (K-S = .09, p = .20) e o fator F3 (K-S = .10, p = 0,08) também apresentaram distribuição normal. As assimetrias e curtoses estavam entre -2 e 2. Foram adotados, para análise destes dados, os testes paramétricos. Para os demais fatores da escala IHSE, da SSRS e correlações envolvendo esses fatores, forma utilizados testes não paramétricos. As assimetrias e curtoses estavam entre -2 e 2, porém o teste K-S não indicou normalidade na distribuição dos dados: IHSE - F1 (K-S = .12, p = .01) e F2 (K-S = .22, p = .00) e SSRS - F1 (K-S = .14, p = .00), F2 (K-S = .19, p = .00), F4 (K-S = .16, p = .00) e F5 (K-S = .13, p = .00).
Para caracterização do repertório de HSE dos pais/cuidadores e de habilidades sociais das crianças foram feitas análises descritivas, com cálculos de frequência e porcentagem, a partir dos escores obtidos nas escalas globais e subescalas dos instrumentos. Para tanto, admitiram-se os parâmetros percentílicos dos dados normativos do IHSE (Del Prette & Del Prette, 2013) e do SSRS (Del Prette et al., 2016). O repertório dos pais foi classificado como deficitário (percentil <25), médio (percentil >26<65) e elaborado (percentil >66). O repertório das crianças foi classificado como deficitário (percentil <25), inferior (percentil >26<35), bom (percentil >36 <65) e elaborado (percentil >66), em relação à amostra normativa do instrumento.
Análises estatísticas descritivas das características sociodemográficas dos cuidadores, sociodemográficas e clínicas dos filhos da amostra, foram feitos com cálculos de médias, porcentagens e desvios-padrão. Análises bivariadas foram realizadas relacionando os escores globais e fatoriais dos instrumentos IHSE e SSRS às variáveis sociodemográficas, características clínicas e de condições de vida dos pais/cuidadores. Para comparações entre grupos foram realizadas análises paramétricas a partir do teste t de Student para amostras independentes, e para a correlação entre variáveis foi utilizado o teste de correlação de Pearson. Em caso de análises não-paramétricas, foram utilizados os testes U de Mann-Whitney e correlação de Spearman. Em todas as análises inferenciais foi considerado um valor p de pelo menos .05.
Para a construção dos modelos de regressão, foram realizadas análises preliminares quanto ao tamanho da amostra, linearidade, homecedasticidade, independência dos resíduos, normalidade e identificação de valores atípicos. Os modelos de regressão foram construídos a partir do método stepwise. As suposições do modelo foram verificadas e interpretadas com base em Dancey e Reidy (2006). Para verificar o grau de predição habilidades sociais educativas dos pais sobre as habilidades sociais dos filhos, foram realizadas análises de regressão linear múltipla. As variáveis preditoras foram os escores global e fatoriais do IHSE e as variáveis critério foram os escores globais e fatoriais do SSRS e variáveis sociodemográficas e clínicas. Apenas os escores fatores que obtiveram uma correlação significativa ao nível de p < .05 foram incluídas nas análises de regressão.
Resultados
Caracterização do repertório de HSE dos pais
Na Tabela 2, são apresentadas as frequências absoluta e relativa do repertório de HSE dos cuidadores, classificado como deficitário, médio e elaborado. No escore global, a maioria dos participantes (56.5%) obtiveram percentil abaixo de 25, com repertório em HSE deficitário em relação à amostra normativa do instrumento. Em relação aos fatores, os cuidadores tiveram um melhor resultado na subescala F2 - Demonstrar afeto e atenção tendo 40.3% apresentado repertório classificado como médio e 35,5% elaborado. Na subescala F5 - Organizar condições educativas, também a maioria apresentou repertório médio (41.9%) ou elaborado (24.2%). Já na subescala F4 - Induzir disciplina, 43.5% do repertório foi deficitário, sendo os 33.9% médio e 22.6% elaborado. Quase metade dos cuidadores (48.4%) apresentou repertório deficitário em F1 - Estabelecer limites, corrigir controlar. O pior desempenho nas subescalas foi a F3 - Conversar/Dialogar, que reuniu 72.6% dos cuidadores com repertório deficitário, abaixo do percentil 25.
