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Revista de Psicología (PUCP)

On-line version ISSN 0254-9247

Revista de Psicología vol.34 no.1 Lima Jan./Jun. 2016

http://dx.doi.org/10.18800/psico.201601.003 

ARTÍCULOS

 

Desafios no diagnóstico de dupla excepcionalidade: um estudo de caso

Challenges in dual exceptionality’s diagnosis: a case study

Desafíos en el diagnóstico de doble excepcionalidad: un estudio de caso

 

Daniela Vilarinho-Rezende1, Denise de Souza Fleith2 e Eunice Maria Lima Soriano Alencar3 Universidade de Brasília, Brasil

1 Psicóloga, mestre em Ciências do Comportamento e doutoranda em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde pela Universidade de Brasília, e especialista em Neuropsicologia Clínica pelo Instituto Brasileiro de Neuropsicologia e Ciências Cognitivas (IBNeuro). Endereço postal: SQN 205, Bloco J, Apartamento 401, Asa Norte Brasília-DF, Brasil. Contato:dvilarinho.rezende@gmail.com
2 Psicóloga, Ph.D. em Psicologia Educacional pela University of Connecticut. Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Contato: fleith@unb.br
3 Psicóloga, Ph.D. em Psicologia pela Purdue University, professora emérita do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Contato: eunices.alencar@gmail.com

 


Resumo

Observa-se um aumento no número de crianças identificadas como superdotadas que também apresentam algum transtorno, em uma condição que é denominada dupla excepcionalidade. Porém, há escassez de pesquisas sobre o tema. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é apresentar um estudo de caso de uma criança superdotada que estava em processo de diagnóstico da Síndrome de Asperger. Foram realizadas entrevistas com a criança, a mãe e os profissionais que a acompanhavam, e foram analisadas as avaliações psicológica, neurológica e fonoaudiológica, realizadas ao menino. A mãe e os profissionais fazem ponderações enquanto ao diagnóstico e levantam outras possibilidades de explicação para os comportamentos da criança. Percebem-se as dificuldades no processo de identificação e a necessidade de um olhar multidisciplinar sobre o fenômeno.

Palavras-chave: dupla excepcionalidade, superdotação, síndrome de Asperger, estudo de caso.

 


Abstract

There is an increase in the number of children who are identified as gifted, and exhibit a learning disorder as well. This condition is known as dual exceptionality. However, there are few empirical studies about this topic. Therefore, the purpose of this article is to present a case study of a gifted child who was in the process of being diagnosed with Asperger Syndrome. Interviews were conducted with the child, the mother and professionals that served him. Psychological, neurological and phonological evaluations carried out with the boy were analyzed. The mother and professionals raised further explanations for the child’s behavior. The difficulties in the diagnostic process and the need for a multidisciplinary approach are explored.

Keywords: dual exceptionality, giftedness, Asperger syndrome, case study.

 


Resumen

Se observa un aumento en el número de niños identificados como superdotados que también tienen algún trastorno, condición conocida como doble excepcionalidad. Sin embargo, hay escasez de investigaciones sobre el tema. Luego, el objetivo es presentar un estudio de caso de un niño superdotado que se encontraba en proceso de identificación del síndrome de Asperger. Se realizaron entrevistas con el niño, la madre y los profesionales que lo asistían, y se analizaron evaluaciones psicológica, neurológica y fonoaudiológica llevadas a cabo con el chico. Madre y profesionales hacen ponderaciones acerca del diagnóstico y plantean otras explicaciones para la conducta del niño. Así, darse cuenta de las dificultades en el proceso de identificación y la necesidad del enfoque multidisciplinar para el fenómeno.

Palabras clave: doble excepcionalidad, superdotación, síndrome de Asperger, estudio de caso.

 


Indivíduos com altas habilidades/superdotação podem às vezes também apresentar alguma desordem de caráter psicológico, comportamental e neurológico. De acordo com Foley-Nicpon, Allmon, Sieck e Stinson (2011), nos Estados Unidos da América, por exemplo, tem ocorrido um aumento no número de crianças identificadas como superdotadas que apresentam simultaneamente alguma deficiência, como transtorno específico da aprendizagem, de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) e do espectro autista. Paralelamente, observa-se uma atenção crescente de pais e professores sobre o tema, em especial, por diagnóstico e intervenção adequados. Apesar desse interesse, há escassez de pesquisas empíricas sobre a dupla excepcionalidade (Foley-Nicpon et al., 2011; Foley-Nicpon, Assouline, & Colangelo, 2013).

Dessa forma, o objetivo deste artigo é relatar um estudo de caso de uma criança superdotada que estava em processo de identificação de uma suposta Síndrome de Asperger, ou seja, de uma dupla excepcionalidade. A partir dos resultados deste estudo espera-se compreender melhor as dificuldades encontradas pelos profissionais da área em relação ao diagnóstico da dupla excepcionalidade, conhecer possíveis formas de abordar o tema no tratamento com a criança e entender o impacto desse diagnóstico para a família.

Superdotação e transtorno do espectro autista: a dupla excepcionalidade

De acordo com Almeida, Fleith e Oliveira (2013), a definição de superdotação sofreu mudanças ao longo dos anos, acompanhando a evolução do conceito de inteligência. Uma de suas concepções está ligada ao bom desempenho nos testes de inteligência. Em alguns estudos, superdotação é estabelecida pelo quociente de inteligência (QI) igual ou superior a 120 em testes padronizados (e.g., Cordeiro et al., 2011; Foley-Nicpon, Assouline, & Stinson, 2012). Outras concepções de superdotação que incluem fatores para além do quociente intelectual têm sido propostas por vários autores (Gagné, 2004; Gardner, 1999; Renzulli, 1978). Renzulli (1978, 2011, 2012), por exemplo, desenvolveu a Teoria dos Três Anéis em que considera a superdotação como o resultado da interação entre três aspectos: criatividade, envolvimento com a tarefa (ou motivação) e habilidades acima da média.

