SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.36 issue2Professional self-concept: Prediction of teamwork commitmentIntegrated evaluation of intelligence and creativity author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

  • Have no cited articlesCited by SciELO

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Revista de Psicología (PUCP)

On-line version ISSN 0254-9247

Revista de Psicología vol.36 no.2 Lima  2018

http://dx.doi.org/10.18800/psico.201802.004 

ARTÍCULOS

 

Projetos de vida e moralidade em adolescentes com indícios de altas habilidades/superdotação1

Proyectos de vida y moralidad en adolescentes con indicios de altas habilidades/ superdotación

Life projects and morality in adolescents with indications of high abilities/giftedness

Projets de vie et de moralité chez les adolescents avec des signes de haute potentiel/ douance

 

Andréia Mansk Boone Salles2, Heloisa Moulin de Alencar3

Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil

1 Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro. Também agradecemos à Mayara Gama de Lima pelo apoio na categorização dos dados deste artigo.
2 Doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e membro do Laboratório de Psicologia da Moralidade (LAPSIM) da UFES. O presente artigo é fruto de um dos três estudos conduzidos durante o doutoramento da primeira autora e foi orientado pela segunda autora. Endereço: Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais/ Programa de Pós-graduação em Psicologia, Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras, Vitória/ ES. Brasil. CEP 29075-910. Email: andreiambsalles@gmail.com.
3 Pós-Doutora pela University of California, Berkeley. Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Professora titular do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenadora do Laboratório de Psicologia da Moralidade (LAPSIM) da UFES. Bolsista Pesquisadora Capixaba da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (Fapes). Endereço: Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais/Programa de Pós-graduação em Psicologia, Av. Fernando Ferrari, 514, Goiabeiras, Vitória/ES. Brasil. CEP 29075-910. Email: heloisa.alencar@ufes.br.

 


RESUMO

Este estudo investigou os projetos de vida de 40 adolescentes com indícios de altas habilidades/superdotação, divididos igualmente quanto ao sexo e tipo de superdotação (escolar ou criativo-produtiva). Para tanto, perguntamos, através do método clínico piagetiano, quais eram os projetos de vida dos jovens e as justificativas para cada uma das projeções. Foram apresentados 229 projetos, com ênfase para ‘formação acadêmica’, ‘atividade profissional’, e ‘relacionamento afetivo’. As justificativas foram, principalmente, do tipo ‘autocentrado’, sugerindo que a maioria das projeções não apresentou a perspectiva moral e ética, pois assinalaram os interesses individuais, desprovidos dos valores morais. Esperamos que os resultados auxiliem ações psicopedagógicas que motivem a criação de projetos de vida éticos visando à construção de uma sociedade pautada na moral e na ética.

Palavras-chave: projetos de vida, altas habilidades/superdotação, psicologia da moralidade.

 


RESUMEN

Este estudio investigó los proyectos de vida de 40 adolescentes con indicios de altas habilidades/superdotación, divididos igualmente en cuanto al sexo y tipo de superdotación (escolar o creativo-productiva). Para ello, preguntamos, a través del método clínico piagetiano, cuáles eran los proyectos de vida de los jóvenes y las justificaciones para cada una de las proyecciones. Se presentaron 229 proyectos, con énfasis para ‘formación académica’, ‘actividad profesional’, y ‘relación afectiva’. Las justificaciones fueron, principalmente, del tipo ‘autocentrado’, sugiriendo que la mayoría de las proyecciones no presentó la perspectiva moral y ética, pues señalaron los intereses individuales, desprovistos de los valores morales. Esperamos que los resultados ayuden a las acciones psicopedagógicas que motiven la creación de proyectos de vida éticos para la construcción de una sociedad pautada en la moral y la ética.

Palabras clave: proyectos de vida, altas habilidades/superdotación, psicología de la moral.

 


ABSTRACT

This study investigated the life projects of 40 adolescents with high abilities/giftedness, equally divided by sex and type of giftedness (schoolhouse or creative production). The clinical method proposed by Piaget was used to ask assess the youths’ life projectsand their justifications. Results indicated that 229 projections emphasized ‘academic education’, ‘professional activity’ and ‘loving relationship’. The justifications were mainly of the ‘selfcentered’ type, suggesting that most of the projections did not present the moral and ethical perspective, since they marked the individual interests without the moral values. We hope that the results will help psychopedagogical actions that motivate the creation of ethical life projects aimed at building a society based on morality and ethics.

Keywords: life projects, high abilities/giftedness, moral psychology.

 


ABSTRAIT

Cette étude a étudié les projets de vie de 40 adolescents avec des signes de haute potentiel/ douance, également divisés en sexe et type de douance (scolaire ou créative-productive). Pour ce faire, nous avons demandé, à travers la méthode clinique piagétienne, quels étaient les projets de vie des jeunes et les justifications de chacune des projections. Au total, 229 projets ont été présentés, en mettant l’accent sur la "formation académique", "l’activité professionnelle" et la "relation affective". Les justifications étaient, principalement, de type "égocentrique", suggérant que la majorité des projections ne présentaient pas la perspective morale et éthique, puisqu’elles désignaient des intérêts individuels, dépourvus de valeurs morales. Nous espérons que les résultats aideront les actions psychopédagogiques qui motivent la création de projets de vie éthiques pour la construction d’une société basée sur la morale et l’éthique.

Mots-clés: projets de vie, haute potentiel/douance, psychologie de la morale.

 


O presente estudo tem como objetivo investigar os projetos de vida de adolescentes com indícios de altas habilidades/superdotação (AH/ SD) e as justificativas para cada projeção assinalada, assim como, verificar se os motivos para os projetos possuem elementos coerentes com as perspectivas moral e ética, abordaremos tais perspectivas a seguir. Optamos pelo uso do termo ‘indícios de AH/SD’, visto que a perspectiva teórica utilizada acerca das AH/SD foi a de Renzulli (2004, 2005), para quem a superdotação pode se manifestar em algumas circunstâncias e em outras não. Por isso, tal autor prefere falar em pessoa com ‘comportamentos superdotados’, criticando a concepção do ‘ser superdotado’ (Rech e Freitas, 2005), exporemos mais sobre o assunto no final desta introdução. Além disso, o estudo tem por finalidade investigar os projetos de vida e seus motivos em uma população específica, no caso os adolescentes com indícios de AH/SD, e não pesquisar sobre a superdotação especificamente. Acentuamos ainda que, para facilitar a leitura e evitar repetições, utilizaremos as expressões altas habilidades, superdotação, superdotado(a) e a sigla AH/SD para fazermos referência aos participantes com indícios de altas habilidades/superdotação.

Isso posto, adotamos como referencial teórico-metodológico a Psicologia da Moralidade, sendo essa a "ciência preocupada em desvendar por que processos mentais uma pessoa chega a intimamente legitimar, ou não, regras, princípios e valores morais" (La Taille, 2006, p.9). Tal ciência tem, como pilar teórico, o estudo de Piaget (1932/1994) acerca do juízo moral infantil, para quem o desenvolvimento moral da criança passa pela heteronomia (marcada pelo respeito unilateral à autoridade) antes de alcançar a autonomia (em que as normas morais são entendidas a partir de sua função social e baseadas no respeito mútuo e na cooperação).

Desse modo, por volta dos dez anos, a criança teria condições cognitivas e afetivas de alcançar a fase da moral autônoma, no entanto, é preciso a interação social para que isto ocorra, porque é através das relações sociais, vivenciadas pela criança, principalmente com seus pares, que ela poderá aprender e experienciar sobre respeito mútuo e cooperação (Piaget, 1932/1994). O autor afirma que a criança não é completamente heterônoma ou autônoma, sendo tais termos tendências dominantes e não estágios, fases ou períodos fixos. Contudo, não é possível, do ponto de vista cognitivo e afetivo, passar-se para a autonomia sem antes se ter vivenciado a heteronomia.

As contribuições de Piaget sobre o juízo moral na criança continuam a influenciar estudiosos comprometidos em conhecer, em diferentes grupos de pessoas, sobre a construção de projetos de vida, representações de si, virtudes morais, entre outros assuntos (D’Áurea-Tardeli, 2011; La Taille, 2010; Tognetta; La Taille, 2008). Tais investigações, dentre outras, além de utilizarem os estudos de Piaget, adotam os conceitos de moral e ética como concebidos por La Taille (2006) para embasamento teórico e análise de suas pesquisas. Assim sendo, para La Taille (2006), moral e ética possuem definições diferentes, porém complementares, quer dizer, a moral vincula-se aos deveres, ao sentimento de obrigatoriedade, enquanto a ética ao projeto de felicidade e procura pela ‘vida boa’, visando "a verdadeira vida com e para o outro em instituições justas" (Ricoeur, 2014, p. 197, grifos do autor). Diante disso, "os deveres morais somente serão intimamente legitimados e, portanto, inspirarão as ações dos indivíduos para os quais eles são partes integrantes de uma ‘vida boa’, por aqueles, portanto, que possuem uma ética" (Tognetta e La Taille, 2008, p.182).