Caracterização do repertório de habilidades sociais das crianças
Tendo como base a comparação com a amostra normativa do instrumento SSRS-Pais, realizada com crianças de escolas regulares, com idades entre seis e 13 anos, a grande maioria das crianças do presente estudo (75.8%) foi classificada com desempenho inferior ao percentil 25, indicando um repertório abaixo da média inferior de habilidades sociais. Crianças com percentil entre 26 e 35 totalizaram 8,1% da amostra, com repertório médio inferior. As demais distribuíram-se entre os percentis 36 e 65 (11.3%), com bom repertório de habilidades sociais e acima de 66 (17.7%), repertório elaborado ou altamente elaborado. Em relação aos fatores, na subescala F1 - Responsabilidade, mais da metade das crianças foi classificada com repertório bom (30.6%) ou elaborado (24.2%). A maioria das crianças obteve seu repertório classificado como deficitário nas subescalas F2 - Autocontrole (61.3%), F3- Afetividade/Cooperação (66.1%) e F4 - Desenvoltura Social (69.4%). O pior desempenho delas foi na subescala F5 - Civilidade, com 74.2% de repertório classificado como deficitário. A Tabela 2 mostra os resultados dos escores globais das crianças.
Cabe salientar, no entanto, que o instrumento não se encontra normatizado para crianças com TEA, sendo que a interpretação desses resultados serve apenas para o reconhecimento das dificuldades específicas dessa população, evidenciando a peculiaridade do transtorno em relação às características de uma população geral. A construção futura de uma amostra normativa específica para crianças com TEA poderia contribuir para uma caracterização mais precisa do repertório de habilidades sociais de crianças com esse transtorno.
Relações entre o repertório de HSE dos pais/cuidadores o repertório de habilidades sociais das crianças
As análises correlacionais entre os escores globais e fatores do IHSE e do SSRS são apresentadas na Tabela 3. Uma correlação positiva moderada foi encontrada entre o escore global de HSE dos cuidadores (escala IHSE) e o escore global de habilidades sociais das crianças (escala SSRS), indicando que quanto maior foi o repertório geral relatado pelos pais/cuidadores em HSE, maior foi o repertório das habilidades sociais das crianças (r = .619, p < .01). Também foram encontradas correlações positivas moderadas entre o repertório geral de HSE dos cuidadores e o repertório de habilidades sociais das crianças nos fatores F1 - Responsabilidade (r = .432, p < .01), F3 - Afetividade/Cooperação (r = .598, p < .01), F4 - Desenvoltura Social (r = .632, p < .01) e F5 - Civilidade (r = .550, p < .01). Esses resultados indicam que quanto mais habilidosos os pais, mais responsáveis, afetuosas/cooperativas, desenvoltas socialmente e civilizadas eram as crianças.
Em relação aos fatores do IHSE, o fator 1 - Estabelecer limites, corrigir, controlar apresentou correlações positivas e moderadas com o escore geral e subescalas F3, F4 e F5 do SSRS (entre .474 e .569, p< .01), positiva e fraca com F1 (.361, p < .01) e não significativa com F2. O fator 2 - Demonstrar afeto e atenção do IHSE resultou em correlações positivas e fracas com o escore geral e subescalas F4 e F5 (entre .284 e .341, p <.01) e não significativas com F1, F2 e F3 do SSRS. O fator F3 do IHSE - Conversar/dialogar gerou correlações positivas e moderadas com o escore geral e subescalas F1, F3, F4 e F5 (entre .478 e .624, p < .01) do SSRS, com exceção do F2 que foi positiva e fraca (.285, p < .05). O fator 4 do IHSE - Induzir disciplina apresentou correlações positivas e moderadas com escore geral e subescalas F3, F4 e F5 (entre .404 e .445, p < .01) do SSRS, positiva e fraca com F1 (.301, p < .05) e não significativa com F2. E, por fim, fator 5 do IHSE - Organizar condições educativas obteve correlações positivas fracas com as subescalas F1 e F3 (entre .260 e .276, p < .05) do SSRS e não significativas com o escore geral e demais subescalas, F2, F4 e F5.