Apesar da concepção de superdotação estar intimamente relacionada aos pontos fortes que uma pessoa possa apresentar, é possível encontrar casos em que é também diagnosticado algum transtorno, como a Síndrome de Asperger. Devido este estudo ter iniciado antes do lançamento do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5a Edição (DSM-5, American Psychiatric Association – APA, 2014), em que a Síndrome de Asperger não existe mais como diagnóstico distinto, o termo e sua descrição serão utilizados nesse estudo. Ressalta-se que a Síndrome de Asperger ainda aparece na Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10 (World Health Organization Geneva – WHO, 1993), sendo descrita como:

Um transtorno de validade nosológica incerta, caracterizada pelo mesmo tipo de anormalidades qualitativa de interação social recíproca que tipifica o autismo, junto com um repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo. O transtorno difere do autismo primariamente por não haver nenhum atraso ou retardo global no desenvolvimento cognitivo ou de linguagem. A maioria dos indivíduos é de inteligência global normal, mas é comum que seja marcadamente desajeitada; a condição ocorre predominantemente em meninos (em uma proporção de cerca de oito garotos para uma menina) (p. 252).

Guimarães e Alencar (2012) apontam que há uma quantidade significativa de indivíduos com a síndrome que apresentam nível intelectual médio ou superior à média, sendo assim, diagnosticados como superdotados com Síndrome de Asperger, ou seja, com dupla excepcionalidade. As autoras também destacam que os profissionais devem ter conhecimento aprofundado tanto sobre a superdotação e a síndrome, quanto sobre as características que as diferenciam.

Neihart (2000) descreve nove características que distinguem o superdotado do superdotado que apresenta a Síndrome de Asperger. O primeiro aspecto citado pela autora é relacionado aos padrões de fala. Os superdotados exibem um padrão normal, mas podem ter uma linguagem mais avançada para sua idade. O superdotado com Síndrome de Asperger tem uma fala pedante e sem conexões. A próxima característica apontada por Neihart (2000) é quanto à rotina. Os superdotados costumam resistir passivamente a ela e, muitas vezes, aceitam-na, já os superdotados com Síndrome de Asperger têm baixa tolerância à mudança. Outra distinção se refere à consciência de suas diferenças. Os indivíduos com altas habilidades têm consciência que são diferentes, ao passo que no caso dos sujeitos com dupla excepcionalidade, o nível de consciência é mais baixo.

A atenção dos superdotados, quando perturbada, é por estímulos externos, e a dos com altas habilidades e Síndrome de Asperger é por estímulos internos. Quanto ao humor, os primeiros se envolvem em humor socialmente recíproco, mas os segundos, apesar de conseguir fazer jogos de palavras, não entendem o humor que exige reciprocidade social. O discernimento de pessoas com superdotação é geralmente bom, enquanto o de pessoas com dupla excepcionalidade costuma ser ausente. A autora também afirma que características, como imperícia motora, afetividade inapropriada e estereotipia, são encontradas com maior frequência em superdotados com Síndrome de Asperger. Contudo, distinguir o quadro de superdotação do de dupla excepcionalidade não é uma tarefa fácil e a sua identificação constitui um desafio para educadores, psicólogos e demais profissionais que atuam na área da educação especial.

Alguns estudos têm investigado as características de indivíduos com dupla excepcionalidade. Foley-Nicpon e contribuintes (2012) verificaram as diferenças entre superdotados com Síndrome de Asperger e Autistas de Alto Funcionamento quanto à compreensão verbal e velocidade de processamento. Os primeiros alcançaram escore maior em compreensão verbal enquanto os segundos obtiveram índices mais elevados em velocidade de processamento. Entretanto, quando analisados os resultados de outros estudos, como os de Assouline, Foley-Nicpon e Doobay (2009) e Assouline, Foley-Nicpon e Dockery (2012), de forma geral, indivíduos com dupla excepcionalidade apresentaram habilidades verbais e não verbais muito acima das habilidades de memória operacional e de velocidade de processamento. Quando comparados indivíduos com dupla excepcionalidade e superdotados sem qualquer transtorno, também se verifica que as pessoas com transtorno do espectro autista caracterizam-se por uma menor velocidade de processamento.

Outro resultado relevante quanto à caracterização de indivíduos com dupla excepcionalidade diz respeito ao seu desempenho acadêmico. Indivíduos superdotados tanto com Síndrome de Asperger ou Autismo de Alto Funcionamento exibem bom desempenho nas áreas de leitura, matemática, linguagem escrita e linguagem oral, com escores acima da média (Assouline et al., 2009; Foley-Nicpon et al., 2012). Entretanto, verificou-se melhor performance nos subtestes de fluência em leitura do que nos de matemática e fluência em escrita.

De acordo com os resultados de Assouline e contribuintes (2009), indivíduos com dupla-excepcionalidade parecem apresentar excelente performance em linguagem, narrativa e memorização. Entretanto, expressam alguns problemas quanto ao desempenho em atenção, comportamento inibitório, memória para faces e reconhecimento de emoções quando comparados a superdotados sem qualquer transtorno.

