SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.40 issue2National Identity and appreciation for sustainable practices in social and commercial entrepreneurs in LimaGiftedness and ADHD: A systematic literature review author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Indicators

  • Have no cited articlesCited by SciELO

Related links

  • Have no similar articlesSimilars in SciELO

Share


Revista de Psicología (PUCP)

On-line version ISSN 0254-9247

Revista de Psicología vol.40 no.2 Lima July/Dec. 2022  Epub July 04, 2022

http://dx.doi.org/10.18800/psico.202202.018 

Artículos

Enciumar(-se), experiência feminina? dilemas narcísicos sob a ótica interseccional de gênero

Encelar(se), ¿una experiencia femenina? dilemas narcisos desde la perspectiva interseccional del género

Jealousy, feminine experience? narcissistic dilemmas from an intersectional gender perspective

(Se)Jalouser, expérience féminine? Dilemmes narcissiques dans une perspective intersectionnelle de genre

Maisa Campos Guimarães1  * 

Valeska Zanello1  ** 
http://orcid.org/0000-0002-2531-5581

1Universidade de Brasília - Brasil

Resumo

Os ciúmes permeiam relações afetivas configurando-se como fenômeno subjetivo, relacional e sociocultural. Em uma leitura interseccional de gênero e raça, aponta-se o dispositivo amoroso como central na subjetivação das mulheres. Esta pesquisa qualitativa objetivou compreender como mulheres nomeiam, significam e lidam com o próprio ciúme e/ou com o de parceiros amorosos. Realizou-se entrevistas narrativas com 12 mulheres, em relacionamentos heteroafetivos, com queixas sobre ciúmes. Pela análise de conteúdo, as categorias foram organizadas entre ciúmes recebido (Ser a “escolhida”; Ciúme normal x anormal; Autoresponsabilização delas e desresponsabilização deles) e sentido (“Risco” de serem abandonadas, Ciumenta: de insegura a louca? Rivalidade feminina acirrada por dilemas raciais e estéticos). Leituras interseccionais das emocionalidades revelaram como o ciúme interpela dilemas narcísicos gendrados e racializados.

Palavras-chave: ciúme; dispositivo amoroso; gênero; interseccionalidade.

Resumen

Los celos impregnan las relaciones afectivas, convirtiéndose en un fenómeno subjetivo, relacional y sociocultural. En una lectura interseccional de género y raza, el dispositivo amoroso se señala como central para la subjetivación de las mujeres. Esta investigación cualitativa tuvo como objetivo comprender cómo las mujeres nombran, significan y tratan los celos propios y/o de las parejas amorosas. Se realizaron entrevistas narrativas con 12 mujeres, en relaciones hetero afectivas, con quejas sobre celos. Mediante el análisis de contenido, las categorías se organizaron entre los celos recibidos (Ser la “elegida”; Celos normales versus anormales; Auto-responsabilización de ellas y desresponsabilización de ellos) y sentido (“Riesgo” de ser abandonadas, Celosa: ¿de insegura a loca? Rivalidad femenina exacerbada por dilemas raciales y estéticos). Lecturas interseccionales de las emocionalidades revelaron cómo los celos desafían los dilemas narcisos gendrados y racializados.

Palabras clave: celos; dispositivo amoroso; género; interseccionalidad

Abstract

Jealousy permeates affective relationships, becoming a subjective, relational and sociocultural phenomenon. In an intersectional reading of gender and race, the loving device is pointed out as central to the subjectivation of women. This qualitative research aimed to understand how women name, mean and deal with their own and / or love partners jealousy. Narrative interviews were conducted with 12 women, in hetero-affective relationships, with complaints about jealousy. By content analysis, the categories were organized between received jealousy (Being the “chosen one”; Normal vs. abnormal jealousy; Women´s self-responsibility and Men´s lack of responsibility) and sense (“Risk” of being abandoned, Jealous: from insecure to crazy?; Female rivalry exacerbated by racial and aesthetic dilemmas). Intersectional readings of emotionalities revealed how jealousy interpellates gendrized and racialized narcissistic dilemmas.