Segundo La Taille (2006), do ponto de vista psicológico, todas as pessoas podem experimentar o sentimento de obrigatoriedade que recebe conteúdos diversos, dependendo do contexto cultural. Tal sentimento está associado à resposta ao questionamento "como devo agir?" (p.31), implicando no uso da consciência, portanto, da dimensão intelectual quando no agir de forma moral. Por isso, o ‘saber fazer’ de acordo com a moral presume que o sujeito tenha conhecimento das regras, princípios e valores socialmente aceitos. Todavia, a conduta moral só ocorrerá se o indivíduo assim o desejar, sendo este ‘querer fazer’ relacionado à dimensão afetiva.

O plano ético corresponde às respostas existenciais à questão "que vida eu quero viver?" (La Taille, 2006, p.36), aludindo-se aos projetos de vida, dentre outros. Tal perspectiva relaciona-se ao viver uma vida que valha a pena ser vivida, que faça sentido, uma ‘vida boa’ que possibilite a expansão de si mesmo e a busca/manutenção de representações de si de valor positivo (La Taille, 2010). De acordo com La Taille (2006), o sentimento de expansão de si próprio relaciona-se às perguntas "quem eu quero ser?" (p. 46) e também a "que vida eu quero viver?" (p. 36), sendo significativo para o plano ético, visto que possibilita a experiência do sentimento de bem-estar subjetivo, motiva a busca pela felicidade e sentido para a vida em que o si mesmo e o outro são considerados no projeto da ‘vida boa’.

Destarte, compreendemos, como projeto de vida, o plano, a intenção, a aspiração, e o objetivo a ser atingido no futuro (Ferreira, 1986). Nesse sentido, Inhelder e Piaget (1976, p. 260) usam o termo plano de vida e consideram que o mesmo é, "em primeiro lugar, uma escala de valores que colocará alguns ideais como subordinados a outros e subordinará os valores meios aos [valores] fins considerados como permanentes". Os autores ao escreverem sobre o desenvolvimento do adolescente, ponderaram que este, a partir de um novo plano de pensamento e de realidade, possibilitado pela aquisição das operações formais, começa a pensar no seu futuro dentro da sociedade, assim como se propõe a reformar a sociedade (parte desta ou totalmente). Nessa perspectiva, o jovem tem condições afetivas e cognitivas de pensar sobre um programa de vida e um plano de reformas que "... são, ao mesmo tempo, o motor afetivo da formação da personalidade" (p. 260). Segundo os autores, no plano de vida há também a afirmação da autonomia, "e a autonomia moral enfim inteiramente conquistada pelo adolescente, que se considera igual aos adultos, é um outro aspecto afetivo essencial da personalidade nascente que se prepara para enfrentar a vida" (p. 260).

Expandindo o entendimento acerca de projetos de vida, Damon (2009) introduziu o conceito de projeto vital (purpose) e o definiu como "uma intenção estável e generalizada de alcançar alguma coisa que é ao mesmo tempo significativa para o eu e gera consequências no mundo além do eu " (p.53 – grifos do autor). Conforme esse autor, tal intenção relaciona-se com "um desejo de fazer diferença no mundo" (p. 54), quiçá fazer contribuições para a sociedade. Através de sua pesquisa com jovens, Damon (2009) identificou as motivações, os desafios e os obstáculos para a elaboração e o engajamento em projetos vitais, alertando para a importância dos adultos e educadores como mentores e motivadores de projetos vitais nobres em uma sociedade competitiva e imediatista. O autor também apontou os benefícios psicológicos quando se tem projetos vitais e, sobre isto, afirmou que "o projeto vital pode organizar toda uma vida, concedendo-lhe não apenas sentido e alegria, como também motivação para aprendizagens e realizações" (p. 55).

Em suma, do ponto de vista ético, os projetos de vida estão vinculados às respostas existenciais à questão "que vida eu quero viver?" (La Taille, 2006, p.36) e relacionam-se às aspirações e objetivos de viver uma vida com sentido que oportunize a expansão de si próprio e a busca e/ou manutenção de representações de si de valor positivo, assim como possibilite a busca da ‘vida boa’ em conexão com o outro, visto como alguém de valor, em uma sociedade justa e igualitária. Em consonância com isso, algumas pesquisas na área da Psicologia da Moralidade procuraram entender tais aspirações e projeções de si em diferentes populações. Nesse seguimento, La Taille e Madeira (2004) estudaram os projetos de vida de jovens do ensino médio de uma escola pública em São Paulo. Os autores tinham como objetivo entender a legitimação de atos de violência na perspectiva da moralidade e constataram que 63% dos adolescentes apresentaram projeções de si autocentradas em que o outro foi mencionado como bem a ser adquirido ou meio de se conseguir algo. Também verificaram que, em 51% das respostas dos participantes, não havia elementos que condenassem claramente o emprego da violência.

Outro estudo com população adolescente foi o de Miranda e Alencar (2011). Para tanto, investigaram a existência de projetos de vida com 24 jovens com idade entre 15 e 20 anos, igualmente divididos em relação ao sexo e classe social (média e baixa). Segundo as autoras, todos os participantes apresentaram estabelecimento de projetos de vida, sendo estes divididos em cinco categorias que abarcavam os ‘bens materiais’ (35,6%), ‘relacionamentos afetivos’ (21,8%), ‘atividade profissional’ (18,5%), ‘formação acadêmica’ (10,4%) e ‘outros’ (13,7%). As justificativas das projeções assinaladas foram categorizadas como Conectados (quando havia inclusão de pessoas, grupos ou instituições de modo a conferir-lhes papéis de protagonismo) ou Desconectados (não consideração de pessoas, grupos ou instituições no estabelecimento de seus projetos de vida ou menção ao outro de forma instrumental). As autoras verificaram que os projetos do tipo Conectado foram frequentes em mais da metade dos discursos dos participantes.

Semelhantemente, Menezes e Trevisol (2014) buscaram entender os projetos de vida de adolescentes no primeiro ano do ensino médio, bem como, se a família, a escola e os amigos tinham alguma interferência sobre tais projeções. Os dados apontaram que os planos de vida mais importantes para os jovens estavam relacionados aos assuntos, em ordem de prioridade, ‘estudar/formar-se’, ‘profissão e emprego’, ‘boa relação com os amigos’, ‘constituir uma família’ e, ‘ser independente’. Outro achado foi que 80% dos adolescentes mencionaram a família como sendo muito importante para a determinação de suas projeções, uma vez que lhes proporcionava apoio, esclarecimentos de metas e foco.

Ainda dentro dessa temática, Felckilcker e Trevisol (2016) investigaram os projetos de vida de alunos do ensino médio de escolas da região Meio-Oeste catarinense e a compreensão destes sobre o papel que a escola exerce em suas projeções. Os dados coletados através de um questionário eletrônico revelaram que os jovens consideram a escola, a época do ensino médio e os processos de estudo como importantes na elaboração de seus projetos de vida. As projeções mais assinaladas foram: ‘continuidade dos estudos’, ‘ter um emprego’ e ‘dedicar-se à vida familiar’. Segundo as autoras, tais projetos foram motivados pelo desejo dos jovens terem estabilidade futura e emprego, bem como pelo anseio em contribuir para a construção de um mundo melhor.

Os projetos de vida de participantes adolescentes também foram investigados por D’Áurea- Tardeli (2011) que, além disso, verificou se a solidariedade estava presente em tais projeções. Os achados indicaram que o outro é incluído, de algum jeito, em 82,32% dos planos futuros dos adolescentes e que as projeções mencionadas se referiam ao desejo de não perder contato com a família atual, construir família (casar e ter filhos) visando um relacionamento feliz e continuar com as amizades vigentes. Os resultados apontaram para uma imaturidade pró-social dos participantes, estes apresentaram representações futuras em que o outro incluído é alguém próximo ou familiar. Segundo a autora, alguns adolescentes (pequena parcela) demonstraram manifestações solidárias. Outrossim, Dellazzana-Zanon (2014) estudou os projetos de vida de adolescentes que cuidavam, bem como, dos que não cuidavam de seus irmãos menores. Os resultados revelaram que os jovens que cuidavam de seus irmãos menores possuíam projetos diferentes dos que não cuidavam, ou seja, apresentaram uma tendência a construir projeções de si associadas à generosidade e à carreira.