Relações entre o repertório de HSE dos pais/cuidadores e variáveis sociodemográficas
As análises bivariadas referentes às variáveis sociodemográficas dos pais/cuidadores em relação ao escore geral de HSE não apresentaram resultados estatisticamente significativos para nenhuma das seguintes variáveis: escolaridade dos pais (r = .194, p = .134), estado civil (r = .110, p = .400), idade dos pais (r = .051, p = .692), nível socioeconômico (r = .159, p = .216) e número de filhos (r = -.096, p = .460).
Relações entre o repertório de HS das crianças e variáveis sociodemográficas e clínicas
As análises bivariadas referentes às variáveis sociodemográficas dos cuidadores em relação ao escore geral de habilidades sociais das crianças não apresentaram resultados estatisticamente significativos para nenhuma das seguintes variáveis: escolaridade dos pais (r = .181, p= .162), idade dos pais (r = .121, p = .348), nível socioeconômico (r= -.012, p = .929) e número de filhos (r = -.301, p = .018) e estado civil (t = .194, p = .424).
Com relação às variáveis clínicas, foram encontradas correlações positivas significativas entre as habilidades sociais das crianças e a idade delas (r = .290, p = .022) e a idade em que o diagnóstico de TEA foi realizado (r = .323, p = .010). No entanto, não foram encontradas correlações significativas entre as habilidades sociais das crianças e as variáveis tempo de atendimento no serviço (r = .240, p = .854) e quantidade de tratamentos realizados (r = .175, p = .177).
Análises de predição do repertório de HSE dos pais/cuidadores sobre o repertório de HS das crianças
Foram realizados dois modelos de regressão, considerando-se como as duas variáveis critério que apresentaram distribuição normal: o escore geral do SSRS e os fator do SSRS. As variáveis preditoras para o escore global do SSRS foram o escore geral e os fatores 1, 2, 3 e 4 do IHSE e para o fator 3 do SSRS, o escore geral e fatores 1, 2, 3, 4 e 5 do IHSE. Os modelos finais de regressão considerando escore geral do SSRS como variável critério encontra-se descritos na Tabela 4.
Nota. A tabela demonstra o resultado final de dois modelos de regressão linear múltipla.
O modelo 1 refere-se à variável dependente: SSRS - Escore geral, Preditores: (Constante), F3 - Conversar/dialogar.
O modelo 2 refere-se à variável dependente: Fator 3 - Afetividade/Cooperação do SSRS - Escore geral, Preditores: (Constante), F3 - Conversar/dialogar e F1 - Estabelecer limites, corrigir, controlar.
O resultado da regressão apontou como única variável preditiva do escore geral de habilidades sociais das crianças (SSRS) o Fator 3 do IHSE, a habilidade de conversar e dialogar dos pais/cuidadores. O R² ajustado (.477) indicou que essa variável é responsável por 47,7% da variância nos escores gerais das crianças em habilidades sociais (F(1,60) = 56.74, p < .001). De acordo com os valores expostos na Tabela 5, o aumento de um desvio-padrão no Fator 3 - Conversar/Dialogar dos pais indica que o escore geral de habilidades sociais das crianças (SSRS) aumentará .697 desvios-padrão. Este resultado demonstrou que o repertório dos pais nas habilidades sociais educativas de conversar/dialogar com seus filhos é o principal preditor de um repertório de habilidades sociais mais elaborado da criança.
O modelo final de regressão o Fator 3 do SSRS como variável critério encontra-se descrito na Tabela 4. Esse modelo indicou duas variáveis preditivas do Fator 3 - Afetividade/Cooperação das crianças: o Fator 3 - Conversar/dialogar e o Fator 1 - Estabelecer limites, corrigir, controlar e o do IHSE. O R² ajustado (.382) indicou que essas variáveis são responsáveis por 38% da variância nos escores gerais das crianças em habilidades sociais (F (1,59) = 19,892; p < .001). De acordo com os valores expostos na Tabela 6, o aumento de um desvio-padrão no Fator 3 - Conversar/Dialogar dos pais indica que o escore no fator 3 - Afetividade/Cooperação das crianças (SSRS) aumentará .606 desvios-padrão. Este resultado demonstrou que o repertório dos pais nas habilidades sociais educativas de conversar/dialogar foi preditor de um maior repertório nas habilidades de afetividade/cooperação da criança. Ressalta-se, ainda, que embora o Fator 1 tenha sido incluído no modelo de regressão por melhorá-lo, o peso específico dessa segunda variável não foi estatisticamente significativo (p = .06).
