As novas configurações do mercado de trabalho e da economia mundial impuseram relações mais estreitas entre dimensões da vida profissional e familiar (Lapierre et al., 2017; Silveira & Bendassolli, 2018), repercutindo novas formas de trabalho, bem como um crescente número de pessoas que sofrem os efeitos negativos do conflito trabalho-família (Moen et al., 2015; Rozanti & Salmiah, 2014). Dificuldade em atender as demandas familiares, horas excessivas de trabalho, estresse laboral, contratos de trabalho de duração limitada, cobranças organizacionais estão entre os fatores que contribuem para presença do tensionamento entre trabalho e família, bem como outros consequentes negativos referente ao conflito entre papeis relacionados às dimensões trabalho e não trabalho (Allen et al., 2018).
O interesse no entendimento da relação entre trabalho e família é importante tanto para as organizações, quanto para famílias, profissionais e sociedade (Amstad et al., 2011; Moen et al., 2015; Omar, 2018). Num momento no qual fatores econômicos e empresariais guiam a vida das pessoas, empresas e nações, a dedicação ao trabalho e à carreira, sem prejuízo para as relações familiares, é um desafio para gestores e pesquisadores acadêmicos (Carvalho et al., 2018). Pesquisas sobre o conflito trabalho-família apontam sua relação com problemas de saúde física e satisfação com a vida (Brown, 2014; Shockley & Allen, 2013), conflitos interpessoais com supervisores e colegas de trabalho (Ghislieri et al., 2017), problemas no casamentos (Carroll et al., 2013), além da interferência na dedicação à educação e criação dos filhos (Borelli et al., 2017).
O estudo do conflito trabalho-família insere-se na perspectiva dos múltiplos papeis que o indivíduo desempenha no seu ciclo de vida e na sociedade (Greenhaus & Beutell, 1985; Weer & Greenhaus, 2014), bem como na concepção de uma quantidade limitada de recursos individuais para desempenhar atividades e demandas dos diferentes papeis nos quais a pessoa insere-se (Hobfoll, 1989; ten Brummelhuis & Bakker, 2012). Dentro destes pressupostos, o indivíduo não tem capacidade infinita de gerar recurso e energia para desempenhar todas os papeis de sua vida em situação de otimização ou demanda, de modo que o excesso de investimento em diferentes papeis ao longo do tempo potencializa vivências de estresse (Chen et al., 2015).
O construto conflito trabalho-família está baseado em dois eixos teóricos são eles: a natureza do bidirecionamento dos papeis da vida (trabalho e família) e a natureza multidimensional desta relação (Greenhaus & Beutell, 1985). O primeiro eixo afirma que os papeis do trabalho pode afetar o desempenho dos papeis familiares (TIF), assim como a família pode interferir e dificultar os aspectos de trabalho (FIT) (Aguiar & Bastos, 2017; Carlson et al., 2000). O segundo eixo teórico, que diz respeito a multidimensionalidade, aponta três facetas como fonte de conflito: a) tempo (o investimento excessivo de tempo em demandas de trabalho ou família afastam o indivíduo das responsabilidades do outro papel); b) comportamento (investimento demasiado em um domínio, podem afetar o desempenho adequado em outro) e; c) tensão, representada por repercussões negativas e tensionamento entre o investimento desequilibrado entre trabalho e família.
A literatura mostra que o conflito trabalho-família possui relação com diferentes aspectos da vida externa ao trabalho, como por exemplo, qualidade do relacionamento amoroso. Mas tal conflito é também associado com variáveis próprias do trabalho, motivo que preocupa organizações, uma vez que a ligação entre trabalho e família é capaz de influenciar tanto o desempenho organizacional, quanto o funcionamento familiar (conflito, educação dos filhos) (Derks et al., 2015; Richter et al., 2015; Soomro et al., 2018).