Keywords: jealousy; loving device; gender; intersectionality

Résumé

La jalousie fait partie des relations affectives, devenant un phénomène subjectif, relationnel et socioculturel. Dans une lecture intersectionnelle du genre et de la race, le dispositif amoureux est signalé comme étant au centre de la subjectivité des femmes. Cette recherche qualitative a le but de comprendre comment les femmes nomment, signifient et gèrent la propre jalousie et / ou avec la jalousie des partenaires. Des entretiens narratifs ont été menés avec 12 femmes, dans des relations hétéro-affectives, avec des plaintes de jalousie. Par l’analyse de contenu, les catégories ont été organisées entre la jalousie reçue (Être «l’élue»; Jalousie normale vs anormale; Leur propre responsabilité et la manque de responsabilité des partenaires) et le sens («Risque» d’être abondonnée ; Jalouse : elle n’est pas sûr ou elle est folle ?; Rivalité féminine exacerbée par des dilemmes raciaux et esthétiques). Les lectures intersectionnelles des émotions ont révélé comment la jalousie remet en question les dilemmes narcissiques sexués et racialisés.

Mots-clés: jalousie; dispositif amoureux; genre; intersectionnalité

O termo ciúme, gramaticalmente, refere-se a um sentimento abstrato e, portanto, um substantivo incontável, o que indicaria sua grafia no singular. Contudo, é comum o uso do termo também no plural sob a justificativa de que haveria diferentes tipos de ciúme. Na perspectiva de estudiosos da língua portuguesa, é correto o uso do termo das duas formas, de modo a abarcar essa multiplicidade linguística e semântica. (Perez, n.d.)

A possibilidade de compreender o ciúme a partir de diferentes sentidos é uma das premissas deste estudo. Afinal, aponta-se que qualquer emoção se configura em meio a uma rede tecida entre significados subjetivos (conscientes e inconscientes) e simbolismos culturais, que ao serem traduzidos como experiências emocionais nas circunstâncias e singularidades de cada um acabam por revelar a história do sujeito e suas formas de compreender o mundo, de atuar e de se afetar pela realidade social (Le Breton, 2009).

O modo como as experiências emocionais se atrelam às gramáticas culturais influenciam o sentir, o nomear e o expressar dos afetos. A compreensão das emoções enquanto fenômenos sociais inscritos na cultura revela ainda que existem valores, discursos, práticas e hierarquias que sustentam parâmetros da afetividade e que funcionam a partir de lógicas sociais que legitimam ou reprovam características emocionais em contextos específico e/ou com determinados sujeitos ou coletividades (Le Breton, 2009; Rezende & Coelho, 2010).

Considerar a forma como os aspectos individuais e sociais se articulam nas vivências emocionais exige, assim, um conhecimento situado na cultura e no contexto sócio-histórico, o que significa, neste artigo, uma discussão a partir da realidade brasileira. Realidade esta marcada por profundas desigualdades sociais, raciais e de gênero, as quais, frequentemente, tenta-se negar, deslegitimar ou invisibilizar. Isto é evidenciado por Chauí (2003), ao discutir o mito da não-violência do povo brasileiro, além de pesquisas que apontam a falácia do mito da democracia racial (Bicudo, 2010; Gonzales, 2019). Como aponta Saffioti (2004), racismo e sexismo são como ‘irmãos gêmeos” (p. 124) interligados, estruturantes e imbricados nos processos sociais e subjetivos de nossa cultura.

Gênero e raça se apresentam, portanto, como construtos teóricos e ferramentas analíticas essenciais para as análises que são empreendidas neste artigo. A terminologia gênero envolve uma multiplicidade semântica e epistêmica, cuja historicidade retrata uma crítica às explicações essencialistas e puramente biológicas em torno das diferenças sexuais, da constituição da sexualidade e dos significados atribuídos ao feminino e ao masculino na sociedade (Küchemann, Bandeira, & Almeida, 2015; Scott, 2019; Zanello, 2018). De modo similar, raça também deve ser compreendida como uma construção social que não encontra validade ou legitimidade em qualquer critério biológico, mas que produz discursos, práticas e simbolizações que demarcam experiências diferenciadas entre aqueles/as que se identificam (ou são identificados/as) como brancos/as ou negros/as (Carneiro, 2005; Fanon, 2008; Kilomba, 2019; Schucman, 2018).

Logo, percebe-se que racismo e sexismo funcionam a partir de lógicas similares seja ao tentar construir um senso comum permeado ideologicamente por referências que se afirmariam como diferenças naturais ou biológicas (Kilomba, 2019); seja ao (re)produzir relações de poder que implicam sempre dimensões de privilégio e de opressão (Carneiro, 2005; Zanello, 2018). Deste modo, percebidas a partir da ótica de gênero e de raça, as ditas diferenças se estabelecem, na verdade, como desigualdades.