Quanto às características do Transtorno do Espectro Autista, Assouline, Foley-Nicpon e Whiteman (2010) realizaram um estudo de caso e, mesmo ao comparar um indivíduo com sérias dificuldades sociais e um superdotado com autismo, foi expressiva a diferença encontrada quanto às habilidades sociais. O indivíduo com dupla excepcionalidade fala muito alto e de forma atonal, e seu diálogo é muito formal para o contexto. Também há dificuldades nas interações sociais recíprocas e nas atividades que envolvem imaginação e criatividade.

Dificuldades relacionadas ao diagnóstico

Há com frequência confusões ao se diagnosticar superdotados com Síndrome de Asperger, uma vez que algumas características de superdotação se assemelham às da síndrome (Benito, 2009; Foley-Nicpon et al., 2011). As autoras citam algumas dessas similaridades, como foco intenso em determinados assuntos, dificuldade em fazer amigos de sua mesma idade e adaptar-se socialmente e no ambiente escolar. De acordo com Benito (2009), mesmo com os critérios diagnósticos do DSM-IV-TR que podem fornecer maior credibilidade, poderá haver ambiguidade. Ela ainda afirma que tanto crianças superdotadas quanto as com Síndrome de Asperger exibem diversas características que fogem do desenvolvimento dito típico, portanto, quando uma criança apresenta ambos diagnósticos, as características se combinam e se chocam de forma complexa.

Como não há um perfil único de superdotados, tampouco há de superdotados com Síndrome de Asperger. De acordo com Reis, Baum e Burke (2014), crianças e jovens com dupla excepcionalidade enfrentam diversos desafios por não se enquadrarem na definição tradicional de nenhuma das duas excepcionalidades. Entretanto, há padrões que podem chamar a atenção de profissionais para a possibilidade de dupla excepcionalidade (Feloy-Nicpon et al., 2011). O diagnóstico correto e precoce é o que permite o planejamento adequado da intervenção e o suporte necessário aos pais e professores (Benito, 2009; Foley-Nicpon et al., 2012).

Foley-Nicpon e contribuintes (2011) ressaltam, em seu estudo, evidências de que crianças têm sido, com certa frequência, mal diagnosticadas. Muitas delas podem estar sendo diagnosticadas como superdotadas ou com Síndrome de Asperger, quando, na verdade, deveriam estar sendo identificadas como superdotadas com Síndrome de Asperger. Outras podem ser diagnosticadas com essa dupla excepcionalidade por haver ambiguidade entre as características da síndrome e os assincronismos comuns em superdotados.

A importância do diagnóstico de dupla excepcionalidade não é apenas pela identificação em si, mas pela necessidade de viabilizar suporte tanto para superdotação como para Síndrome de Asperger. Schultz (2012) acredita que, para desenvolver toda potencialidade de estudantes com dupla excepcionalidade, é preciso um programa educacional em que haja equilíbrio entre atividades incentivadoras da superdotação e intervenções para suas deficiências.

Entretanto, o estudo realizado por Rubenstein, Schelling, Wilcznski e Hooks (2015) descreve as dificuldades enfrentadas pelos pais de superdotados com Transtorno do Espectro Autista para encontrar uma proposta educacional adequada para seus filhos. Os resultados indicaram que (a) as características dessas crianças constituem um desafio para familiares e escolas; (b) muitos professores e instituições educacionais estão despreparadas para proporcionar uma experiência educacional adequada; e (c) não existe uma padronização quanto ao apoio e orientação a pais que buscam por adaptações educacionais para seus filhos.

Observa-se, pois, a importância de mais estudos que investiguem o processo de identificação da dupla excepcionalidade e avaliem as dificuldades enfrentadas pelos profissionais e pela família. É neste contexto que se propõe o presente estudo de caso com o objetivo de apresentar brevemente a trajetória de desenvolvimento de uma criança superdotada que estava em processo de diagnóstico de uma suposta Síndrome de Asperger. Espera-se que este estudo enriqueça a literatura sobre o tema e sirva de subsídio para avaliações de dupla excepcionalidade.

Método

Participantes

No início deste estudo de caso, a criança, aqui identificada com o nome fictício de Marcos, tinha 8 anos e 6 meses de idade e cursava o 4° ano do ensino fundamental em uma escola particular. Ele morava com seus pais, duas irmãs e seus avós paternos. O pai, então com 39 anos, é advogado e a mãe, com 40 anos, é professora, mas não estava exercendo a profissão naquele momento. As duas irmãs são mais novas que Marcos – uma tinha três anos e outra um ano. A escolha por esse participante foi de conveniência.

Marcos frequentava há um ano um programa de atendimento ao aluno superdotado. Suas áreas de interesse identificadas pelos profissionais do programa eram as Ciências da Natureza e Ciências Sociais.

Medidas e instrumentos de medição

Foram realizadas sete entrevistas semiestruturadas, todas elas gravadas em áudio, com a devida autorização dos entrevistados. Primeiramente, duas com a mãe de Marcos, cada uma com duração de aproximadamente 2 horas e 30 minutos. Os tópicos abordados foram: gestação, nascimento e amamentação do filho; seu desenvolvimento de linguagem, motor e socioemocional; família; vida escolar e processo de diagnóstico da superdotação e suspeita de Síndrome de Asperger. Depois, houve uma conversa informal com Marcos por cerca de 1 hora sobre seus interesses e sua vida escolar. Ambos os encontros aconteceram na casa da família. Na etapa seguinte, entrevistaram-se os profissionais que acompanhavam a criança: a psicoterapeuta, a terapeuta de psicomotricidade, o professor e a psicóloga do programa de atendimento ao aluno superdotado, tendo cada uma dessas entrevistas uma duração de aproximadamente 1 hora. Os eixos temáticos discutidos foram: formação profissional, conhecimento sobre superdotação, histórico do atendimento de Marcos, percepção quanto às dificuldades e avanços da criança e posicionamento em relação ao diagnóstico de dupla excepcionalidade. Os profissionais foram entrevistados em seu local de trabalho.