Dimensões organizacionais e trabalho em contexto hospitalar
As vivências do contexto hospitalar comumente associam-se com dimensões de sofrimento, perda, tristeza, adoecimento e terminalidade (Moreira et al., 2012). Tais aspectos produzem efeitos também entre os trabalhadores de hospitais, que terão que lidar com esses sentimentos dos usuários e seus familiares, mesmo que reconheçam que sua formação técnica é frequentemente deficitária no que tange a reconhecer as dimensões pessoais dos usuários no manejo técnico (Kovács, 2010). Lidar com a dor e o sofrimento dos outros, em meio a exigências temporais frequentemente muito intensas, em uma cultura que pretende alijar a morte da realidade vivível, impõe dilemas éticos (Pessini, 2002), os quais intensificam ainda mais o sofrimento dos trabalhadores, levando a vivências prejudicais de estresse (Montanholi et al., 2006) constituída por 85,7% de enfermeiros trabalhadores de um hospital, responderam a escala de estresse. Os dados foram analisados utilizando-se distribuição de freqüência, risco relativo e teste c² (p< 0,05 e Burnout [Andrade et al., 2015]) do clima de segurança e das variáveis psicossociais do trabalho em contexto hospitalar e suas decorrências na manifestação da síndrome do burnout. O burnout é um transtorno relacionado ao trabalho e ao estresse ocupacional severo, caracteriza-se pelo esgotamento emocional dos trabalhadores e é estabelecido por meio de determinadas associações entre características individuais, ambientais e laborais. Neste estudo objetivou-se desenvolver e testar um modelo teórico-estrutural relacionando variáveis dimensionais de trabalho, burnout e saúde mental. A pesquisa teve um delineamento do tipo survey, cuja amostra, com caráter de conveniência, contou com 200 profissionais da área de saúde, sendo 174 participantes do sexo feminino (87%).
Soma-se a esse contexto potencialmente angustiante, características da própria organização hospitalar, as quais contribuem para o risco de adoecimento psicológico entre os trabalhadores que ali atuam: tarefas realizadas com pouco tempo disponível, a urgência dos casos a serem atendidos, o barulho elevado em muitas unidades, os embates em torno da composição das escalas de trabalho, as condições físicas dos hospitais, a vigilância de chefes (Pereira et al., 2014). Além disso, a qualidade das relações profissionais e sociais, aliadas a condições de trabalho frequentemente precárias, a quantidade de pacientes para serem atendidos, bem como suas características, e a percepção de que o próprio trabalho é estressor são outros fatores relacionados ao contexto laboral em unidades hospitalares que já foram identificadas como deletérias à saúde (Monteiro & Carlotto, 2016).
Na medida em que se identificam relações entre os contextos laborais nos hospitais e suas relações com as condições de saúde mental, supõe-se que tais contextos estejam também associados a outros efeitos psicológicos e dimensões do comportamento organizacional, tais como: satisfação com o trabalho, comprometimento organizacional, intenção de saída da organização e civilidade organizacional. Estudos nesta temática demonstram que tantos aspectos pessoais (escolaridade), quanto laborais (cargo e local de trabalho), relacionam-se à satisfação no trabalho (Bacha et al., 2015). De modo semelhante, observou-se que o reconhecimento no trabalho, a remuneração adequada, as possibilidades de desenvolvimento de carreira na organização e as relações profissionais adequadas são fontes de satisfação no trabalho, ao passo que o acúmulo de trabalho, as restrições de ascensão profissional na organização, as condições inadequadas de trabalho e a sobrecarga de trabalho são fontes de insatisfação no trabalho (Nunes et al., 2010). Segundo Sá et al. (2014), a satisfação laboral impacta positivamente os índices da Síndrome de Burnout em profissionais de enfermagem. De acordo com o estudo, a satisfação com ambiente reduz a exaustão emocional, e a satisfação com o trabalho reduz a exaustão emocional, a despersonalização e aumenta a realização profissional.