Nesta perspectiva, poder, saber e subjetividades se articulam produzindo, e ao mesmo tempo, sendo produto de, discursos, significados, práticas, instituições, valores culturais, sentidos subjetivos, concepções de mundo, parâmetros de humanidade, critérios da diferença (Carneiro, 2005; Foucault, 1979; Zanello, 2018). Situar estes marcadores sociais em meio à lógica de funcionamento de poder permite uma compreensão hermenêutica de como se produz e se impacta subjetivações, revelando ainda uma emergência ética e política em romper com um percurso histórico que tenta silenciar ou deslegitimar as evidências de como o sexismo e o racismo perpassam o cotidiano e a sociabilidade.

Embora tais processos de (re)produção de desigualdades apresentem similaridades, há também multiplicidades e contradições que precisam ser reveladas e compreendidas (Lauretis, 2019; Saffioti, 2004). Pesquisas de intelectuais negras brasileiras destacaram-se pelo pioneirismo em demonstrar como estes fenômenos se articulam nas experiências subjetivas (Bicudo, 2010), especialmente na realidade das mulheres negras (Gonzales, 2019). Já mais recentemente o conceito de interseccionalidade foi proposto, nos estudos norte-americanos, como uma ferramenta analítica para abordar como as questões de gênero e raça se conectam (Crenshaw, 1994). Uma leitura interseccional de gênero, deste modo, possibilita identificar e nomear como se estrutura a “natureza interligada das opressões” (Collins, 2016, p. 108).

Evidencia-se que “em um sistema de poder patriarcal onde o privilégio de ter pele branca é uma escora importante, as armadilhas usadas para neutralizar mulheres negras e mulheres brancas não são as mesmas” (Lorde, 2019, p. 243). Ainda assim, estas diferenças não deveriam ser vistas como algo necessariamente ruim ou segregador, pelo contrário, não são elas “que separam as mulheres, mas nossa relutância em reconhecer essas diferenças e lidar de maneira eficaz com as distorções provocadas pelo fato de ignorarmos e interpretarmos de modo errado essas diferenças” (Lorde, 2019, p. 247).

Desse modo, entende-se que as experiências das mulheres são atravessadas por estes marcadores sociais (gênero e raça) que estruturam e perpassam suas interações e seus processos de subjetivação. Como explicado por Lauretis (2019), compreender a subjetividade enquanto múltipla e contraditória (ao invés de única e dividida) envolve pensar em um sujeito gendrado (ou seja, marcado por uma especificidade de gênero) que se constitui ainda por meio de códigos linguísticos e representações culturais em suas relações de raça (portanto, racializado). A partir de uma releitura teórica foucaultiana, Lauretis (2019) concebe gênero enquanto uma tecnologia que é produto e processo de construções socioculturais, aparatos biomédicos, discursos científicos e diversas outras tecnologias socias (como cinema, música, mídia) que têm o “poder de controlar o campo da significação social e assim produzir, promover e ‘implantar’ representações de gênero” (p. 142). Em um processo de interpelação essas representações são incorporadas e ressignificadas pela pessoa em seu processo de subjetivação, apresentando-se a dimensão de gênero tanto como representação quanto como autorrepresentação.

Nesta perspectiva, o presente estudo visa contribuir para uma compreensão de como as emocionalidades - especificamente, os ciúmes - se configuram e interpelam as mulheres de modos distintos a partir de tecnologias e performances gendradas e racializadas. Toma-se como premissa teórica que na cultura brasileira há uma forte pedagogia afetiva sobre o amor que atua como uma tecnologia de gênero, repercutindo a nível individual (ao interpelar performances às mulheres) e social (ao configurar scripts culturais em relação às emocionalidades). Algumas das características que se destacam no delineamento dessa pedagogia dos afetos são: a centralidade do parâmetros heteronormativos; a validação do matrimônio enquanto o contrato social legítimo; a expectativa de que as mulheres se dediquem e se comprometam com os homens por meio da monogamia e dos cuidados domésticos; e certa tolerância com a poligamia masculina e com o baixo investimento afetivo deles no relacionamento amoroso (Lagarde, 2001; Zanello, 2018)

Essas problematizações sobre as dimensões do amor na nossa cultura centram-se não em uma ideia metafísica ou abstrata do amar, mas em uma compreensão de como o amor tem sido entendido e vivido pelas mulheres como uma questão identitária revelando dilemas narcísicos nos processos de subjetivação e de escolha amorosa. Neste ponto, torna-se promissor o diálogo com a Psicanálise, desde que entendida como uma etnoterapia que demanda meta-análises conectadas a dimensões culturais, sociais e históricas (Zanello, 2016).