Além das entrevistas, as pesquisadoras tiveram acesso a documentos, entre eles: (a) o primeiro laudo de superdotação, (b) relatório de avaliação em altas habilidades/superdotação do programa de atendimento ao aluno superdotado, (c) avaliação neuropsicológica, (d) laudo do exame fonoaudiológico do processamento auditivo central (PAC), e (e) avaliação fonoaudiológica pré e pós-intervenção.

Resultados

Serão apresentados inicialmente os dados obtidos na entrevista com a mãe, acerca da gestação, nascimento e amamentação do filho, seu desenvolvimento, vida escolar e processo de diagnóstico da superdotação e suspeita de Síndrome de Asperger. A seguir, serão descritas as informações obtidas nas entrevistas com cada profissional e com Marcos. Esta seção finaliza com os resultados dos documentos analisados.

Relato da mãe

Gestação, nascimento e amamentação. A gestação de Marcos foi tranquila, o bebê, com 3.320 kg e medindo 47 cm, nasceu de cesariana dentro do período esperado e o parto não teve intercorrências. A amamentação ocorreu normalmente. Entretanto, o bebê por volta de um mês e meio apresentou alergia à proteína do leite de vaca, alimento que sua mãe consumia em grandes quantidades. O menino foi medicado, sua mãe retirou de sua dieta todos os alimentos que levavam leite de vaca em sua composição e logo em seguida Marcos voltou a consumir o leite materno. A amamentação ocorreu até por volta dos noves meses. Com cerca de um ano de idade, o leite de vaca foi introduzido em sua dieta e não houve mais reações alérgicas.

Desenvolvimento da linguagem, motor e socioemocional. Quanto ao desenvolvimento da linguagem, a mãe relatou que foi normal nos primeiros dois anos de vida. Por volta dos seis meses, Marcos começou a balbuciar. Antes de completar 1 ano, falava algumas palavras e por volta dos 2 anos formava frases simples, como "quer papá" e "tchau mamãe". Aos quase 3 anos, o menino surpreendeu os pais ao falar palavras que a família não sabia que ele dominava, além de apresentar concordância gramatical ao falar. De acordo com a mãe, ela percebe que a fala do filho era rebuscada, porém ele conhecia o significado das palavras que usava. Aos 4 anos e 4 meses, a criança já lia e compreendia o conteúdo dos gibis.

Em relação ao desenvolvimento motor, a mãe contou que o filho não chegou a engatinhar. Com 7 meses ele utilizava o andador. Aos 9 meses, ficava em pé dentro do berço se apoiando em suas grades. Também andava com apoio quando era colocado em pé próximo a algum móvel da casa. Com 1 ano e 4 dias, Marcos andou sem qualquer apoio. O menino não tinha contato com crianças que pudessem jogar com ele, nem tampouco os pais tinham tempo. Na época, moravam em uma cidade balneária com cerca de 5.000 habitantes, em sua maioria pessoas aposentadas. Dessa forma, o menino não conviveu com outras crianças até ser admitido na pré-escola com 3 anos e meio. Por volta dos 6 anos, a mãe percebeu que o filho tinha dificuldades em chutar e agarrar bolas, comportamentos que só foram aperfeiçoados aos 8 anos. Ainda por ocasião da coleta de dados, Marcos não apresentava sincronia entre os dois lados do corpo. A criança também não tinha noção de ritmo e de sincronismo de movimento. Desde a inclusão da letra cursiva em sua vida escolar, Marcos resiste em escrever.

Em relação ao desenvolvimento socioemocional, por sua vez, a mãe afirmou que, nos primeiros anos escolares, Marcos brincava no parquinho com seus colegas, mas também gostava de ficar sozinho explorando o ambiente ao seu redor. De acordo com a mãe, ele sempre buscou fazer amizades com meninas, pois as considerava mais maduras. Marcos não se adaptava com facilidade nas interações com os meninos, por conta dos tipos de brincadeiras mais violentas.

Vida escolar. Quando iniciou a pré-escola, aos 3 anos e meio, Marcos foi acelerado um ano, a contragosto da escola que acreditava que o menino não tinha desenvolvimento emocional para aceleração, embora intelectualmente estivesse mais avançado. Na turma do Jardim I, Marcos preferia explorar sua sala e outros espaços da escola a participar das aulas. A professora considerou que Marcos precisava brincar mais e decidiu retrocedê-lo ao Maternal II. Ele ficou mais feliz, mas, segundo a mãe, o filho perdeu estimulação na área acadêmica e passou a recusar desenhar e pintar, atividades que, antes, fazia.