Outros estudos vêm investigando aspectos da cultura de segurança em ambiente hospitalar. Verificou-se que a cultura de segurança é, segundo os trabalhadores, influenciada pela fragilidade tanto dos valores partilhados pela organização, quanto das atitudes, competências e comportamentos, promovidos internamente, intensificado pelo distanciamento que a gestão do hospital ou da unidade tem em relação aos profissionais, e que as condições precárias de trabalho também influenciam em uma percepção de cultura de segurança negativa (Carvalho et al., 2015). De modo semelhante, verificou-se que em hospitais públicos e privados, são os aspectos laborais que parecem influir nas percepções sobre o clima de segurança e que estes possuem relação com o quadro de Síndrome de Burnout apresentado pelos trabalhadores (De Andrade et al., 2015).
Já em relação a comprometimento organizacional (CO) o estudo de Sanches et al. (2010), demonstra a associação do CO com a satisfação com os benefícios, remuneração, treinamento, promoção, segurança e alta formalização para profissionais que atuam em contexto de saúde. Além disso, há evidências de que um profissional comprometido com a organização tem baixa intenção de deixar a organização, fator que impacta diretamente no índice de rotatividade organizacional (LLapaRodríguez et al., 2008). A rotatividade é um indicador importante para o contexto organizacional, inclusive para o contexto em organizações de saúde. A alta rotatividade, de acordo com os estudos de Lorenz et al. (2018) é associada positivamente a exaustão emocional e negativamente a realização profissional.
Um aspecto cada vez mais relevante para o entendimento do comportamento nas organizações, mas pouco investigado nas organizações brasileiras é a civilidade/incivilidade (Leiter et al., 2011). A incivilidade ocorre quando uma pessoa age sem consideração em relação aos outros no ambiente de trabalho, violando, assim, as normas de respeito desenvolvidas (Andersson & Pearson, 1999). Em contrapartida a civilidade, de acordo com Pearson et al. (2000), é um comportamento que mantém o respeito mútuo no contexto do trabalho e é fundamental para o desenvolvimento de relações interpessoais positivas que ocorre por meio da confiança e da empatia. Em revisão de literatura Mendonça et al. (2018) identificaram que a incivilidade está presente em diferentes tipos de ambientes organizacionais nos quais há a presença de relacionamento interpessoal e tem como consequência a construção de um clima tóxico para todos os envolvidos, o que muitas vezes pode contribuir para o efeito em espiral ascendente de atos de incivilidade, favorecendo a possibilidade de outras formas de violências, como por exemplo o assédio moral.
As instituições hospitalares no Brasil organizam sob égide da gestão de pública, privada ou mista (pública e privado). Num contexto brasileiro de recente crise econômica e diferentes problemas sociais, a natureza complexa destas organizações demandam aos seus colaboradores altas cargas de trabalho, sendo significativo o número de colaboradores com altos níveis de estresse (Santana et al., 2016). A natureza das atividades de trabalho nestes ambientes, somada a constrangimentos físicos e interpessoais torna os colaboradores destas instituições suscetíveis a maiores vivências de sintomas de burnout (De Andrade et al., 2015), bem como outras adversidades que levam ao absenteísmo e precarização do trabalho ali realizado (Filho & Almeida, 2016).
Os estudos apresentados demonstram relações entre inúmeros aspectos do trabalho no contexto hospitalar e suas relações com as condições de saúde mental dos trabalhadores e o comportamento organizacional. Todavia são poucos os estudos que avaliaram os efeitos dessa atividade profissional na vida e relações familiares dos trabalhadores. Reconhecendo a atividade de trabalho de profissionais hospitalares algo densamente significativo e passível de romper fronteiras do domínio laboral, compreender dimensões da interação trabalho-família é fundamental. Diante dessa perspectiva, o presente estudo tem como objetivo investigar os aspectos preditivos do conflito trabalho-família em profissionais do contexto hospitalar.