Outro público, que teve seus projetos futuros investigados, foi o de adolescentes privados de liberdade. Por meio de um estudo de casos múltiplos, Silveira, Machado, Zappe e Dias (2015) verificaram que os jovens institucionalizados possuíam projeções relacionadas com, em ordem de prioridade, a família, o trabalho, o estudo, a aquisição de bens materiais, a indefinição (projeções sem objetivos claros) e a vingança (projeto de futuro negativo). Constataram que a família tem papel central na elaboração de tais projeções, aparecendo "tanto como fonte de apoio como fator de risco em função de sua própria vulnerabilidade" (p. 59). As autoras salientaram que é preciso que as instituições socioeducativas conheçam os projetos de vida dos jovens privados de liberdade para que possam propor intervenções condizentes com suas projeções, "oferecendo suporte tanto para a (re)construção quanto para a efetivação dos projetos futuros dos jovens institucionalizados" (p. 61).

A população universitária da área da saúde foi foco de investigação de Abreu e Alencar (2013) sobre projetos de vida. Para tanto, as autoras deram ênfase aos projetos profissionais dos participantes e seus motivos para as projeções mencionadas. Abreu e Alencar (2013) concluíram que havia um número reduzido de elementos morais nos argumentos dos participantes e alertaram para a importância de mudanças profundas na formação acadêmica do profissional de saúde para que se possibilite a construção de especialistas com características socialmente relevantes e que alicercem sua prática no comprometimento com a saúde e a vida.

Em relação aos estudos sobre projeções de si em população da educação especial, conhecemos, através da investigação de Andrade, Alencar e Salles (2018, no prelo), os projetos de vida de adultos surdos matriculados no ensino superior. Estes apresentaram projeções relacionadas, em maior número, com os temas ‘atividade profissional’, ‘formação acadêmica’ e ‘relacionamento afetivo’. As justificativas para os projetos foram, na maioria, do tipo ‘autocentrado com reconhecimento de si’ e ‘conectado’, sugerindo dimensão moral e ética nas projeções futuras dos surdos.

Continuando com os estudos com público da educação especial, encontramos o estudo de Bronk, Finch e Talib (2010) que pesquisaram os projetos vitais de adolescentes com superdotação e de seus pares não superdotados, e alegaram que tal estudo foi a primeira pesquisa empírica sobre projetos vitais de superdotados. Os autores fizeram análise e estudo comparativo dos resultados encontrados nas duas populações pesquisadas e afirmaram que tanto os adolescentes superdotados, quanto os não superdotados, apresentaram projeções na mesma proporção. No entanto, os indivíduos com altas habilidades indicaram comprometimento precoce com seus objetivos de vida auto-orientados, que visavam interesses próprios e apontaram diferentes tipos de inspirações para seus projetos. Segundo os autores, tais diferenças em relação aos sujeitos não superdotados podem ser explicadas pelo fato de os adolescentes com AH/SD receberem educação especial que, talvez, de forma implícita, os motive a pensar no seu bem-estar e nos seus interesses pessoais. Diante dos resultados, Bronk et al. (2010) ponderaram necessidade de uma educação para os superdotados que incentive, não somente os projetos de vida auto-orientados, mas também os projetos em que suas habilidades possam ser pensadas para as necessidades sociais.

Além das pesquisas anteriormente apresentadas, na área da moralidade há investigações que contemplam as possíveis diferenças entre os sexos masculino e feminino quanto ao desenvolvimento psicológico e moral. Pioneira em tal estudo foi Gilligan (1982/2003) que apresentou, através de seu livro "In a Different Voice: Psycological Theory and Women’s Development", três estudos fruto de pesquisas feitas com universitários, mulheres grávidas que consideravam o aborto, e com 144 pessoas do sexo feminino e masculino, com idades que variaram entre 6 a 60 anos, sobre direitos e responsabilidades. Os dados foram coletados através de entrevistas com questões e dilemas morais que consideraram as concepções de si e a moralidade. Segundo a autora os dados revelaram que há diferenças entre os sexos no que diz respeito aos relacionamentos, empatia, compaixão e noção de justiça, ou seja, as mulheres teriam uma voz moral diferente dos homens, visto que apresentariam uma preponderância à ética voltada para o cuidado enquanto os homens uma inclinação à ética voltada para a justiça. Gilligan (1982/2003) sugere que tal diferença ocorre devido ao contexto afetivo e cultural em que vivem as meninas/mulheres e ao papel que a sociedade confere ao feminino e ao masculino. A autora alerta para a necessidade de pesquisas na área da moralidade que levem em consideração as diferentes vozes morais de homens e mulheres, e o contexto democrático, mas patriarcal em que coexistem (Gilligan, 2014).

Igualmente aos estudos supracitados, a presente pesquisa objetivou conhecer os projetos de vida e seus motivos em uma população específica, no caso, a de adolescentes superdotados. No que tange tal público, os alunos superdotados são amparados pela Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva [Ministério da Educação (MEC), 2008], que lhes garante educação inclusiva e atendimento especializado suplementar. Nesse sentido, o MEC (2008) considera como superdotado o indivíduo que apresenta potencial elevado na área "intelectual, acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes" (p. 15), podendo essas áreas estarem isoladas ou combinadas, além de apresentar as características de "elevada criatividade, grande envolvimento na aprendizagem e realização de tarefas em áreas de seu interesse" (p. 15). Sendo assim, as pessoas com AH/SD podem ser identificadas como tais, considerando-se as seguintes habilidades: intelectual geral; pensamento criativo; liderança, psicomotoras e/ou talento especial para as artes: plásticas, musicais, dramáticas, literárias ou cênicas (Virgolim, 2007).

A definição supracitada possui elementos teóricos desenvolvidos por Renzulli (2005) em seu ‘Modelo dos Três Anéis’, isto é, segundo tal modelo, interagindo de forma dinâmica, as características de habilidade superior (acima da média), motivação com a tarefa e criatividade resultam nos comportamentos de superdotação (que se desenvolvem em certas pessoas, e de acordo com algumas circunstâncias e momentos de suas vidas). Renzulli (2004, p. 85) pondera que não é necessário que os educandos apresentem todos os três traços para que sejam candidatos ao atendimento especial, bastando somente "serem identificados como capazes de desenvolver essas características".

Outra contribuição de Renzulli (2004, 2005) para o entendimento das altas habilidades é a divisão destas em duas categorias diversas e abrangentes: a superdotação escolar e a criativo-produtiva. Segundo Renzulli (2004), a superdotação escolar (também chamada de habilidade do teste ou da lição de aprendizagem) é aquela facilmente identificada por meio dos testes de inteligência que apontam capacidades apreciadas pela educação tradicional, isto é, as habilidades analíticas. Já a superdotação criativo-produtiva "descreve aqueles aspectos da atividade e do envolvimento humanos nos quais se incentiva o desenvolvimento de ideias, produtos, expressões artísticas originais e áreas do conhecimento que são propositalmente concebidas para ter impacto sobre uma ou mais plateias-alvo" (p. 83). De acordo com Renzulli (2005), nem sempre os testes de inteligência conseguem identificar pessoas com superdotação criativo-produtiva, e é possível um indivíduo apresentar os dois tipos das AH/SD.

Isso posto, verificamos, por meio da revisão bibliográfica para esta pesquisa, que não há estudos que analisem, especificamente, os projetos de vida de adolescentes superdotados no Brasil, com enfoque nas perspectivas moral e ética (como concebidas nesta introdução), e esta situação, dentre outros fatores, despertou nosso interesse em investigar essa população. Assim sendo, após introdução dos principais modelos teóricos e pesquisas norteadoras deste estudo, passaremos à explanação acerca dos métodos, resultados e discussão, e terminaremos com as considerações finais.

Método

Participantes

Entrevistamos 40 adolescentes com indícios das AH/SD, residentes na Grande Vitória – Espírito Santo, igualmente divididos quanto ao sexo e tipo de superdotação (escolar ou criativo-produtiva), com idades que variavam entre 14 e 18 anos (média de 16,02 anos). Os entrevistados eram alunos de escolas públicas, sendo que 4 cursavam o último ano do ensino fundamental e 36 cursavam o ensino médio, bem como frequentavam o núcleo de atendimento ao superdotado ou recebiam atendimento educacional especializado em suas escolas. Os jovens foram selecionados, por conveniência, a partir de um banco de dados com informações sobre os adolescentes em tais instituições.

Também consideramos o referencial teórico de Renzulli (2004, 2005), apresentado na introdução, para selecionar os superdotados nos grupos escolar e criativo-produtivo, para isso tivemos o apoio da equipe pedagógica das instituições mencionadas. As variáveis sexo e tipo de superdotação não foram objetos de estudo da presente investigação, no entanto, dividimos igualmente os participantes quanto ao sexo e tipo de superdotação no intuito de anular possíveis efeitos de tais variáveis. Contudo, será mencionado qualquer dado que aponte qualquer diferença relevante entre os sexos.