No ano seguinte, Marcos e a família se mudaram para outra cidade. Na nova escola, no primeiro ano, tudo correu bem. Já no segundo ano, quando foi introduzida a letra cursiva, Marcos apresentou dificuldades em redigir textos na disciplina de Português. A professora reclamou que ele estava cada vez mais desatento. Foi levantada a suspeita de Transtorno de Déficit de Atenção/ Hiperatividade (TDAH), porém não foi confirmada. Embora suas notas fossem altas, variando entre nove e dez pontos, Marcos não queria mais ir às aulas: vomitava quando a condução chegava para levá-lo e pedia aos pais que o mudassem de colégio. A família atendeu seu pedido. Na nova escola, ele encontrou dificuldade em fazer amigos, já que tinha preferência por amizade com meninas e essas não o acolheram. Nessa ocasião, começou a inventar e fantasiar situações e contava aos pais como se fossem verdades.

No ano seguinte, a família mudou-se de cidade novamente e o menino foi matriculado em uma escola pública. A criança não se adaptou ao novo ambiente escolar e, por essa razão, foi encaminhado para psicoterapia e transferido para uma escola particular. Foi então que surgiu a suspeita de Síndrome de Asperger por parte da psicóloga que o acompanhava. A mãe percebia que estava havendo melhoras. Entretanto, os professores lhe diziam que Marcos estava atrasado academicamente.

Processo do diagnóstico. Os pais só perceberam que seu filho era diferente das outras crianças da mesma idade quando Marcos entrou na escola. A primeira evidência apareceu ao se questionar em que classe ele seria admitido. Pela sua idade ele entraria no Maternal II, porém ele já tinha o conteúdo completo da série seguinte, o Jardim I. A professora do Maternal II também percebeu a potencialidade de Marcos e o estimulou com exercícios diferenciados durante as atividades em sala de aula.

Entretanto, o diagnóstico ocorreu quando tinha 7 anos, em uma instituição que oferece serviços de avaliação ao aluno superdotado. A indicação foi de uma psicopedagoga de um hospital em que Marcos ficou internado por alguns dias em decorrência de uma infecção intestinal. Ela percebeu características de superdotação e sugeriu que os pais realizassem uma avalição.

Pouco antes do início deste estudo, Marcos voltou a ser avaliado por uma psicóloga que levantou a suspeita do diagnóstico de superdotação com Síndrome de Asperger. A primeira reação da família ao saber do suposto diagnóstico foi de susto. Por terem dúvidas quanto à dupla excepcionalidade, buscaram se informar melhor sobre a síndrome e procuram a opinião de outros profissionais. A postura da mãe tem sido de trabalhar os comportamentos que precisam ser desenvolvidos sem dar um rótulo ao filho. Para ela, os sintomas que a síndrome acarreta não são o maior problema, pois acredita que, com tratamento adequado, podem ser minimizados. O que a preocupa é o estigma da síndrome que pode afetar o emocional do filho.

Relato dos profissionais

Psicoterapeuta. A profissional, que, por ocasião da entrevista, atendia Marcos há um ano e meio, tem uma longa experiência em assistir crianças e jovens superdotados. No início da terapia, ela identificou na criança dificuldades nas habilidades sociais, rigidez corporal, falta de espontaneidade, resistência em mudar de atividade e tendência a falar de um só tema. Com o atendimento psicoterápico, progressos ocorreram em vários aspectos, como nas habilidades sociais, na dimensão emocional e nas atividades acadêmicas. Ela descreveu Marcos como sendo muito motivado e com facilidade de aprendizagem, o que tem facilitado o processo terapêutico.

Algumas outras características identificadas pela psicóloga foram: educado, bem humorado, afetuoso, curioso e detalhista, chegando a ser prolixo. Essa última característica, segundo a profissional, é própria tanto da superdotação como da Síndrome de Asperger. Em seu trabalho com a criança, buscou desenvolver as habilidades necessárias para Marcos superar as dificuldades que determinado comportamento pode gerar, sem rotulá-la. Citou como exemplo a prolixidade que atrapalhava suas relações sociais. Com a intervenção terapêutica, a criança diminuiu o nível de prolixidade e passou a ter uma melhor interação com seus amigos. A psicóloga também buscou estimular as potencialidades da criança. Para ela, em casos de dupla excepcionalidade, quando há uma harmonização entre a superdotação e a Síndrome de Asperger, a criança se sente melhor. A profissional já percebeu um maior equilíbrio entre as potencialidades e limitações de Marcos, com reflexos em um desenvolvimento mais saudável.

Quanto ao diagnóstico de dupla excepcionalidade levantado por ela, deixou claro que a Síndrome de Asperger era uma hipótese que ainda necessitava ser melhor investigada e que futuramente poderia ser confirmada ou abandonada. Ela ainda explicou que a suspeita de Distúrbio do Processamento Auditivo Central (DPAC), sugerida por outro profissional, não necessariamente descarta a Síndrome de Asperger, por isso é importante acompanhar o desenvolvimento da criança.

Quando questionada sobre as dificuldades em fazer um diagnóstico de dupla excepcionalidade, destacou as poucas pesquisas sobre o tema e falta de instrumentos que avaliem a Síndrome de Asperger. Lembrou ainda impacto gerado na família quando toma conhecimento de tal diagnóstico. No caso de Marcos, também atendeu a mãe para passar orientações e, assim, ter melhores resultados com a criança. Quanto ao futuro de Marcos, a psicóloga deu um bom prognóstico, mas pontuou que haverá fases ao longo de sua vida em que ele necessitará de acompanhamento.

Terapeuta de psicomotricidade. A terapeuta de psicomotricidade é formada em pedagogia e trabalhava com ensino especial há 13 anos. Fez especialização na área de ensino especial e em psicomotricidade. Sua maior clientela não era de superdotados, mas sempre tinha algum paciente com este diagnóstico em seu consultório.