Método
Participantes
A amostra do estudo foi composta por 470 trabalhadores adultos de diferentes cargos de organizações hospitalares privadas, localizada em um dos Estados da Região Sudeste do Brasil. Entre os respondentes da pesquisa, 372 (79%) eram do sexo feminino. A média de idade foi de 34.50 anos (DP = 7 anos), com tempo de profissão médio de 8.0 anos (DP = 6.20 anos) e jornada semanal de trabalho média de 42 horas por semana (DP = 7.0 horas). Quanto ao estado civil, 256 (51.3%) dos participantes declararam-se casados ou vivendo como casal.
Instrumentos
Para condução do estudo foi estruturado um formulário de pesquisa, contendo um conjunto de perguntas para identificação demográfica dos participantes, informações do ambiente de trabalho e diferentes escalas psicológicas:
a) Escala de Intenção de Rotatividade. Utilizou-se a escala desenvolvida por Siqueira et al. (2014) para avaliação da intenção de rotatividade do indivíduo. Essa escala é composta de três itens (ex. “Penso em sair da empresa onde trabalho”, α = .95), com formato Likert de cinco pontos (1 = Nunca a 5 = Sempre);
b) Escala de Satisfação Laboral Genérica. Versão adaptada para o Brasil da escala de satisfação geral com o trabalho (De Andrade, Omar et al., 2020; Macdonald & Maclntyre, 1997). Ferramenta unidimensional com sete itens que avalia satisfação geral com o trabalho (ex. “Em meu trabalho, recebo reconhecimento pelo meu desempenho”, Ω = .77). Instrumento respondido por escalas do tipo Likert de cinco intervalos (1 = Discordo totalmente a 5 = Concordo totalmente).
c) Escala de conflito trabalho-família (Aguiar & Bastos, 2013). Instrumento composto por 10 itens que avaliam as duas dimensões do conflito, a interferência do trabalho na família - TIF (ex. “As demandas do meu trabalho interferem na minha vida familiar”, Ω = .90) e a interferência da família no trabalho - FIT (ex. “As demandas de minha família interferem nas minhas atividades de trabalho”, Ω = .86). Os itens foram respondidos por escalas do tipo Likert de cinco intervalos (1 = Discordo totalmente a 5 = Concordo totalmente).
d) Escala de In(Civilidade) Organizacional. Versão adaptada para o Brasil da escala de civilidade organizacional (De Andrade, Matos et al., 2020; Nitzsche, 2015). Medida que avalia dimensões de civilidade (ex. “As pessoas com quem trabalho preocupam-se com o bem-estar umas das outras”, Ω = .84) e incivilidade em organizações de trabalho (ex. “As pessoas não se tratam com respeito em meu local de trabalho”, Ω = .77). Instrumento respondido por escalas do tipo Likert de cinco intervalos (1 = Discordo totalmente a 5 = Concordo totalmente).
Procedimento
A proposta de pesquisa foi avaliada e aprovada pelo comitê de ética em pesquisa da Universidade de vínculo dos pesquisadores (protocolo número: 21698813.6.0000.5542). Posteriormente, realizou-se contatos telefônicos junto a empresas de serviço hospitalar para iniciar a coleta de dados. Apenas uma empresa aceitou participar da pesquisa e com autorização dos responsáveis legais, houve inicialmente uma divulgação sobre o estudo entre gestores e líderes de setor. Procurou-se aplicar os questionários entre todos os colaboradores da organização, todavia os não interessados eram liberados sem nenhum ônus. Os questionários foram respondidos anonimamente e individualmente com supervisão de aplicadores treinados. Todos os respondentes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido em duas vias destacáveis (uma para o respondente e outra para o pesquisador). Os dados foram coletados entre fevereiro e abril de 2018. O tempo médio de resposta do questionário foi de 20 minutos.