Medidas

Fizemos entrevista semiestruturada utilizando o método clínico de Piaget (1932/1994). Para tanto, convidamos o participante a imaginar-se no futuro e responder à questão: ‘Quais os seus projetos de vida?’ Depois, solicitamos que o superdotado justificasse cada projeto listado. Todas as entrevistas foram realizadas individualmente em uma sala do núcleo de atendimento ao superdotado ou da escola do participante ou do projeto/oficina que frequentavam (localizado em uma instituição de nível superior), gravadas em áudio e transcritas na íntegra para posterior categorização e análise dos dados. Todos os participantes, maiores de 18 anos, consentiram sua participação por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para Participação em Pesquisa e os até 17 anos assinaram o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido para Participação em Pesquisa e seus responsáreis o Termo de Consentimento. Esses termos também explicaram os objetivos e a natureza da pesquisa aos participantes e seus pais/responsáveis. As instituições sobreditas deram sua anuência para uso de seu espaço físico e entrevistas com seus alunos por meio da assinatura do Termo de Consentimento Institucional para Realização de Pesquisa.

Procedimento

A permissão para a gravação das entrevistas foi solicitada aos adolescentes e seus pais/responsáveis através dos termos citados. As identidades dos jovens, seus responsáveis e instituições que fazem parte estão devidamente resguardadas de acordo com os padrões éticos do Código de Ética Profissional do Psicólogo [Conselho Federal de Psicologia (CFP), 2005] e Resolução Nº 466 (Conselho Nacional de Saúde, 2012). Portanto, utilizaremos nomes fictícios quando nos referirmos aos participantes durante a discussão dos resultados. Os arquivos com os formulários de assentimentos/consentimentos e outros registros preenchidos, bem como gravações e transcrições das entrevistas estão armazenados e mantidos de acordo com o referido código. Finalmente, a presente investigação faz parte de um projeto de pesquisa aceito pelo Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), campus Goiabeiras, o número do parecer é 1.145.384.

Tratamento dos dados

Os dados foram tratados de forma qualitativa devido à riqueza de informações possibilitadas através do método clínico piagetiano. Referente a este, Queiroz e Lima (2010, pp. 113-114) pontuaram que tal método permite a inclusão de diversas situações na entrevista, tornando-o um instrumento de avaliação "dinâmico, criativo, reflexivo e interessante" para os envolvidos no processo da entrevista (entrevistador e entrevistado). Os autores afirmaram que, para Piaget, "os sujeitos têm uma estrutura de pensamento coerente, constroem representações da realidade à sua volta e revelam isto nas respostas às entrevistas ou em suas ações se for esta a proposta do método no momento.

Isso posto, todos os protocolos das entrevistas transcritas foram lidos com o objetivo de estabelecermos as categorias das respostas e justificativas dos participantes. Depois disso, analisamos as categorias elaboradas, que foram estabelecidas considerando-se os discursos dos participantes e o referencial teórico apresentado na introdução. Posteriormente, as respostas e justificativas foram relidas e conduzidas para as categorias pertinentes por nós, de forma independente. Solicitamos o apoio de um terceiro juiz quando houve discordância. Por fim, adotaremos o percentual de 20% ou mais para apontarmos as diferenças relevantes encontradas nos sexos. Esclarecemos que analisamos a quantidade e tipos de respostas e justificativas dos participantes categorizadas por nós, e que um mesmo entrevistado pode ter mencionado mais de uma resposta e justificativa para os seus projetos de vida.

Resultados e discussão

Os adolescentes deste estudo apresentaram uma diversidade de projeções de si (N= 229), sendo as mais relevantes com os temas ‘formação acadêmica’ (N=57; 24,9%), ‘atividade profissional’ (N=56; 24,5%) e ‘relacionamentos afetivos’ (N=36; 15,7%). Os demais compreendem ‘bens materiais’ (N=26; 11,4%), ‘viajar’ (N=15; 6,5%), ‘morar em outro país/cidade e/ou sozinho’ (N=12; 5,2%), ‘contribuições para sociedade’ (N=11; 4,8%), ‘qualidade de vida’ (N= 10; 4,4%) e ‘hobby’ (N=6; 2,6%). Os achados aproximam-se dos de Menezes e Trevisol (2014), em que os adolescentes estabeleceram, em ordem de prioridade, projetos de vida de estudar/formar-se, possuir profissão e emprego, ter boa relação com os amigos, constituir uma família e, ser independente.

Em nosso estudo, um total de 363 justificativas para os projetos de vida foi mencionado, estas foram agrupadas segundo as seguintes categorias: ‘autocentrado’ (citação de características e/ou interesses pessoais em que não há alusão ao outro semelhante, que não apontam para a expansão de si próprio no mundo e que estão associadas à satisfação pessoal e/ou bem-estar próprio); ‘autocentrado com a possibilidade de expansão de si’ (referência às aspirações, buscas e necessidades de atuar no mundo e de sentido para a vida, corresponde ao sentimento de expansão de si próprio); ‘conectado’ (o outro é mencionado como protagonista e não de forma instrumental, os argumentos revelam conexão com pessoas próximas, sociedade e animais), e ‘sociedade desconectada dos artistas’ (menção à desvalorização profissional dos artistas pelo meio social), ver Tabela 1.

 

 

Os argumentos do tipo ‘autocentrado’ foram os mais presentes nas justificativas dos participantes, expressando a busca por um ganho relacionado à posse de objetos materiais, dinheiro e/ou pessoas; ao reconhecimento pessoal; à beleza física; ao prazer; a viagens de lazer ou turismo; a viver em outro lugar, visando melhorar sua vida; ao bem-estar físico e/ou psicológico; ao interesse/gosto pelo estudo em geral ou determinada área acadêmica, pelas artes e/ou área profissional; ao sucesso particular, e à ambição profissional. O foco está no individual sem qualquer menção ao outro semelhante e de forma a favorecer a reciprocidade e a articular o individual com o coletivo.

Corroboram com os resultados ora discorridos, o estudo de La Taille e Madeira (2004) que constataram que 63% dos adolescentes pesquisados apresentaram projeções autocentradas em que o outro, quando mencionado, o foi com a intenção de posse ou como meio para se adquirir o pretendido. Semelhantemente, Bronk et al. (2010) quando investigaram os projetos vitais de adolescentes superdotados nos Estados Unidos, verificaram que a maioria dos participantes indicou projetos com objetivos auto-orientados, que visavam interesses próprios e o bem-estar pessoal. Os projetos de vida com explicações centradas em si não são entendidos como éticos pela Psicologia da Moralidade (Abreu & Alencar, 2013; D’Áurea-Tardeli, 2011; La Taille, 2006, 2010; La Taille & Madeira, 2004; Miranda & Alencar, 2011), pois não primam pela coletividade, pela equidade e pelo convívio social em instituições justas (La Taille, 2006; Ricoeur, 2014), elementos importantes para o plano ético, entendido como perspectiva da ‘vida boa’ (La Taille, 2006, 2010).

No que tange à relação entre projetos e justificativas do tipo ‘autocentrado’, verificamos que o maior número de argumentos se vincula aos projetos de ‘formação acadêmica’ (N= 77; 30%), ‘atividade profissional’ (N= 76; 30%) e ‘relacionamentos afetivos’ (N= 34; 13%). Portanto, as explanações para a ‘formação acadêmica’ englobam o interesse e/ou o gosto pelo estudo em geral ou por determinada área acadêmica, sendo as áreas de exatas e tecnológicas as mais citadas, bem como apontam para o aperfeiçoamento e/ou continuidade dos estudos por meio de pós-graduações. Muitos participantes assinalaram o estudo como forma de alcançar uma profissão/emprego rentável. Para exemplificar essas explicações, citamos:

Porque sempre quis ser astronauta desde criança, [...]. Sempre gostei de coisas que envolvessem o espaço, as galáxias, tanto que estudo astronomia em casa, leio livros. E quando comecei a ter aulas de física, que foi uma das poucas matérias que vi motivo, eu me dei muito bem com física, tanto que na sala as pessoas sempre falam que sou muito inteligente em física. Quando soube que existe astrofísica, que mistura astronomia física, comecei a ver aulas no YouTube, percebi que é uma coisa muito fácil [...]. Astrofísica é uma coisa que quero, [...]. Todos falam que quem faz faculdade na USP já tem a vida ganha, e pesquisei muito e vi que a USP é a melhor. A maioria das pessoas que faz astrofísica lá, sempre consegue as coisas que quer (José, 17 anos, justificativa para o projeto de fazer faculdade de astrofísica na USP).

Similar a esses achados, Menezes e Trevisol (2014) verificaram que os adolescentes de sua pesquisa escolheram o estudo como primeira opção para os projetos de vida quando indagados sobre o que esperavam da vida. Embora os autores não utilizem o termo ‘autocentrado’, entendemos que as justificativas dos participantes eram centradas em si, pois abarcavam o estudo como possibilidade de, no futuro, conseguir uma estabilidade financeira e uma profissão, assim como alcançar qualificação, "sucesso na carreira profissional; atender às exigências do mercado de trabalho; adequar-se em relação à evolução da tecnologia e à informatização" (p. 17).