Análises de predição do repertório de HSE dos pais/cuidadores e de variáveis sociodemográficas e clínicas sobre o repertório de HS das crianças
Outros dois modelos de regressão foram executados, incluindo além das variáveis dos modelos anteriores aquelas características sociodemográficas e clínicas com correlações significativas (p <.05) com as variáveis critério: idade da criança e idade no diagnóstico de TEA para o escore geral do SSRS e idade da criança para o fator 3 - Afetividade/Cooperação. Os resultados foram idênticos aos modelos apresentados na Tabela 4, demonstrando que as variáveis dos modelos anteriores foram as únicas significativas.
Discussão
O presente estudo demonstrou que, a partir do autorrelato dos pais/cuidadores de suas HSE em relação às crianças com TEA, pouco mais da metade da amostra apresentou um repertório abaixo da amostra normativa em termos de habilidades sociais educativas. Devem-se considerar diversos fatores que podem influenciar nesses resultados. Salienta-se, por exemplo, o grau de sobrecarga e estresse vivido pelos cuidadores de crianças com TEA conforme Bozkurt et al. (2019), ponderando-se os efeitos desses sobre o relato do desempenho desses pais em HSE, sobretudo relacionados à severidade dos sintomas autísticos (Bayka et al., 2018).
Quanto à caracterização das habilidades sociais educativas dos cuidadores, o melhor repertório foi de demonstrar afeto e atenção. Essa classe comportamental inclui, de acordo com Del Prette e Del Prette (2013), habilidades de expressar, valorizar e retribuir a atenção e carinho dos filhos, bem como ser capaz de perceber os sentimentos deles. Essas habilidades, segundo Bolsoni-Silva (2017), são fundamentais para garantir um ambiente de interação positivo entre pais e filhos e diminuem as chances do aparecimento ou manutenção de comportamentos inadequados (Bolsoni-Silva & Loureiro, 2019; Bolsoni-Silva, 2017). O estudo de Midourhas et al. (2013) mostrou, inclusive, que o envolvimento caloroso/afetivo materno está associado a menos problemas de comportamento, menos hiperatividade e um decréscimo anual nos problemas de conduta e com pares. Nesse sentido, portanto, pais de crianças com TEA que apresentam essas habilidades sociais pode atenuar os problemas comportamentais característicos do próprio transtorno dos filhos, bem como contribuir com a melhora na sociabilidade dos mesmos entre pares.
Pais de crianças com TEA, em sua maioria, tiveram um nível médio ou elaborado no repertório de organizar condições educativas. Essa classe refere-se a comportamentos que preparam um ambiente, seja ele físico ou social, para potencializar o aprendizado da criança (Del Prette & Del Prette, 2013). Os resultados estão em consonância com os encontrados por Maljaars et al. (2013), no qual apontou-se para um melhor desempenho de pais de crianças com TEA, quando comparados a pais de crianças sem TEA em comportamentos de adaptação ambiental. A adaptação do ambiente é uma estratégia comportamental tida como eficaz nas terapias comportamentais com autismo para facilitar desempenhos desejáveis do ponto de vista da aprendizagem (Howley, 2013). É possível que os pais sejam orientados por profissionais a utilizarem desse repertório para contribuir no desenvolvimento de seus filhos ou que desenvolvam essas habilidades a partir das consequências positivas que possam ter na interação com as crianças.