Procedimentos de análise dos dados
Os dados foram analisados com auxílio do software Jamovi (Jamovi Project, 2018). Preliminarmente foram analisados a presença de dados discrepantes (outliers), bem como aspectos de normalidade dos dados, por técnica gráfica (histogramas). Sequencialmente observando a natureza normativa de distribuição dos dados foi calculado o escore fatorial das medidas psicométricas, tomando como parâmetro os estudos de adaptação realizados no Brasil. Sequencialmente procedimentos de correlação de Pearson e regressão hierárquica (Hair et al., 2010) foram conduzidos. Nas análises de regressão foram elaborados dois modelos tomando como variáveis dependentes as duas dimensões de conflito trabalho-família (TIF e FIT). No primeiro modelo foram delimitadas como variáveis independentes: aspectos sociodemográficos (Modelo 1: idade, presença de filhos, horas de trabalho na semana, tempo de carreira). No segundo modelo foram estabelecidas como variáveis independentes: variáveis organizacionais, além dos aspectos sociodemográficos, (Modelo 2: idade, presença de filhos, horas de trabalho na semana, tempo de carreira, satisfação laboral, comprometimento organizacional, intenção de rotatividade, civilidade organizacional, incivilidade organizacional).
Resultados
A Tabela 1 apresenta os dados descritivos de média e desvio padrão das variáveis investigadas no estudo, adicionalmente são apontados os índices de correção do tipo de r de Pearson entre os construtos mensurados e as variáveis demográficas.
Tomando como referência a inspeção visual dos valores de média e níveis de mensuração das escalas psicométrica utilizadas, constata-se pontuações abaixo do valor de referência nas dimensões de TIF e FIT (pontuação máxima 5), sendo que o trabalho interferindo na família é o aspecto mais característico da amostra pesquisada. Quanto às pontuações dos aspectos organizacionais levantados, verifica-se que satisfação com o trabalho, comprometimento organizacional e civilidade pontuaram acima da média, todavia num intervalo inferior a quatro (ponto máximo da escala 5). Aspectos de incivilidade e intenção de rotatividade, encontram-se abaixo da média. Numa análise geral não se caracterizam problemas pessoais e organizacionais na amostra investigada.
Depurando uma análise das correlações resultantes, verifica-se que FIT foi associada de maneira positiva e significativa com intenção de rotatividade, incivilidade organizacional e carga horária; e negativamente com civilidade organizacional. Por sua vez, TIF possuiu relação negativa com: satisfação laboral, comprometimento organizacional e civilidade organizacional, e; relação positiva com: FIT, intenção de rotatividade, incivilidade organizacional, carga horária e tempo de carreira. Numa síntese comparativa do relacionamento das variáveis exploradas, verifica-se que trabalho interferindo na família (TIF) afeta um número maior de variáveis do estudo, do que aspectos da família afetando o trabalho (FIT).
Aspectos preditivos do conflito trabalho-família
Para compreender os aspectos preditivos do conflito trabalho-família foram estruturados dois modelos de regressão hierárquica (TIF e FIT), com método Enter. A Tabela 2 apresenta a porcentagem de variância explicada, o valor do coeficiente de regressão e a significância estatística das variáveis preditoras.
Na análise dos preditores de trabalho interferindo na família, o primeiro bloco da regressão identifica que os preditores significativos foram: idade (negativo), horas de trabalho na semana e tempo de carreira. Com a inclusão das variáveis de aspectos organizacionais (bloco 2), constata-se maior porcentagem da variância explicada do modelo, sendo os preditores significativos: idade (negativo), horas de trabalho na semana, tempo de carreira, satisfação laboral (negativo), comprometimento organizacional, intenção de saída da organização e civilidade organizacional (negativo).
Para o modelo de família interferindo no trabalho os preditores no primeiro bloco da regressão foram: idade (negativo) e tempo de carreira. No bloco 2, os preditores foram: idade (negativo), tempo de carreira, intenção de rotatividade e incivilidade organizacional. Destaca-se que ter filho não foi preditivo em nenhum dos modelos testados.