Os motivos do tipo ‘autocentrado’ relacionados à ‘atividade profissional’ referem-se ao desejo de possuir um emprego confortável e que proporcione estabilidade financeira, bem como esteja associado à formação acadêmica de nível superior, que possibilite sucesso profissional, bens materiais e emancipação dos pais. Os adolescentes também justificaram suas escolhas baseados no gosto e/ou interesse em determinada profissão que geralmente estava ligada à suas altas habilidades. Neste sentido, como exemplos, mencionamos:

Porque acho a arte bonita. São as nossas manifestações, as variadas formas de manifestações. A gente existe e faz alguma coisa, além de ser como profissão, para ganhar dinheiro, uma coisa que você se expresse. Não uma coisa que já está determinada, tipo trabalhar em loja de sapato que você tem uma função e dessa função não passa. Com a arte não, a arte amplia mais as coisas. Por isso que queria passar mais por esse lado. Não que não passasse pelo outro, mas voltaria mais para o lado artístico (Suely, 18 anos, justificativa para o projeto de seguir a área artística profissionalmente).

Acho que a engenharia é uma boa área para se trabalhar hoje em dia, ou até no futuro, tem um salário bom e não exige muito esforço físico [...] Bom rendimento e salário [...] Salário não é baixo e tipo de trabalho não exige esforço físico (Daniel, 14 anos, justificativa para o projeto de trabalhar na área de engenharia).

Assim como os adolescentes deste estudo, os participantes da pesquisa de Menezes e Trevisol (2014) apontaram elementos centrados em si para as justificativas dos projetos relacionados ao emprego, correlacionando-os ao desejo de "ter seu próprio dinheiro, estabilidade, segurança e, sobretudo, lutar para obter sustentabilidade [...]; saber administrar finanças, direcionando a busca da autonomia [...]" (p. 18). Já os adolescentes privados de liberdade do estudo de Silveira et al. (2015) explicaram a opção pelo tema do ‘trabalho’ nas projeções futuras como forma de se distanciarem da criminalidade, e também apresentaram justificativas que apontavam para seus interesses próprios, relacionadas ao ‘trabalho’ e às habilidades que possuíam, ao gosto e/ou interesse por determinada profissão, no entanto, ao contrário dos participantes desta investigação, mencionaram "atividades que requerem pouco estudo ou qualificação, e provavelmente não são atividades com potencial de levá-los a superar sua condição de exclusão social" (p. 58).

Referente ao supracitado, Damon (2009) salienta que, na sociedade capitalista, competitiva e imediatista em que se vive, pensar na profissão é algo que se tem incentivado nos jovens, mas apenas tendo em vista o preparo para o mercado competitivo e o alcance de "sucesso material rápido" (p. 125). Segundo o autor, muitos jovens, hoje, quando pensam em sua futura profissão, levam em consideração somente os elementos superficiais da vocação, "sem considerar o que estão tentando conquistar e como suas aptidões podem ser úteis para o mundo" (p. 66-67).

No que concerne aos argumentos do tipo ‘autocentrado’ para as projeções referentes aos ‘relacionamentos afetivos’, os adolescentes assinalaram o desejo de ter alguém, filhos ou uma família pelo prazer de possuir o outro, para não ficarem sozinhos, receberem amor, terem alguém para cuidar deles quando idosos, darem continuidade a sua geração e deixarem o seu legado. Portanto, a relação com o outro aparece como unilateral, e esse outro só é mencionado pelo motivo de posse ou como meio de se adquirir o pretendido. Explicações desse tipo podem ser entendidas através dos seguintes relatos: "Porque não quero morrer sozinha e gostaria de deixar meu legado para alguém" (Mônica, 16 anos, justificativa para o projeto de "formar uma família"); e, "Acho que é essencial. Objetivo maior que as pessoas têm, é crescer e perpetuar a espécie. Seria no sentido de não me sentir bem me imaginando de passar a vida sozinho" (Lucas, 16 anos, justificativa para o projeto de "ter uma família").

Os adolescentes do estudo de La Taille e Madeira (2004) também apresentaram projetos autocentrados em que o outro foi mencionado como algo a ser possuído ou forma de se conseguir o almejado. Os motivos que falam de relacionamento unilateral em que o outro não é mencionado de forma que sua alteridade e humanidade sejam considerados, não são éticos (La Taille, 2006). Relações desprovidas de cooperação, equidade e reciprocidade são sintomas de uma sociedade competitiva, consumista, imediatista, de relacionamentos frágeis e descartáveis, em que o outro é entendido como mercadoria por um ‘sujeito líquido’ vivendo em uma ‘modernidade líquida’ (Bauman, 1925/2001).

Continuando com a análise, a categoria ‘conectado’ foi a segunda com maior soma de justificativas. As explicações para as projeções destacam conexões com a sociedade (das 85 explanações conectadas, 43, isto é, 51%, referiam-se à sociedade), em que o outro e/ou grupo de pessoas não tem contato imediato e afetivo com o participante, sendo, muitas vezes, um desconhecido e necessitado em várias esferas. As explicações referem-se a querer ajudar psicologicamente, socialmente, fisicamente, juridicamente e financeiramente o semelhante (individualmente ou em grupo), bem como motivá-lo para a vida, buscando melhor comunicação com o que é diferente, falando em respeito, boa interação e optando pela especialização em nível superior (principalmente na área da saúde, da educação e da arte) como forma de contribuir com a sociedade. Nesse sentido, houve menção à criação de projetos sociais, organizações não-governamentais (ONGs), software aplicativo gratuito para auxílio na área da saúde, ajuda à humanidade em questões de locomoção, segurança, trânsito e poluição.

Além das justificativas que indicavam conexões com a sociedade, os superdotados apresentaram argumentos conectados com pessoas próximas (N= 39; 46%), que expressavam o objetivo de retribuir amor, cuidado e ajuda financeira, principalmente aos pais (família existente); dividir a vida com alguém, ter filhos, oferecer-lhes qualidade de vida, boas condições financeiras e boa educação (família futura), bem como compartilhar momentos agradáveis e de ajuda com os amigos; e, com elementos de conexão com os animais (N= 3; 3%), indicando o desejo de oferecer amor, de especializar-se em nível superior para melhor atendê-los, mostrando consciência da necessidade de acolhimento, cuidado e preservação dos animais.

Assim como os participantes deste estudo, os adolescentes da pesquisa de Miranda e Alencar (2011, p. 518) também apontaram justificativas do tipo ‘Conectada com a sociedade’ e com pessoas próximas (família, filhos ou grupo de pessoas com papéis centrais para os participantes, no caso, a categoria foi nomeada como ‘Conectada com um grupo’), assinalando que fatores sociais ou dos grupos, nos quais os adolescentes estão inseridos, são levados em conta quando da escolha e importância de suas projeções. Logo, projetos de vida, com argumentos de conexão com o outro, são considerados éticos dentro do corpo teórico da Psicologia da Moralidade, pois o semelhante é pensado levando em consideração suas necessidades, sua condição humana e alteridade; em que a busca pela felicidade e ‘vida boa’, plano ético, inclui o outro em instituições justas (Abreu & Alencar, 2013; D’Áurea-Tardeli, 2011; La Taille, 2006, 2010; La Taille & Madeira, 2004; Miranda & Alencar, 2011). Os motivos do tipo ‘conectado’ parecem responder à pergunta ética "que vida eu quero viver?" (La Taille, 2006, p.36), sugerindo consciência e importância do papel dos participantes na relação consigo mesmos, com os outros e com o mundo, neste, inclusos os animais.

No que diz respeito à correspondência entre projetos e justificativas conectadas, notamos que o maior número de motivos tem ligação com os projetos de ‘relacionamentos afetivos’ (N=25; 29%), ‘contribuições para a sociedade’ (N=14; 16%) e ‘atividade profissional’ (N=13; 15%). Desse modo, os argumentos do tipo ‘conectado’, para os projetos de ‘relacionamentos afetivos’, vinculam-se, em similar proporção, à família existente (principalmente pais/mães, mas também irmãs/ irmãos e sobrinhos) e à família futura (esposo/esposa ou companheiro/ companheira e filhos); em menor número, houve argumentos com menção aos amigos (expressando desejo de compartilhar momentos de lazer e oferecer amizade em circunstâncias difíceis).