Ao comparar como homens e mulheres procedem com as escolhas objetais (mesmo enfatizando que tais diferenças não são naturalmente universais), Freud (1914/2006b) identifica que as mulheres tendem a amar de modo narcisista, ou seja, “sua necessidade não se acha na direção de amar, mas de serem amadas” (Freud, 1914/2006b, p. 95). Essa dinâmica aponta para dilemas narcísicos que versam sobre sensações de incompletude e uma (perigosa) ilusão de que o objeto amoroso é aquele capaz de responder a uma plenitude de si. Como afirma Zanello (2018), as mulheres “se subjetivam de forma gendrada em uma carência a ser” (p. 90), evidenciando que o ser escolhida/amada é vivenciado por elas como uma interpelação narcísica e uma possibilidade de ser (e de se sentir legitimada) como pessoa e como mulher. Por isso, para as mulheres, estar ou não em um relacionamento amoroso pode ser sentido como sucesso/fracasso pessoal e ser experienciado como um questionamento identitário.

Essa percepção de ameaça psíquica associada ao status amoroso repercute nos processos de subjetivação e nos modos com que elas entendem e atuam na conjugalidade. Diversos estudos retratam o grande investimento afetivo/pulsional das mulheres na manutenção de seus relacionamentos amorosos, em que elas se apropriam de estratégias como: uma sobrecarga em práticas de cuidado com o outro associada a uma postura de silenciamento e renúncia de suas próprias demandas; uma intensa preocupação e busca por responder a determinado ideal estético; e uma tendência a se responsabilizar por suprir e garantir o bem-estar do outro e a continuidade da relação, mesmo se isso significar angústias ou violações da própria intimidade (Diniz & Pondaag, 2004; Lagarde, 2001; Wolf, 1992; Zanello, 2018). Além disso, outro

desdobramento importante é que as mulheres se subjetivam na relação umas com as outras por meio da rivalidade. Se trata-se de “ser escolhida”, quero ser o objeto mais brilhante, mais reluzente, ou apagar o brilho alheio. A competição se faz aqui evidente. Ser escolhida é sempre um valor relacional, ou seja, produzido na comparação com outras mulheres disponíveis também nessa prateleira simbólica. (Zanello, 2018 p. 89)

A percepção dessa dinâmica serviu de base para que Zanello (2018) elaborasse a metáfora da “prateleira do amor” como representativa do funcionamento do dispositivo amoroso e lócus central para os ­processos de subjetivação das mulheres em nossa cultura. Desse modo, o ser escolhida, para elas, apresenta-se como basilar em suas experiências amorosas e, especialmente, em suas configurações identitárias. Quando o ser desejada se associa ao ser legitimada pelo outro como pessoa/mulher, entendemos que o subjetivar-se na prateleira do amor representa um lócus de vulnerabilização para as mulheres, uma vez que atribui-se aos homens o privilégio de escolha e de validação delas, ao mesmo tempo em que se estabelece um rígido ideal estético como parâmetro de valoração entre as mulheres.

Portanto, essa tendência narcísica das escolhas amorosas revela-se “desfavorável para o desenvolvimento de uma verdadeira escolha objetal com a concomitante supervalorização sexual” (Freud, 1914/2006b, p. 95). Ou seja, a busca por ser escolhida nessa prateleira contribui para que as experiências afetivas e eróticas das mulheres sejam permeadas por processos de objetificação e de autoobjetificação sexual, a partir de uma promessa de que determinado ideal estético garantiria sucesso e reconhecimento enquanto sujeito (Zanello, 2018). Como explica Wolf (1992), “a sexualidade feminina é virada pelo avesso desde o nascimento, para que a ‘beleza’ assuma o seu lugar, mantendo os olhos das mulheres voltados para os seus próprios corpos, olhando de relance para cima, só para verificar a imagem refletida nos olhos dos homens” (p. 205).