Discussão
O objetivo do presente artigo foi analisar aspectos preditivos do conflito trabalho-família em profissionais no contexto hospitalar. Para alcançar este objetivo foi realizada uma pesquisa de levantamento que investigou o poder explicativo de aspectos pessoais e organizacionais referentes ao conflito trabalho-família. Vale ressaltar que foi investigado tanto o trabalho interferindo na família quanto a família interferindo no trabalho. Esse procedimento metodológico é relevante pois as diferentes pesquisas têm demonstrado o bidirecionamento e a multidimensionalidade dessa relação (Aguiar & Bastos, 2017; Carlson et al., 2000; Greenhaus & Beutell, 1985).
Antes de avançar especificamente na discussão dos resultados do presente estudo é importante tecer comentários acerca das variáveis organizacionais investigadas. Os dados das variáveis organizacionais indicam que os níveis de satisfação com o trabalho, o comprometimento organizacional e a civilidade estão acima da média. Além disso, os scores obtidos nas variáveis incivilidade e intenção de saída da organização estão abaixo da média. Esses dados demonstram que o ambiente organizacional investigado, de forma geral, acolhe adequadamente o profissional e permite um bom desenvolvimento das atividades laborais. Essa constatação é possível uma vez que o conjunto de indicadores levantados está associado na literatura científica da área com aspectos positivos no ambiente de trabalho, tais como reconhecimento no trabalho, remuneração adequada, possibilidade de desenvolvimento de carreira na organização e relações profissionais adequadas (Bacha et al., 2015), baixos índices de Síndrome de Burnout (Lorenz et al., 2018; Sá et al., 2014) e presença de bons relacionamentos interpessoais (Mendonça et al., 2018). Outra constatação é que, a partir dos resultados, infere-se que o contexto estudado, de maneira geral, parece permitir a vivência do prazer no contexto laboral (Cruz et al., 2014; Kessler & Krug, 2012), resultado que se assemelha ao identificado em outros estudos (Bacha et al., 2015; Carvalho et al., 2015; Vegro et al., 2016). Este aspecto é importante uma vez que estudos indicam relações entre a satisfação no trabalho e baixa prevalência de Burnout entre trabalhadores hospitalares (Sá et al., 2014).
Além da compreensão do contexto investigado, os dados possibilitam a análise dos preditores da relação do conflito trabalho-família. O conjunto de dados demonstra que as variáveis organizacionais têm maior poder preditivo do conflito trabalho-família do que as variáveis pessoais, contudo é importante considerar todas as variáveis pesquisadas para uma melhor compreensão da realidade investigada. De acordo com esses dados, pode-se deduzir que: 1) ambas as dimensões, trabalho e família, estão de fato imbricadas entre si, entre os profissionais do contexto hospitalar; e 2) o contexto de trabalho deve ser considerado para lidar com os conflitos existentes entre trabalho e família. Os dados demonstram que as variáveis analisadas predizem 11% dos conflitos da família interferindo no trabalho e 25% dos conflitos do trabalho interferindo na família. Embora se verifique empiricamente a bidirecionalidade dessa relação (Greenhaus & Beutell, 1985), as variáveis estudadas explicam melhor o trabalho interferindo na família, sugerindo que as dimensões do trabalho são mais resistentes às influências da família que o contrário. As razões para essa maior resistência não foram investigadas, mas pode-se supor que entre elas estão a importância do suporte social no trabalho (Araújo et al., 2003; Moraes & Athayde, 2014), do valor e sentido que o trabalho opera na vida das pessoas (Schwartz, 2004), da experiência laboral ser fonte de prazer e de saúde mental para os trabalhadores (Dejours, 2012), bem como sobrevivência financeira. Apesar dessa diferença, é válido analisar os resultados específicos encontrados tanto da FIT quanto da TIF.