Em relação aos motivos com alusão à família existente, as justificativas estavam associadas à retribuição do amor recebido, com destaque para os pais/mães, anseio de ajudar financeiramente e providenciar amparo nos momentos de necessidades e velhice, assim como, contribuir com a compra de bens materiais, sobretudo casa/apartamento, compartilhar momentos de alegria e lazer, e estar por perto diante de situações importantes da vida dos familiares. Já no tocante à família futura, a maioria dos argumentos dos participantes referiam-se à vontade de casar para compartilhar amor, cuidado, dificuldades e alegrias com o outro, além de ter filhos biológicos ou adotados com este outro; alguns participantes mencionaram o objetivo de ter filhos com o intuito de formar cidadãos, oferecer boa educação formal e qualidade de vida. Para ilustrar, apresentamos os seguintes depoimentos: "Porque eles fazem por mim, penso em ajudá-los futuramente, no caso, eles me dão muita coisa e também muito amor, e quero retribuir" (Carla, 16 anos, justificativa para o projeto de "ajudar os pais financeiramente").

[...] quero compartilhar minha vida com alguém e ter filhos com essa pessoa, construir uma família e compartilharmos amor e enfrentarmos os momentos difíceis juntos, tipo, enfermidade, desemprego ou alguma dificuldade financeira, isso juntos, com companheirismo e amor (Paulo, 18 anos, justificativa para o projeto de ter uma família).

Os achados de D’Áurea-Tardeli (2011), concernentes às justificativas conectadas para os projetos de vida de adolescentes, aproximam-se dos deste estudo no que diz respeito à família futura, ou seja, a autora afirmou que grande parte dos argumentos de seus participantes eram expressões de desejo de construir família (casar e ter filhos). Já os dados sobre a família existente e os amigos apareceram em menor proporção. Outrossim, os adolescentes pesquisados por Menezes e Trevisol (2014) elegeram ‘constituir família’ como quarta prioridade quando questionados sobre o que esperavam da vida, e os motivos conectados para isso concernem à amizade e ao compartilhar momentos da vida. Tais participantes também assinalaram a interferência que a família existente tem sobre suas projeções, ou seja, 80% dos adolescentes indicaram como muito importante a influência da família para a elaboração de seus projetos futuros, uma vez que ela proporciona apoio nas dificuldades, incentivo para o melhoramento pessoal, foco e esclarecimentos de metas.

Por conseguinte, Menezes e Trevisol (2014, p. 14-15) afirmaram que, inicialmente, é na família existente, através da relação doméstica, "que se vinculam os primeiros passos de uma educação moral e dos valores, de exemplos de convivência social e de amizade, que estarão na base do convívio com outros indivíduos". Destarte, os estudos em questão sugerem que a afetividade marcada por elementos de reciprocidade, companheirismo, cuidado, amor e retribuição, está presente nos juízos de adolescentes, bem como parece responder ao questionamento existencial "que vida eu quero viver?" (La Taille, 2006, p.36) e apontam para a dimensão moral e ética de seus projetos de vida.

Ainda dentro da categoria do tipo ‘conectado’, as justificativas para os projetos de vida com a temática ‘contribuições para sociedade’ estavam vinculadas ao anseio de criar projetos sociais e artísticos para jovens e crianças em situação de risco pessoal e social; ONGs para pessoas com algum tipo de necessidade; software aplicativo para promoção de saúde; colaborar para a solução de problemas de trânsito e poluição nas cidades; e, contribuir com a humanidade através de uma invenção que proporcionasse conforto, melhor locomoção e utilização do tempo, segurança e bem-estar para as pessoas. Nessa acepção, destacamos as seguintes considerações: "Criar alguma coisa que pudesse estar no dia a dia das pessoas, alguma coisa que facilitasse a locomoção, alguma coisa que desse mais segurança para as pessoas, então isso ia ajudar realmente a humanidade" (Heitor, 17 anos, justificativa para o projeto de "fazer algo para a humanidade, uma invenção que proporcionasse uma vida melhor para as pessoas").

Porque a gente sabe que violência, que droga, tudo isso acaba com os adolescentes, mas aí com essas ONG’s, com esses projetos, sempre está ajudando a manter um equilíbrio nas coisas. Tem coisa ruim? Tem, mas a gente também está ajudando. Então vai melhorando, vai dando opção para a pessoa realmente escolher, porque a gente sabe que tem muita gente que está no crime, que está em uma coisa ruim porque não teve opção. (Michele, 17 anos, justificativa para o projeto de ter um trabalho voluntário ou participar de uma ONG).

Assim como neste estudo, os jovens da pesquisa de Felckilcker e Trevisol (2016) também assinalaram como importantes a construção de um mundo melhor (nomeados ‘projetos sociais’) em suas projeções. Nessa perspectiva, dos 103 adolescentes estudados, mais da metade assinalou como extremamente importante ou muito importante "fazer algo para construir um mundo melhor" (p. 43) e "lutar contra o preconceito e a discriminação" (p. 43), enquanto cerca de 42 jovens apontaram "dedicar-se a serviços voluntários" (p. 43) com tais níveis de importância.

Os projetos de vida, dentro do assunto ‘contribuições para sociedade’ ou ‘projetos sociais’, bem como seus motivos do tipo ‘conectado’, podem ser considerados como projetos vitais nobres, complexos e ambiciosos (Damon, 2009), uma vez que estão para além do mundo do eu, embora ainda significativo para este eu (Damon, 2009), e perpassam o âmbito das relações familiares e de amizade, expressando "um desejo de fazer diferença no mundo, de realizar algo de sua autoria que possa contribuir para a sociedade" (Damon, 2009, p. 14). Segundo Damon (2009), o projeto vital capacita a pessoa com resiliência para enfrentar os momentos ruins da vida e com alegria para os bons. O autor afirma ainda que "uma juventude motivada por projetos vitais não apenas evita os riscos do comportamento autodestrutivo como também demonstra uma atitude notavelmente positiva que desperta a avidez por conhecer o mundo" (p. 52).

Outro tema frequente, nos projetos vitais com argumentos conectados, foi ‘atividade profissional’, em que a maioria das justificativas relaciona-se com o anseio de utilizar a profissão para melhor acolher e ajudar o outro psicológica, física e juridicamente, já as demais associam-se à vontade de amparar financeiramente os pais, proporcionar qualidade de vida aos filhos que ainda virão, bem como, fazem menção ao gosto pelo respeito ao próximo e querer o bem-estar/felicidade do semelhante. Como exemplo desses tipos de argumentos, citamos:

[...] vejo certos livros, certos escritores que passaram ou passam por situações parecidas assim como a minha e vejo que eu poderia de alguma forma estar mostrando para aquela pessoa que ela não é a única que pensa daquele jeito, abrindo a mente dela para novas ideias, até para ajudar ela em alguma questão da vida dela, essas coisas... (Angélica, 17 anos, justificativa para o projeto de ser escritora).

Semelhantemente a esses dados, os adolescentes cuidadores de seus irmãos menores da pesquisa de Dellazzana-Zanon (2014), também apontaram como motivação para seus projetos de vida, a vontade de ajudar outras pessoas através da profissão que almejam praticar no futuro. Neste sentido, Damon (2009, p. 20) pondera que

"No mundo real da competição, dos requisitos de emprego e das responsabilidades sociais, "de que jeito – pensa o jovem – posso encontrar algo que seja tão gratificante quanto significativo? Como posso ir atrás dos meus sonhos e evitar ‘me vender’ sem diminuir minhas chances de sustentar a mim mesmo e à família que gostaria de ter? Como posso ganhar a vida como um membro valorizado da sociedade e fazer diferença no mundo?" Essas são questões que cedo ou tarde todo jovem deve confrontar a fim de fazer escolhas mais cruciais" (Damon, 2009, p. 20).

Referente ao exposto por Damon (2009), alguns adolescentes desta investigação e da de Dellazzana-Zanon (2014), parecem lidar com suas possíveis inquietações juvenis associadas à profissão e à responsabilidade social, desejando, através da atividade profissional, não só adquirir recursos para o sustento próprio, mas também fazer sua parte no mundo, ajudando o semelhante por meio da profissão que anseiam no futuro, indicando planos de ‘vida boa’ com o outro em instituições justas (La Taille, 2006).

Prosseguindo com a exposição dos resultados e a discussão, outra categoria presente nas justificativas dos participantes foi a do tipo ‘autocentrado com a possibilidade de expansão de si’, em que o desejo de agregar conhecimento cultural e pessoal foi manifestado pelos jovens, assim como a busca pela felicidade, sabedoria e o anseio de viver uma vida com sentido, elementos que indicam o sentimento de expansão de si. Embora tal categoria também seja centrada em si, seus motivos são qualitativamente diferentes dos puramente do tipo ‘autocentrado’, uma vez que suas justificativas se relacionam com os questionamentos "quem eu quero ser?" (La Taille, 2006, p. 46) e "que vida eu quero viver?" (p. 36).