Freud (1914/2006b) entende que uma determinada estética funcionaria como uma compensação para as restrições sociais vivenciadas pelas mulheres em suas experiências amorosas trazendo, para elas, uma espécie de autocontentamento. Se, por um lado, entende-se que o ideal estético da prateleira do amor se apresenta como essa promessa de recompensa, por outro lado, é necessário problematizar o caráter nocivo dessa dinâmica no dispositivo amoroso para as mulheres. Em uma perspectiva histórica, é possível identificar como a questão da beleza se constitui em nossa sociedade como um atributo a ser perseguido e conquistado; uma valoração moral em torno da ideia de cuidado; uma premissa para o (auto)erotismo; e um critério essencial para a experiência amorosa (Zanello, 2018). Assim, a medida que o fator estético passa a ser entendido como basilar da própria identidade e dependente de uma validação externa e do olhar desejante do outro (Wolf, 1992), percebe-se que “longe de fornecer uma compensação narcísica, há uma agudização da frustração e da impotência” (Zanello, 2018, p. 88) frente a lógica de poder que configura o ideal estético.

Além do mais, como tal ideal se constrói a partir de dimensões sociais e culturais, indissociadas no Brasil de sua história (recente) colonial e escravagista, torna-se evidente o quanto a prateleira do amor funciona a partir de uma estrutura perversa e racista. Os parâmetros racistas dessa prateleira metafórica revelam-se tanto pelo ideal estético da brancura quanto pela hipersexualização dos corpos das negras. Políticas de embranquecimento da população foram estabelecidas no país a partir de discursos e práticas violentas que associavam estética a valores morais, de modo que traços fenotípicos atribuídos à negritude eram postos como feios, sujos, animalescos e primitivos, enquanto os atribuídos à branquitude eram caracterizados como belos, nobres, admiráveis (Braga, 2015).

Nessa perspectiva é que se produz também a imagem da “mulata brasileira”, em um discurso de pretenso enaltecimento da corporeidade negra (como sensual e sedutora), mas que representa, na verdade, mais uma forma de oprimir, discriminar e interditar o acesso à plena cidadania e dignidade (Gonzales, 2019). Essa hipersexualização decorre, assim, de um ideário racista que contribui para uma experiência de solidão da mulher negra (Pacheco, 2013), bem como para uma vivência das emocionalidades que entende como uma boa estratégia subjetiva o reprimir sentimentos (Hooks, 2010).

Deste modo, pretende-se neste artigo identificar como experiências afetivas de ciúmes interpelam performances e configuram emocionalidades às mulheres no contexto conjugal heteroafetivo brasileiro. A premissa do dispositivo amoroso (Zanello, 2018) enquanto basilar aos processos de subjetivação das mulheres fundamenta este trabalho e orienta uma leitura interseccional de gênero e de raça. Trata-se, como objetivo principal, de compreender como as mulheres nomeiam, significam e lidam com o ciúme, seja ao identificarem-se como ciumentas, seja ao se perceberem objeto de ciúmes de um homem com o qual elas se relacionam (ou se relacionaram) amorosamente.

Método

Este estudo foi desenvolvido com metodologia qualitativa, a qual confere centralidade aos processos de compreender e de interpretar a realidade, tanto em sua dimensão singular, quanto histórica e coletiva (Minayo, 2012). Foi utilizada a técnica da entrevista narrativa, tendo em vista sua proposta de abertura para a fala e para a singularidade do sujeito. Compreender a narrativa, neste caso, abrange tanto a sequência cronológica dos fatos, quanto o modo como cada um delineia sentido e coerência às próprias histórias (Bauer & Gaskell, 2002), revelando, assim, certa proximidade com os construtos psicanalíticos de escuta às entrelinhas e aos não-ditos (Fontanella & Júnior, 2012; Rosa & Domingues, 2010).

No processo de preparação das entrevistas, as pesquisadoras definiram algumas temáticas a serem exploradas no estudo, especialmente: como identificava situações e sentimentos relacionados ao ciúme; como entendia as experiências de sentir e de receber ciúmes; e se percebia associação entre questões raciais e os modos como se relacionava amorosamente e/ou sentia ciúmes.

As entrevistas iniciavam-se com o convite para que a participante relatasse livremente sua(s) história(s) relacionada(s) ao ciúme. Durante a narrativa, evitava-se interrupções ou direcionamentos. A pesquisadora se manifestava de forma direta apenas após a entrevistada sinalizar a finalização de seu relato, sendo, neste momento, abordado as temáticas definidas previamente, buscando se aproximar da linguagem e da narrativa de cada participante (Bauer & Gaskell, 2002).