O primeiro aspecto importante se refere ao fato de que tanto a TIF quanto a FIT são maiores quanto menor é a idade dos trabalhadores. Esse aspecto pode ser explicado em duas direções: de um lado, no início da vida de adulto se intensificam os processos de constituição das famílias, requerendo maior participação dos parceiros na gestão das moradias e no cuidado das crianças mesmo que tal realidade venha se modificando nos últimos anos (Melo Vieira & Correia Alves, 2016); de outro, nesse momento que se intensificam, também, as experiências laborais, sendo momento de grande investimento nas carreiras, mesmo que se reconheçam mudanças nessa dinâmica, acarretadas pelos novos modos de produção (Fiorini et al., 2016). Portanto, em meio a essa ambiguidade, é provável que os jovens casais e jovens trabalhadores tenham maiores dificuldades de compatibilizar ambas as demandas. Soma-se a isso o fato dos mais jovens tenderem a ser menos satisfeitos no trabalho (Dobrow Riza et al., 2018). Finalmente, a inexperiência dos mais jovens, no trabalho e na família, podem dificultar uma gestão mais adequada das duas as dimensões e em ambos os sentidos.
Outra variável que foi relacionada tanto à FIT quanto à TIF foi o tempo de carreira. Diferentemente do fator idade, em que a inexperiência contribui para gerir conjuntamente ambas as dimensões, pode-se supor que a percepção das interferências entre elas relacione-se ao envelhecimento funcional e ao comprometimento da capacidade para o trabalho, sobretudo na presença de fatores estressores no trabalho (Martinez et al., 2017). Além disso, é possível inferir que quanto maior o tempo de carreira, maior é a probabilidade de vivenciar processos de insatisfação no trabalho, sobretudo quanto maior o tempo de carreira em uma única organização (Dobrow Riza et al., 2018), aumentando a intenção de sair da organização ou da profissão.
Em relação à FIT observa-se que quando o ambiente de trabalho apresenta cumulativamente três variáveis, a saber, (1) incivilidade; (2) intenção de saída da organização por parte do profissional e (3) maior tempo de carreira, maior é a interferência da família no trabalho. Essas três variáveis estão associadas a certo desgaste no contexto de trabalho por parte do profissional (Andersson & Pearson, 1999; Lorenz et al., 2018; Monteiro & Carlotto, 2016) e quando se apresentam conjuntamente, é possível predizer a FIT. Levando-se em conta a premissa de que o trabalho nesse ambiente hospitalar seja mais resiliente às influências da família que o inverso, deve-se supor que o limite dessa resistência ocorra quando as variáveis supracitadas tornam-se mais evidentes na percepção dos trabalhadores, sobretudo no momento em que se percebem relações sociais danosas (incivilidade), que contribuem para a intenção de deixar a organização (rotatividade), atrelado ao acúmulo de experiência naquele cargo, que contribui para o trabalhador ter maior clareza dos limites de sua capacidade de suportar os problemas na profissão.
Ao considerar a TIF é possível identificar que quanto maior for (1) a carga horária de trabalho, (2) o comprometimento organizacional, (3) o tempo de carreira e (4) a intenção de rotatividade, maior é a interferência do trabalho na família. Além disso, é possível observar que quanto menor for o nível de satisfação e de civilidade organizacional, mais se constata o trabalho interferindo na família.
Este conjunto de variáveis indica quatro realidades possíveis, não excludentes entre si. A primeira corresponde a um contexto de trabalho em que o profissional é experiente, dedica mais tempo ao seu trabalho e possui envolvimento afetivo com o trabalho. Neste caso, é possível inferir o tensionamento dos papeis entre família e trabalho em que a dimensão tempo seja um aspecto importante. Ou seja, as demandas de tempo do trabalho podem estar afastando o indivíduo da família (Aguiar & Bastos, 2013; Carlson et al., 2000; Keeney et al., 2013).