Projetos de vida ligados ao desejo de viver uma vida que valha a pena e que possibilite a expansão de si próprio são éticos, visto que estão relacionados à busca e pretensão de viver uma ‘vida boa’ que possibilite a expansão de si próprio, apontando para o reconhecimento de si, ou seja, autorrespeito e a potencialidade de inclusão do outro na busca de uma vida com sentido, pois só respeita o outro quem assim o faz consigo mesmo (La Taille, 2006). As explicações que apontam para o sentimento de expansão de si foram pouco frequentes nos argumentos dos superdotados desta pesquisa, mas apareceram em todos os grupos e com similar percentagem. Contrapõem-se a este dado, o estudo de Andrade et al. (2018, no prelo) com participantes surdos, em que estes manifestaram número relevante de explicações com o reconhecimento de si para seus projetos, tal achado, agregado aos motivos com conexão com o outro, sugeriram que os adultos surdos exibiram, em sua maioria, projetos de vida na perspectiva da moral e ética.

Mais da metade dos motivos centrados em si com potencialidade de expansão própria relacionam-se aos projetos de ‘viajar’ (N= 12; 52%), como pode ser depreendido na fala de Cristóvão (16 anos, justificativa para o projeto de "viajar para o exterior"): "Acho interessante, acho produtivo... no sentido de agregar conhecimento o fato de você conhecer um pouco de cada país, cada cultura"; e de Érica (16 anos, justificativa para o projeto de "viajar pelo Brasil"):

Porque o Brasil é muito grande e muito bonito, a gente precisa conhecer essas coisas. É importante viajar. Quando você viaja, você tem uma perspectiva totalmente diferente, você vê outra cultura, outras pessoas... Não que tem que ser assim, mas viagem boa é a que te mostra que você pode ser uma pessoa melhor... melhor com os outros, melhor com você mesma, melhorar todas as suas qualidades, rever alguns defeitos.

Assim como os adolescentes com comportamentos de superdotação desta investigação, os participantes do estudo de Miranda e Alencar (2011) apresentaram projetos de ‘viajar’ que juntamente com outros projetos de menor número, compuseram a categoria ‘Outros Projetos’, porém, não se encontrou na exposição dos resultados pelas autoras, elementos que apontassem para a expansão de si nos projetos de viajar. Miranda e Alencar (2011) mencionaram que uma participante considerou como menos importante ‘viajar’, demonstrando que a pouca frequência ou ausência de tal projeção não teria grandes impactos para o seu ser. Embora não tão relevantes em número como os motivos autocentrados e conectados, as justificativas do tipo ‘autocentrado com a possibilidade de expansão de si’ sugerem que alguns adolescentes desta pesquisa reconhecem a necessidade de atuar no mundo, agregando conhecimento para si e para entender o outro, buscando autoconhecimento e expansão de si no mundo com potencialidade de inclusão do outro.

Apesar do exposto acima, os resultados da presente investigação evidenciam forte presença de explicações do tipo ‘autocentrado’. Esse dado indica que grande parte dos projetos de vida dos adolescentes com altas habilidades desta pesquisa não possuem a perspectiva ética. Ainda assim, existem conteúdos éticos e morais nos argumentos do tipo ‘conectado’ e ‘autocentrado com a possibilidade de expansão de si’ (N= 108; 29,7%), fato que indica que os jovens deste estudo, ainda que auto-orientados e focados em seus interesses próprios e bem-estar pessoal quando falam sobre suas projeções futuras [como os superdotados da pesquisa de Bronk et al. (2010)], possuem elementos que apontam para a potencialidade de expansão de si no mundo e de inclusão do outro em seus projetos de vida, isso com vistas a convivência em sociedade de instituições justas.

No que concerne aos possíveis motivos para a predominância de projetos de vida do tipo ‘autocentrado’ em jovens superdotados, Bronk et al. (2010) sugerem que tal achado pode estar relacionado ao fato de receberem educação especializada que, implicitamente, os incentive a pensar no bem-estar e interesses pessoais. Ampliando tal visão, podemos encontrar uma das possíveis respostas sobre tal fenômeno nos estudos de Damon (2009) que afirma que o grande empecilho na busca de projetos vitais entre os jovens é a cultura imediatista. Nesse sentido, "mesclando busca de status, consumismo, insegurança, autopromoção e valores superficiais, os agentes da atual cultura pressionam os jovens a perseguir vitórias imediatistas, em detrimento de aspirações duradouras" (p. 123). O autor enfatiza ainda que, no mundo competitivo de hoje, os jovens estão direcionados ao "desejo bitolado de ganho material e segurança financeira" (p. 124).

Para encerrar esta seção, mencionamos que, na categoria do tipo ‘Sociedade desconectada dos artistas’, a justificativa relacionava-se ao projeto de ‘contribuições para a sociedade’, em que uma adolescente almejava, através da arte, contribuir para que o talento artístico fosse valorizado pela maioria das pessoas. A explicação para tal projeção pode ser lida no trecho a seguir:

Não digo só o meu, digo de todos no meio artístico porque conheço pessoas que tentam vender seu desenho, tentam vender sua arte, tentam mostrar, e as pessoas não valorizam. Tem pessoas que fazem pintura na tela, que as pessoas descrevem como rabiscos, e dizem que aquilo não é arte. Há pessoas que sabem valorizar, mas muitas pessoas, muitas pessoas mesmo assim, que não sabem valorizar aquilo, acham que aquilo é apenas para olhar, não compensa pagar, não compensa valorizar o sentimento da pessoa que ela usou naquele quadro, o talento que ela teve (Kelly, 16 anos).

Semelhantemente, alguns participantes da pesquisa de Andrade et al. (2018, no prelo) também indicaram explicações do tipo ‘Sociedade desconectada’ para alguns projetos de vida, porém tal desconexão estava vinculada à segregação social sofrida pelo surdo devido sua singularidade linguística. Justificativas desse tipo sugerem indignação com o modo como algumas pessoas são percebidas e tratadas pela sociedade atual, que não acolhe e aceita àqueles com condições linguísticas que são diferentes da perspectiva oralista e outros cuja profissão não é valorizada pelo mercado de trabalho pós-moderno. São pessoas/profissões com diferenças que vão de encontro com a visão imediatista, individualista, de relacionamentos frágeis e descartáveis do mundo atual. Esses jovens alertam para a importância de a sociedade respeitar a dignidade humana e a alteridade em todos os seus segmentos sociais, tendo em vista a manutenção do sujeito de direito e a boa convivência em sociedade, elementos essenciais na busca pela ‘vida boa’ (La Taille, 2006).

No que diz respeito às diferenças relevantes entre os sexos em nosso estudo, encontramos que o grupo das adolescentes apresentou 59% de suas explanações como autocentradas, enquanto os rapazes exibiram um percentual de 80.5%, e que o grupo feminino apresentou maior porcentagem de explicações conectadas com o outro em seus argumentos (33%), enquanto o masculino exibiu um percentual de 13,3%. Similar aos nossos achados, D’Áurea-Tardeli (2011) em seu estudo sobre solidariedade e projeto de vida com adolescentes, encontrou que 8.11% das jovens de seu estudo e 29.89% dos meninos apontaram projetos de vida sem consideração pelo outro, já no quesito projetos de vida conectados, 91.89% das adolescentes e 70.11% dos rapazes pesquisados incluíram o outro em seus projetos de vida.

Quando consideramos o total de justificativas éticas (motivos conectados e do tipo ‘autocentrado com a possibilidade de expansão de si) e não éticas (explanações do tipo ‘autocentrado’) nos argumentos dos superdotados, encontramos também diferenças relevantes quanto aos sexos, sendo que as adolescentes apresentaram 40% de explanações éticas e 59% não éticas contra 19% de motivos éticos e 80% não éticos dos rapazes. De acordo com a pesquisa de Gilligan (1982/2003), que apontou diferenças na consideração do outro e julgamentos morais entre os sexos, as mulheres são mais empáticas, ligadas à sentimentos de compaixão, bem como priorizam os relacionamentos interpessoais e o cuidado com o outro.

Fato que fez a autora afirmar que homens e mulheres possuem vozes morais diferentes, sendo os primeiros voltados, principalmente, para a noção de justiça e as mulheres à ética do cuidado. No entanto, Gilligan (1982/2003, 2014) pondera que o contexto afetivo e cultural em que vivem pessoas do sexo feminino e o papel ‘feminino’ e ‘masculino’ defendido pela sociedade democrática, mas ainda patriarcal, são os responsáveis pelas diferenças mencionadas em seus estudos. Isso posto, passaremos às considerações finais.

Considerações finais

Os resultados do presente estudo evidenciam forte presença de projetos de vida com motivos do tipo ‘autocentrado’, fato que sugere que a maioria das projeções dos participantes superdotados não possuem a perspectiva ética, revelando projetos auto-orientados, vinculados, principalmente, à busca por um ganho material e/ou por pessoas; sucesso/ ambição profissional, ao bem-estar pessoal e ao interesse/gosto pelo estudo em geral ou determinada área acadêmica, pelas artes e/ou pela área profissional. Os resultados podem estar relacionados com a cultura imediatista, consumista, competitiva e de valores superficiais da sociedade atual que influencia os jovens a desejarem o ganho material, sucesso pessoal e segurança financeira (Damon, 2009).