Com relação aos comportamentos dos pais na classe de induzir disciplina, que diz respeito a fomentar a reflexão nos filhos sobre regras de convívio social e da classe de estabelecer limites, corrigir controlar, que objetivam restringir comportamentos indesejáveis dos filhos, quase metade dos pais apresentou repertório inferior à amostra normativa. Esse resultado condiz com o encontrado por Maljaars et al. (2013), que caracterizou pais de crianças com TEA como menos rigorosos no controle comportamental de seus filhos, em se tratando de regras e disciplina, mesmo com essas crianças apresentando mais problemas de comportamento. Isso poderia ser explicado, segundo os autores, pela diferença na forma como os comportamentos inadequados são interpretados no TEA pelos pais, compreensivamente atribuídos a antecedentes comportamentais (como distratores no ambiente, excesso de estímulos, por exemplo), ao invés de julgados como indisciplina (Maljaars et al., 2013). Entretanto, avalia-se também que essas classes do IHSE descrevem comportamentos que exigem respostas comportamentais muito elaboradas para as crianças com TEA, principalmente para faixa etária deste estudo. Portanto, talvez os pais tenham relatado que não utilizam desses comportamentos porque eles exigiriam habilidades que seus filhos ainda não possuem, como pensar e refletir sobre questões de convivência e responder a perguntas dessa natureza.
O repertório dos cuidadores de conversar/dialogar, que envolve comportamentos de aproximação e conversação com os filhos (Del Prette & Del Prette, 2013), foi o que esteve mais deficitário. Esse resultado parece consistente com os prejuízos comunicacionais das crianças com TEA, os quais são características fundamentais do transtorno. É bastante provável que grande parte da amostra de crianças apresente ou um atraso no desenvolvimento da fala ou nem sejam verbais. Mesmo quando verbais, crianças com TEA ainda podem ter dificuldade de utilizar a linguagem de maneira efetiva em uma interação social (Paul & Simmons, 2019; Hutchison et al., 2019), o que pode refletir diretamente na interpretação da comunicação da criança pelo pai, afetando a frequência com que os pais conversam ou respondem às tentativas de comunicação dos filhos. Esses achados são consistentes com os de Beurkens (2012), no qual os pais de crianças com TEA tiveram um desempenho baixo ou muito baixo em comunicação aparentemente relacionado ao nível de desenvolvimento da criança ou de uso da linguagem. Azevedo (2018) também encontrou um pior desempenho nesse repertório, em pais e mães de crianças com TEA e também com outros tipos de deficiências. Na metanálise de Ku et al. (2019), o estilo de comunicação de pais de crianças com TEA teve um efeito moderador em relação à dimensão verbal de suporte e envolvimento afetivo, diferenciando pais de criança com TEA. Esse estilo tende a ser menos verbal, com a utilização de menos comentários e enunciados nessa dimensão. Os autores discutem que essa variação pode ser mesmo devido à adaptação dos pais ao nível de linguagem da criança ou pelo atendimento a orientações de profissionais para a simplificação e objetividade na abordagem de crianças com TEA, constituindo essa uma facilitação importante para a compreensão e aprendizado da linguagem por parte das crianças.
Com relação ao repertório geral bastante deficitário de habilidades sociais das crianças com TEA, esse achado está em conformidade com os estudos brasileiros de Carvalho (2012), Freitas (2011) e Silva (2018). Esses estudos também empregaram o SSRS na avaliação das habilidades sociais das crianças. Segundo Freitas (2011), o SSRS é um instrumento que avalia um repertório de habilidades sociais complexo para crianças com TEA. Além disso, a amostra deste estudo era majoritariamente de crianças abaixo de seis anos, o que pode ter contribuído para um relato pior dos pais sobre o desempenho das crianças em habilidades sociais. Porém outros fatores podem agravar os déficits em habilidades sociais nas crianças com TEA, como funcionamento cognitivo, rigidez comportamental, desenvolvimento da linguagem e comorbidades psiquiátricas (Macintosh & Dissanayake, 2006). Apesar de o instrumento não ser normatizado para população de crianças com TEA, a comparação dos resultados obtidos pelas crianças neste estudo com a amostra normativa de crianças com desenvolvimento típico salienta a importância e necessidade de agir preventivamente com intervenções para o ensino de habilidades sociais.