A segunda realidade possível corresponde a um contexto de trabalho em que há pouca civilidade organizacional, baixa satisfação laboral, intenção de saída da organização e maior tempo de carreira. Quando estas variáveis estão presentes, geralmente observa-se um contexto laboral em que precárias condições de trabalho ocasionam maior desgaste aos profissionais envolvidos (Andersson & Pearson, 1999; De Andrade et al., 2015; Lorenz et al., 2018; Monteiro & Carlotto, 2016). Neste caso, o conflito entre trabalho e família ocorre devido ao comportamento gerado pela fadiga relacionada ao trabalho e pela tensão que envolve o desgaste afetivo e/ou estresse advindos do desequilíbrio entre os papeis das duas instâncias (Kremer, 2016; Lambert et al., 2017). Neste contexto, vale ressaltar estudos que apontam relações entre a exaustão emocional, um dos fatores do Burnout, e estresse relacionado à busca de conciliação adequada entre família e trabalho (Monteiro & Carlotto, 2016)
Uma terceira realidade possível corresponde ao fato de que embora as interferências sejam bidirecionais e ocorram continuamente, sua percepção não seja linear, mas em formato de U e influenciada por aspectos organizacionais. Em outras palavras, se a percepção de influência recíproca é maior entre os mais jovens, após certo tempo de trabalho e de vida, os trabalhadores apreendem a manejar e suportar as tensões dessa influência, diminuindo a percepção de sua influência. Contudo, com o passar do tempo na carreira, e com a presença de fatores organizacionais, como incivilidade organizacional, pressão para o aumento do comprometimento no trabalho e a necessidade de intensificar a carga de horário no trabalho, aumenta-se a insatisfação no trabalho e a intenção de sair do trabalho. Nesse momento, é mais provável que as percepções dessa influência retomem importância na percepção dos trabalhadores. Esse formato em U é observado também na relação entre tempo de uma pessoa em um determinado cargo/profissão e a satisfação no trabalho (Dobrow Riza et al., 2018).
O presente estudo analisou variáveis sociodemográficas e organizacionais e sua relação com o conflito trabalho família. A síntese dos resultados revela implicações práticas para a gestão organizacional como um todo e para a gestão de pessoas de forma específica. Do ponto de vista da gestão organizacional os resultados indicam para a necessidade de um maior conhecimento do contexto de trabalho, pois este impacta de forma significativa no conflito trabalho-família.
No que se refere à gestão de pessoas os resultados apontam para a relevância de realizar o acompanhamento contínuo do contexto de trabalho no sentido de proporcionar um ambiente saudável e prazeroso para os seus profissionais, com o objetivo de atenuar o conflito trabalho-família. Isto é importante, pois os resultados de pesquisas anteriores demonstram os impactos negativos desse conflito tanto na vida das pessoas quanto no contexto laboral. O investimento em intervenções organizacionais, criação de políticas de suporte e em práticas organizacionais de uma cultura conciliativa entre domínios de trabalho e família (Fiksenbaum, 2014; Thompson et al., 1999), demonstra ser uma estratégia necessária para organizações competitivas manterem o potencial de atração de talentos, bem como um meio de manutenção de ambientes organizacionais saudáveis e competitivos.
Importante considerar que uma das principais limitações do presente estudo diz respeito ao fato de a coleta de dados ser exclusivamente em um único hospital, fato que dificulta uma generalização dos dados para outros contextos hospitalares. Além disso, por ser um estudo transversal, algumas possibilidades explicativas sobre o fenômeno observado não podem ser comprovadas. Todavia o estudo lança ponderações importantes para investigação do trabalho no contexto hospitalar, além dos aspectos de saúde e vivência de sofrimento (De Andrade et al., 2015; Montanholi et al., 2006; Sobral et al., 2018). A capacidade do trabalho e família interagirem e consequentemente transbordarem os seus espaços tradicionais (ten Brummelhuis & Bakker, 2012) faz da análise dos domínios de trabalho-família, seja por conflito (Greenhaus & Beutell, 1985), seja por enriquecimento (Powell & Greenhaus, 2006), um objeto importante para pesquisadores e gestores de organizações hospitalares.