Os conteúdos éticos e morais apareceram nos projetos com justificativas do tipo ‘conectado’ e ‘autocentrado com a possibilidade de expansão de si’, mas em menor porcentagem. Apesar disso, a presença de tais categorias nas explanações dos jovens deste estudo, sugere potencialidade destes de possuírem representações de si positivas e de se relacionarem com o outro, considerando uma sociedade mais igualitária e com equidade.

No que diz respeito às diferenças relevantes entre os sexos, os achados indicam que o grupo feminino apresentou maior número de justificativas éticas e menor número de explanações não éticas quando comparado com o grupo masculino. A literatura dá suporte à tal achado através dos estudos de Gilligan (1982/2003, 2014) que apontam para diferenças na conexão com o outro e julgamentos morais entre homens e mulheres, sendo que estas últimas tem uma preponderância à ética do cuidado, em que sentimentos de compaixão, empatia e consideração do outro nos relacionamentos estão presentes, e os homens vinculados, principalmente, à ética da justiça. No entanto, sugerimos pesquisas futuras com maior número de participantes, de ambos os sexos, para verificar se os nossos achados e os de Gilligan quanto as diferenças relevantes entre os sexos se mantêm. Tal sugestão quanto ao número maior de participantes aponta uma das limitações de nosso estudo.

Outra limitação da nossa pesquisa foi a não condução da investigação em dois diferentes períodos, com intervalo de pelo menos um ano, por causa disso, não foi possível conhecer possíveis mudanças, ou não, dos tipos de projetos de vida dos superdotados e se as justificativas para tais projeções manteriam, ou não, em sua maioria, a perspectiva não ética. Apesar disso, nossa investigação, com os devidos ajustes, pode ser reproduzida com outros públicos da educação especial, como deficientes visuais, e também com adolescentes indígenas, de comunidades quilombola ou jovens em tratamento de doenças crônicas (diabetes tipo 1 ou epilepsia, entre outras). Por fim, esperamos que o estudo coopere com ações psicopedagógicas que contemplem particularidades do desenvolvimento de adolescentes, principalmente o moral, motivem a criação de projetos de vida éticos, e considerem as virtudes morais para uma educação pautada na moral e na ética.

 

REFERÊNCIAS

Abreu, E. F. de & Alencar, H. M. de (2013). Projetos de vida e profissional: um estudo com universitários da área da saúde. Psicologia da Educação, 35, 144-170. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-69752012000200008.

Andrade, A. N., Alencar, H. M. de & Salles, A. M. B. (2018, no prelo). Projeções de Si no Futuro de Universitários e Egressos Surdos. Manuscrito submetido para publicação.

Bauman, Z. (1925/2001). Modernidade Líquida. (P. Dentzien, trad.). Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Bronk, K. C., Finch, W. H. & Talib, T. L. (2010). Purpose in life among high ability adolescents. High Ability Studies, 21(2), 133-145. https://doi.org/10.1080/13598139.2010.525339.         [ Links ]

Conselho Federal de Psicologia. (2005). Código de Ética Profissional do Psicólogo. Recuperado de http://www.crpsp.org.br/portal/orientacao/codigo/fr_codigo_etica_new.aspx.         [ Links ]

Conselho Nacional de Saúde. (2012). Resolução Nº 466. Recuperado de http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf.         [ Links ]

D’Áurea-Tardeli, D. (2011). Projeto de vida solidário. In D. D’Áurea-Tardeli, Solidariedade e projeto de vida: A construção da personalidade moral do adolescente (pp. 95-135). Campinas, SP: Mercado de Letras.

Damon, W. (2008/2009) O que o jovem quer da vida? Como pais e professores podem orientar e motivar os adolescentes. (J. Valpassos, trad.). São Paulo: Summus.         [ Links ]

Dellazzana-Zanon, L. L. (2014). Projetos de vida na adolescência: Comparação entre adolescentes que cuidam e que não cuidam de seus irmãos menores (Tese de Doutorado não publicada). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,         [ Links ] Brasil.

Ferreira, A. B. de H. (1986). Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (ed. revista e ampliada). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.         [ Links ]

Gilligan, C. (1982/2003). In a Different Voice: Psycological Theory and Women’s Development. Cambridge, MA: Harvard University Press.

Gilligan, C. (2014). Moral injury and the ethic of care: reframing the conversation about diferences. Journal of Social Philosophy, 45 (1), 89-106. https://doi.org/10.1111/josp.12050.         [ Links ]

Inhelder, B. & Piaget, J. (1976). O pensamento do adolescente. In B. Inhelder & J. Piaget, Da lógica da criança à lógica do adolescente: Ensaio sobre a construção das estruturas operatórias formais (D. M. Leite, rrad.) (pp. 249-260). São Paulo, SP: Livraria Pioneira.

Felckilcker, J. B. & Trevisol, M. T. C. (2016). Ensino médio e os projetos de vida dos adolescentes da região Meio-Oeste catarinense. Unoesc & Ciência - ACHS Joaçaba, 7(1), 39-46. Recuperado de https://editora.unoesc.edu.br/index.php/achs/article/view/10102/pdf.         [ Links ]

La Taille, Y. (2006). Moral e ética: Dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre, RS: Artmed.         [ Links ]

La Taille, Y. (2010). Moral e Ética: Uma leitura psicológica. Psicologia Teoria e Pesquisa, 26 [num. esp.], 105-114. https://doi.org/10.1590/S0102-37722010000500009.         [ Links ]

La Taille, Y. de & Madeira, E. (2004). Moralidade e violência: A questão da legitimação de atos violentos. São Paulo, SP: Fapesp.         [ Links ]

Menezes, L. O. & Trevisol, M. T. C. (2014). Adolescentes e projetos de vida: um estudo com alunos do 1º ano do ensino médio. Leopoldianum, 40 (110/111/112), 13-24. Recuperado de http://periodicos.unisantos.br/leopoldianum/article/view/479/440.         [ Links ]

Ministério da Educação (2008). Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf.         [ Links ]

Miranda, F. H. de F. & Alencar, H. M. de. (2011). Moral e ética: a importância dos projetos de vida. In Anais do II Congresso de Pesquisas em Psicologia e Educação Moral (p. 511). Campinas, SP. Recuperado de http://www.coppem.fe.unicamp.br/sites/www.coppem.fe.unicamp.br/files/32-fernanda-helena-de-freitas-miranda-1.pdf.

Piaget, J. (1952/1994). O juízo moral na criança (E. Leonardon, trad.). São Paulo, SP: Summus.         [ Links ]

Queiroz, K. J. M., & Lima, V. A. A. (2010). Método Clínico piagetiano nos estudos sobre Psicologia Moral: O uso de dilemas. Schème, 3(5), 110-131. Recuperado de http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/scheme/article/view/1970/1622.         [ Links ]

Rech, A. J. D. & Freitas, S. N. (2005). O papel do professor adjunto ao aluno com Altas Habilidades. Revista Educação Especial, 25, 1-7. Recuperado de http://coralx.ufsm.br/revce/ceesp/2005/01/a5.htm.         [ Links ]

Renzulli, J. S. (2004). O que é esta coisa chamada superdotação, e como a desenvolvemos? Uma retrospectiva de vinte e cinco anos. Revista Educação, 53(1), 75-131. Recuperado de http://revistaseletronicas.pucrs.br/fo/ojs/index.php/faced/article/view/375/272.         [ Links ]

Renzulli, J. S. (2005). The Three-Ring conception of giftedness. A developmental model for promoting creative productivity. In R. J. Sternberg & J. E. Davidson (Eds.), Conceptions of giftedness (2a ed.) (pp. 246-279). New York, NY: Cambridge University Press.

Ricoeur, P. (2014). O si e a visada ética. In P. Ricoeur, O si-mesmo como um outro (I. C. Benedetti, trad.) (pp. 183-225). São Paulo, SP: WMF Martins Fontes.

Silveira, K. S. da S., Machado, J. C., Zappe, J. G., & Dias, A. C. G. (2015). Projetos futuros de adolescentes privados de liberdade: implicações para o processo socioeducativo. Revista Psicologia: Teoria e Prática, 17(2), 52-63. https://doi.org/10.15348/19806906/psicologia.v17n2p52-63.         [ Links ]

Tognetta, L. R. P., & La Taille, Y. (2008). A formação de personalidades éticas: Representações de si e moral. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 24(2), 181-188. https://doi.org/10.1590/S0102-37722008000200007.         [ Links ]

Virgolim, A. M. R. (2007). Altas Habilidades/Superdotação: Encorajando potenciais. Brasília, DF: MEC/SEESP. Recuperado de http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/altashab1.pdf.         [ Links ]

 

Recibido: 10 de julio, 2017
Revisado: 21 de marzo, 2018
Aceptado: 26 de marzo, 2018

 

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License