As análises de correlação demonstraram uma correlação positiva e moderada entre as HSE dos cuidadores e as habilidades das crianças com TEA. Apesar do diagnóstico de TEA estar baseado especificamente em déficits em habilidades sociais, a relação entre essas e as HSE dos cuidadores manteve-se conforme observado em outras populações já estudadas seja de crianças com desenvolvimento típico ou com deficiência (Santos & Wachelke, 2019). Evidenciou-se que um repertório mais elaborado de HSE dos cuidadores esteve relacionado também a melhores desempenhos em quase todos os aspectos do desenvolvimento social das crianças, exceto ao autocontrole. Considera-se que esse resultado é coerente com as evidências que vem sendo atestadas quanto aos benefícios de intervenções mediadas por pais de crianças com TEA bem como reforça a relevância de se estudar as características parentais que tenham influências sobre os resultados desses programas (Shalev et al., 2019).
Quanto à habilidade social de autocontrole das crianças, a qual não se mostrou associada às HSE gerais dos pais, suspeita-se que se deva considerar um efeito moderador dos déficits específicos do TEA nas funções executivas ou de linguagem sobre as HSE dos pais ou de ambas, uma vez que, segundo Hutchison et al. (2019), ainda não se sabe como e se essas habilidades se relacionam. Campbell et al. (2018) demonstraram que o desenvolvimento da linguagem parece ajustar sua capacidade de autorregulação da criança, permitindo-lhe controlar melhor seus impulsos. Além disso, considera-se que esse resultado ter sido influenciado pela idade média das crianças do estudo. Por outro lado, observou-se que a habilidade de autocontrole das crianças se correlacionou com a habilidade específica de conversar/dialogar dos pais. Denota-se que essa HSE parental pode contribuir com a autorregulação emocional da criança, através do estímulo à discriminação e expressão das emoções e sentimentos e reforçamento diferencial de respostas socialmente competentes (Del Prette & Del Prette, 2017).
No que se refere aos resultados relativos às variáveis sociodemográficas dos pais/cuidadores, essas não influenciaram diretamente nas suas próprias habilidades sociais ou nas habilidades sociais das crianças. Já em relação às características clínicas das crianças, a idade da criança e a idade com que esta recebeu o diagnóstico de TEA por um médico mostraram-se associadas às suas habilidades sociais. Esses achados são coerentes com as características desenvolvimentais, evidenciando que quanto menores as crianças, pior o desempenho delas no repertório de habilidades sociais. Além disso, de acordo com Sicherman et al. (2019), quanto maior a severidade do quadro de TEA mais precocemente os diagnósticos do TEA costumam ser conduzidos.
A idade média do diagnóstico do TEA das crianças deste estudo pode ser considerada baixa, em comparação ao estudo brasileiro de Ribeiro, Paula, Bordini et al. (2017), que encontrou uma média de cinco anos de idade para diagnósticos formais. A diferença da média diagnóstica poderia representar a efetividade do SERDI atendidos na implementação da Deliberação n. 1.403 (2013) que instituiu o acompanhamento de neonatos de risco desde o nascimento até a idade de dois anos, com equipe especializada e multidisciplinar no serviço público de saúde do estado, favorecendo a identificação e intervenção precoce desse tipo de transtorno. Além disso, deve-se considerar a importância de diagnósticos formais para a assistência social (Lei n. 8.742, 1993) das famílias com crianças com TEA, que passaram a ser reconhecidas perante a lei como pessoas com deficiência. (Lei 12.174, 2012).
As análises de regressão apontaram que a habilidade dos pais de conversar/dialogar foi fortemente preditora das habilidades sociais gerais e, mais especificamente, da afetividade/cooperação das mesmas. Ao se examinar os itens do IHSE referentes a esse fator, percebe-se que eles envolvem, além da conversação, um monitoramento tanto do desenvolvimento da criança quanto de seus relacionamentos interpessoais. Segundo Bolsoni-Silva e Marturano (2002), a conversação consiste em uma habilidade pré-requisito às demais habilidades sociais, as quais são complementares e interdependentes (Del Prette & Del Prette, 2017). De acordo com esses autores, pais ensinam através da conjugação de modelos, de consequências e instruções. Dessa forma, grande parte desse repertório pode ser transmitido por meio do conteúdo da conversa e da maneira de dialogar com seus filhos. Quanto mais o cuidador se refere à criança no intuito de conversar, e vice-versa, maior pode se tornar intimidade entre eles, porque cada interação torna-se oportunidade para demonstrações de afeto, cuidado, transmissão de conhecimentos e/ou experiências pessoais.