Ao ser entrevistada, relatou que o menino chegou com a demanda de dificuldade de socialização, rigidez corporal acentuada desde a primeira infância (o que ela constatou por meio de fotos), hipotonia da escrita, não aceitação de desafios motores e privação da vivência motora. Apresentava-se ainda muito rígido, com a expressão facial fechada (a boca se curvava para baixo) e a fala e ações muito formais, mas não tinha rituais e manias. Marcos havia tido 14 sessões de psicomotricidade e já brincava, subia no sofá, sentava no tatame, discutia assuntos com a terapeuta e tinha uma expressão mais serena. Os resultados estavam sendo muito rápidos, o que a terapeuta atribuía ao vínculo forte que fizera com a criança desde o início e por sempre deixar claro que aquele espaço de terapia era um momento lúdico.

Uma das primeiras atividades da terapeuta foi proporcionar vivências motoras ao menino. Ela também desenvolveu um trabalho voltado para autonomia corporal que influencia positivamente a parte pedagógica, costumeiramente o centro da demanda.

Quanto ao diagnóstico de superdotação, a terapeuta percebia toda a família como muito inteligente. Para ela, Marcos é uma criança que tem vasto conhecimento, é curiosa, aprofunda em seus interesses e é focada. Quanto à suspeita de Síndrome de Asperger, afirmou que, mesmo quando Marcos chegou ao seu consultório, não via os sintomas determinantes da síndrome, entretanto, reconheceu que a criança já recebia outros tratamentos. Portanto, ao conhecer o histórico do menino, concordou que havia características que sustentavam o diagnóstico. Entretanto, ela ainda acreditava na influência da história e contexto familiar de Marcos, que, no seu ponto de vista profissional, desclassificaria o diagnóstico. Para a terapeuta, esse poderia ser importante em um primeiro momento, mas seu foco deveria ser nas necessidades da criança.

Professor do programa de atendimento ao superdotado. O professor de Marcos no programa de atendimento ao superdotado é formado em Ciências Sociais, com especialização na área de altas habilidades e 12 anos de experiência atuando no programa.

Por ocasião da entrevista, Marcos já estava frequentando a sala de recursos para alunos superdotados sob a supervisão desse professor há cerca de um ano. O docente relatou que, no primeiro semestre, o menino se dedicava mais a observar o contexto e ficava retraído. Depois de se integrar ao ambiente e criar um vínculo de confiança com o profissional e colegas, no segundo semestre a criança começou a mostrar sua capacidade, produzir e fazer amizades. Tinha entre seus amigos um colega mais velho que o ajudava. O professor acreditava, que, no segundo ano do programa, Marcos se desenvolveria ainda mais.

Ressaltou que Marcos não lidava bem com críticas, comportamento que ele vinha trabalhando com seu aluno. Informou ainda que Marcos estava desenvolvendo um projeto sobre energia, encontrando-se na fase final de elaboração dos resultados. Quanto ao diagnóstico de dupla excepcionalidade, o professor não via no aluno características da Síndrome de Asperger.

Psicóloga do programa para superdotados. A psicóloga descreveu Marcos como um menino criativo, muito inteligente, perspicaz e que apresenta respostas inusitadas. Quando Marcos ingressou no programa, ela percebeu nele baixa resistência à frustração, pouca persistência e medo do fracasso. No entanto, ele já estava aprendendo a brincar e a lidar com fracasso, estava persistindo e constatando que os outros também perdem. Mas a criança ainda não sabia lidar com as brincadeiras dos colegas. Para a profissional, Marcos é sensível e se chateia dependendo de como as pessoas falam. Quanto ao contato físico, Marcos dava abraços e aceitava o contato.

A psicóloga, de forma similar ao professor, acreditava que Marcos se desenvolveria ainda mais no segundo ano de participação no programa para superdotados. Com base em seu conhecimento sobre a síndrome, essa profissional não concordou com o diagnóstico de dupla excepcionalidade. Para ela, as características da criança que se confundem com traços da Síndrome de Asperger eram influenciadas pelo contexto familiar. Deu o exemplo do pai que é rígido e que a criança se parece muito com ele.

Relato de Marcos

Na conversa com Marcos, vários assuntos foram discutidos e a criança se mostrou muito receptiva. Afirmou gostar de ter altas habilidades e de frequentar o programa para superdotados, no qual desenvolve um trabalho sobre as energias solar, eólica e hidráulica – começou o projeto desenhando e depois passou a escrever sobre o tema.

Outro tópico focalizado na entrevista foi em relação à escola regular. Ele contou que só não sofreu em seu primeiro colégio e no atual. Na escola pública em que estudou anteriormente, os colegas batiam nele e em outros meninos. Ele não se sentia bem nessa escola.

Quanto a seus interesses, Marcos destacou que gosta de jogos de computador e de vídeo game, assistir televisão e brincar de carrinho. Ele também tem vontade de ter um cachorro e já chegou a pesquisar várias raças para encontrar qual será a melhor para ter em um apartamento. Também de seu interesse são os planetas e cidades. Em seu quarto, o menino tinha um tapete com o desenho de ruas, onde montava sua cidade e brincava de carrinho. Ele também gosta de plantas – naquele momento estava cultivando um pé de feijão. Marcos falou sobre seus três amigos, porém um deles não era considerado seu melhor amigo, pois falava muito palavrão, coisa que ele não aprecia. Quando se juntavam, uma das brincadeiras era sinuca, mas ele não era muito bom nesse jogo.