Além disso, durante a conversação pais podem oferecer modelos socialmente valorizados de interação verbais e não-verbais para a criança, incrementando o desenvolvimento de sua linguagem e da comunicação social. Ku et al. (2019) também demonstraram como a comunicação pode influenciar também em outras dimensões da parentalidade, constituindo-se, portanto, em uma habilidade relevante para treinamento de pais de crianças com TEA. O ensino dessa classe de habilidade social educativa torna-se ainda mais relevante tendo em vista que essa habilidade consistiu no pior desempenho dos cuidadores no presente estudo, em comparação às demais classes de HSE.
Considerações finais
Os resultados deste estudo sugerem que mesmo na educação de crianças com TEA, que possuem déficits acentuados em habilidades sociais, a influência das HSE dos pais/cuidadores é bastante relevante, destacando o papel fundamental da família na promoção da competência social da criança (Del Prette & Del Prette, 2017). A caracterização do repertório dos cuidadores na relação com seus filhos com TEA indicou a necessidade de treinamento para que as habilidades potencialmente presentes no repertório desses cuidadores sejam utilizadas intencionalmente para otimizar o aprendizado de habilidades sociais de seus filhos. Especificamente, as análises demonstraram que a habilidade de conversação deva ser priorizada em programas de educação e intervenção com pais de crianças com TEA, devido ao seu expressivo poder de predição sobre as habilidades sociais das crianças.
Porém, apesar de apresentar resultados relevantes, algumas limitações desse estudo sugerem cautela na generalização dos resultados. A versão brasileira do SSRS-Pais utilizado para avaliar as crianças não foi normatizado para crianças com TEA e abaixo de seis anos. Apesar de as análises preliminares de fidedignidade e consistência interna do SSRS-Pais para a amostra deste estudo viabilizarem as interpretações realizadas, sugere-se que seja feita futuramente a padronização do instrumento especificamente para essa população.
Outra limitação desse estudo foi a avaliação dos pais e das crianças por autorrelato, tendo como informantes apenas os pais. A observação direta dos comportamentos dos pais na relação com seus filhos e estudos que envolvesse outros informantes poderiam ser importantes para garantir maior precisão nas avaliações dos repertórios comportamentais.
Sugere-se que estudos futuros sejam realizados com amostras maiores e também com delineamentos longitudinais para confirmação dos achados e o acompanhamento de mudanças no repertório de pais e filhos ao longo do desenvolvimento. Além disso, torna-se relevante que os estudos incluam avaliações da severidade do autismo e funcionamento cognitivo das crianças, bem como aspectos do desenvolvimento global e comorbidades que possam interferir nas habilidades sociais das crianças. Com amostras maiores poderia ser possível, ainda, comparar o desempenho das crianças com TEA em relação ao sexo. Ademais, deve-se considerar a avaliação de outras características dos pais/cuidadores que poderiam interferir em suas habilidades sociais educativas, como comorbidades psiquiátricas, grau de sobrecarga e estresse, bem como variáveis sociodemográficas e de configuração familiar que têm sido apontadas como relacionadas à interação entre pais e filhos (Bolsoni-Silva & Loureiro, 2019).
Estudos como os sugeridos são extremamente relevantes para o planejamento de programas de treinamento em HSE para pais/cuidadores de crianças com TEA capazes de contribuir para o desenvolvimento de todo o potencial socioemocional das crianças com esse transtorno. Programas de treinamento em HSE, construídos dentro da necessidade específica desse grupo devem, posteriormente, ter seus efeitos testados por meio de delineamentos experimentais para que, uma vez comprovada sua efetividade, possam ser eventualmente incorporados aos serviços de atendimento a essa população no Brasil.