Marcos dividia o quarto com sua irmã de três anos, mas, de acordo com a mãe, quando os avós se mudassem para outro apartamento, o filho teria um quarto para ele. Então, o menino descreveu como seria seu quarto e para mostrar como organizaria o ambiente, propôs desenhá-lo. A mãe, ao ver o desenho, percebeu que as habilidades motoras estavam melhorado. Também foi possível acompanhar Marcos na realização de sua tarefa de gramática. Ele demorou um pouco mais do que o necessário para finalizar a atividade, mas não apresentou dificuldade no conteúdo.

Documentos

O primeiro laudo de superdotação foi realizado em uma instituição que oferece serviços de avaliação ao aluno superdotado. No laudo, foi confirmado que Marcos é superdotado, uma vez que o menino apresentou desenvolvimento intelectual e habilidades cognitivas em níveis superiores ao esperado para sua faixa etária, além de uma gama de características frequentes em pessoas com superdotação. Marcos alcançou os melhores resultados em atividades de cunho verbal e dentro da média esperada em tarefas de execução. A criança na época apresentou dominância nas inteligências linguístico-verbal e lógico-matemática. Foi evidenciada ótima capacidade de abstração de pensamento e excelente capacidade de argumentação, oferecendo respostas bem elaboradas, coerentes e contextualizadas. Mostrou habilidade para fazer cálculos mentais complexos e uso da lógica para analisar problemas e gerar soluções. Quanto ao seu desenvolvimento socioemocional, a criança apresentou maturidade acima do esperado para sua idade e mostrou-se bastante preocupado com as outras pessoas e com animais em situações de risco. Também foi percebido significativo potencial criativo, riqueza de imaginação e preferência por tarefas novas. Não foi incluído no laudo qualquer indicativo de suspeita de Síndrome de Asperger.

A psicóloga do programa de atendimento ao aluno superdotado disponibilizou o Relatório de Avaliação em Altas Habilidades/Superdotação realizado por ela para assegurar a permanência do aluno no programa para superdotados. Nesse documento, foram apresentados resultados de testes, nos quais a criança demonstrou ter capacidade cognitiva superior à média, facilidade em processar informações, em integrar experiências e emitir respostas apropriadas e contextualizadas, bom raciocínio abstrato para generalizar, e vocabulário avançado para idade. No relatório, foram também apontados dificuldade do aluno em manter o foco, falta de paciência, ansiedade, baixa resistência à frustração e medo de errar. O parecer conclusivo foi favorável a que o aluno permanecesse no programa para superdotados. Também foi sinalizada a necessidade de continuar atendimento psicológico para ajudar a criança a lidar com os problemas emocionais que lhe causavam ansiedade.

Após o levantamento da hipótese de Síndrome de Asperger pela psicoterapeuta, Marcos passou por novas avaliações com outros profissionais. No laudo da avaliação neuropsicológica foi indicado talento nas áreas de funções verbais e de raciocínio matricial. No entanto, verificou-se atraso das funções visomotoras e de processamento auditivo. Na Escala de Inteligência Wechsler para Crianças (WISC-IV), Marcos apresentou QI Total igual a 111 (média superior), a Compreensão Verbal foi classificada como superior (QI = 125), a Organização Perceptual foi dentro da média superior (QI = 118), a Memória Operacional esteve dentro média (QI = 94), e a Velocidade de Processamento esteve na média inferior (QI = 86). A neuropsicóloga sugeriu que o desempenho mais baixo em testes de memória operacional e de velocidade de processamento, sem evidência de déficit de atenção, poderia estar associado a focos irritativos no sistema nervoso central.

Quanto aos resultados relativos à avaliação do comportamento e fatores emocionais, a neuropsicóloga destacou autocontrole, atenção, tolerância à frustração, expansividade, maturidade, bom humor, tendência à expansão, desejo de produzir, elevado senso estético, equilíbrio mental, socialização e grande capacidade de adaptação. Contudo, Marcos também apresentou dificuldade em organizar o pensamento e planejamento, angústia e ansiedade com conduta de fuga em atividades que exigiam alta carga de memória operacional e habilidades psicomotoras, traços de insegurança, sentimento de inadequação, oposicionismo, vivências depressivas e inadequadas para a sua idade; necessidade de crescer logo; constrição pelo ambiente e tendência a reagir agressivamente em autodefesa, medo de não conseguir avançar e satisfazer às suas expectativas, sentimento de rejeição e de não fazer parte do grupo familiar.

Foi também realizado exame fonoaudiológico para avaliar possíveis alterações no processamento auditivo central (PAC). O resultado indicou alteração na escuta direcionada do ouvido esquerdo no teste dicótico consoante/vogal e mecanismos inadequados: (a) de atenção seletiva para o reconhecimento de sons não verbais em escuta dicótica, e (b) de figura fundo para sons verbais em processo de atenção sustentada. Como conclusão, verificou-se o atraso do desenvolvimento do processamento auditivo central do tipo decodificação, ou seja, comprometimento do processo gnósico auditivo verbal, no que se refere à habilidade de atribuir significado a informação fonêmica, análise do sistema fonêmico da linguagem.

Na avaliação fonoaudiológica pré-intervenção, analisou-se a fala de Marcos, tendo sido constatado que ele apresentava ritmo fonatório linear, articulação coordenada e entonação falada adequada. Quanto ao vocabulário oral, não foram evidenciados vícios de linguagem e nem dispraxia da palavra. Demonstrou ritmo auditivo fragmentado quando teve que ouvir e processar as informações. As habilidades de percepção, reprodução e integração auditiva encontraram-se comprometidas. Apresentou quadro sugestivo de dificuldade no processamento auditivo quanto à organização e decodificação auditiva. Marcos também teve atenção visual e auditiva oscilantes na aprendizagem. Após 17 sessões de tratamento fonoaudiológico, foi realizada nova avaliação e verificada melhora expressiva em todos esses aspectos.

Discussão

Neste estudo de caso, o objetivo foi apresentar brevemente a trajetória de desenvolvimento de uma criança superdotada que estava em processo de diagnóstico de uma suposta Síndrome de Asperger. Nas falas da mãe e dos diversos profissionais que acompanharam o menino constatou-se um grande questionamento acerca da confirmação desse diagnóstico. Pôde-se perceber, portanto, a dificuldade em se concluir essa identificação. Mesmo entre profissionais qualificados e experientes na área de altas habilidades, o tema é controverso.

De acordo com a terapeuta de psicomotricidade, o professor e a psicóloga do programa de atendimento ao superdotado, os comportamentos e limitações de Marcos se justificam pela sua história de vida. A partir do relato da mãe, foi possível verificar que Marcos apresentou características de superdotação desde muito novo, em especial na área da linguagem, ainda que tenha vivido em um contexto que lhe privou de certas experiências importantes para o desenvolvimento motor e social. Além disso, o menino foi diagnosticado com DPAC, que compromete muitas dos sintomas que eram ditos da síndrome.

Os resultados da avaliação neuropsicológica, por sua vez, indicaram melhor desempenho em compreensão verbal e organização perceptual quando comparadas à memória operacional e velocidade de processamento. Esses dados são compatíveis com os resultados de pesquisas que investigaram o desempenho de superdotados com Síndrome de Asperger em testes de inteligência (e.g., Assoline et al., 2009, 2012; Guimarães & Alencar, 2013). Entretanto, nesse caso específico, o atraso das funções visomotoras e de processamento auditivo associado a possíveis focos irritativos no sistema nervoso central citado pela neuropsicóloga, também apresentado no exame fonoaudiológico do processamento auditivo central e pela avaliação fonoaudiológica podem ter sido a causa desse baixo rendimento.

A partir dos relatos apresentados pelos profissionais que acompanham Marcos e das avaliações realizadas, foram levantados comportamentos tanto característicos aos da Síndrome de Asperger, como contrários. Por um lado, a psicoterapeuta identificou na criança dificuldades nas habilidades sociais e motoras, falta de espontaneidade, resistência a mudanças e tendência a focar em um só tema em suas conversações. Essas são algumas das características levantadas por Neihart (2000) na descrição do superdotado com Síndrome de Asperger. Por outro lado, os demais profissionais não identificaram os sintomas típicos da síndrome em Marcos, como anormalidades qualitativas de interação recíproca e repertórios estereotipados (WHO, 1993).

Os resultados do primeiro laudo que confirmou a superdotação, do exame neuropsicológico e fonoaudiológico evidenciaram que Marcos possui capacidade de abstração de pensamento e de argumentação, potencial criativo e de imaginação, autocontrole, maturidade emocional, preferência por tarefas novas, capacidade de adaptação, ritmo fonatório linear, articulação coordenada e entonação falada adequada, vocabulário oral sem vícios de linguagem e nem dispraxia da palavra. Esses resultados não correspondem à dificuldade na imaginação e criatividade (Assouline et al., 2010), ao controle inibitório (Assouline et al., 2009), à afetividade inapropriada (Neihart, 2000), à baixa tolerância à mudança (Neihart, 2000; WHO, 1993) e aos padrões de fala (Assouline et al., 2010; Neihart, 2000) característicos de indivíduos superdotados com Síndrome de Asperger. Entretanto, Marcos apresentou baixo nível de habilidades sociais e dificuldades motoras que são sintomas da síndrome. Essas limitações foram significativamente diminuídas ao longo do trabalho de todos os profissionais citados nesse estudo.

A conclusão final do diagnóstico de Marcos refutou a hipótese de dupla excepcionalidade. No entanto, para além do diagnóstico, neste estudo de caso, o importante é destacar a dinâmica do processo de identificação. Apesar de levantar a suspeita de uma síndrome, a psicoterapeuta conduziu o tratamento de Marcos permitindo que suas potencialidades fossem desenvolvidas e suas limitações trabalhadas, sem se deter ao rótulo da síndrome. Essa foi também a postura de todos os outros profissionais que o atenderam. O papel da família também foi de grande importância, uma vez que esta buscou todas as oportunidades para o melhor desenvolvimento da criança.

A dupla excepcionalidade é um fenômeno complexo, uma vez que algumas características diferenciadas e temporárias de uma criança superdotada podem acabar sendo confundidas com transtornos. Para diminuir os erros de diagnóstico, Foley-Nicpon e contribuintes (2011) sugerem uma avaliação da inteligência, comportamentos e habilidades sociais. Os resultados deste estudo de caso também apontam a importância de um trabalho multidisciplinar com psicoterapeutas, educadores, terapeutas de psicomotricidade, neuropsicólogos, entre outros profissionais que abarquem as diversas necessidades do indivíduo.

Ficar preso a qualquer tipo de rótulo angustia e engessa os potencias do indivíduo. A exemplo dos profissionais e família deste estudo, é preciso prezar, acima de tudo, pelo bem estar do indivíduo e procurar ser andaime para seu crescimento.

 

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Recibido el 30 de mayo de 2015

Aceptado el 25 de septiembre de 2015

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