Os procedimentos de análise dos resultados envolveram transcrição integral de todas as entrevistas e análise de conteúdo (Bardin, 2011). Esta ferramenta hermenêutica busca compreender e revelar os sentidos que estão em um segundo plano tanto da fala quanto do contexto da mensagem. Procedeu-se com leitura flutuante do material transcrito; identificação das principais temáticas abordadas (visto que não se trabalhou com hipóteses a priori); leituras transversais e comparadas entre as análises empreendidas por cada um das pesquisadoras; e, por fim, definição das categorias de análise (Bardin, 2011).

As participantes da pesquisa foram mulheres que mantinham relacionamentos heteroafetivos e que identificavam o ciúme como um fator impactante em suas experiências amorosas, seja por sentirem muito ciúmes ou por serem afetadas pelo ciúme de um parceiro amoroso. Uma amostragem em bola de neve (Vinuto, 2016) foi utilizada para divulgar o convite para a pesquisa, acompanhado de um formulário online para preenchimento em caso de disponibilidade para a entrevista.

Uma definição intencional da amostra (Fontanella et al., 2008) priorizou estabelecer um grupo com diversidade étnico-racial e com demandas variadas em termos de sentir e/ou de receber ciúme. O fechamento da amostra ocorreu a partir do critério de saturação teórica (Fontanella & Júnior, 2012), identificado após a 10ª entrevista e confirmado com a delimitação a 12 mulheres entrevistadas.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências Humanas da UnB (Parecer nº 2.927.029) e os devidos cuidados com o acolhimento, sigilo e confidencialidade foram tomados tanto no momento de realização das entrevistas quanto nos procedimentos de registro das informações, transcrição dos áudios, análise e divulgação dos resultados. Todas as participantes concordaram com Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e receberam uma cópia do documento devidamente assinado.

Em relação ao perfil das participantes, a idade e a autodefinição ético-racial foram declaradas no formulário online de acesso a pesquisa, tendo 4 mulheres se identificado como brancas (Nise , 23 anos; Rose, 29; Cora, 52; e Nisia, 21); 4 como pardas (Patrícia, 20; Bertha, 34; Virgínia, 41; e Tereza, 42); 2 como negras (Lélia, 24; e Sueli, 36); 1 como não-branca (Conceição, 30); e 1 como preta (Elza, 26).

Resultados e discussão

As categorias de análise serão apresentadas em 2 grupos distintos referentes a receber e a sentir ciúmes, dada a percepção de que as mulheres fizeram leituras diversas quando pensavam sobre tais experiências. Ressalta-se que, embora ao manifestarem interesse na pesquisa, as participantes tenham sinalizado qual dessas situações as impactava, durante as entrevistas tais diferenciações acabaram por diluir-se em suas narrativas, uma vez que todas elas trouxeram relatos de ambas as experiências.

Sobre o ciúme recebido

Ser a “escolhida”: A experiência de perceber o ciúme de um parceiro foi mencionada, frequentemente nas entrevistas, como sinônimo de receber o investimento afetivo/amoroso do parceiro. No discurso de quase todas as participantes apareceu menções à ideia de que “se tá com ciúmes é porque gosta” (Sueli). Como justifica Lélia:

“um ciúme que você consegue se sentir bonita, valorizada, né, você sente que a pessoa gosta de você a ponto de... até porque eu acho também que se você não se importar muito com nada, fica parecendo que você não faz questão daquilo ali, que não é tão importante assim, né?”

Perceber-se objeto de ciúmes do outro aparece, neste ponto, como uma confirmação de que se é amada e, portanto - sob o prisma dos processos de subjetivação das mulheres (Zanello, 2018) - se é legitimada como pessoa e como mulher. Se o ciúme surge como a prova de que se é a escolhida, então ele apresenta interpelações narcísicas às mulheres, sendo, frequentemente, mencionadas por elas a partir de problematizações sobre autoestima. Tal conceito foi referido como uma boa imagem de si, especialmente em termos estéticos, sendo o termômetro dessa avaliação ser ou não amada, ou ser ou não escolhida por um homem. Muitas delas associavam um aumento de sua autoestima com receber ciúme do parceiro. Sob a ótica psicodinâmica das escolhas amorosas narcísicas, é compreensível certa associação entre autoestima e receber o investimento afetivo do outro (Freud, 1914/2006b).

Porém, é importante compreender que as questões de autoestima se estabelecem a partir de relações intra e intersubjetivas, em contextos históricos, sociais e culturais. Como já discutido, as tecnologias de gênero compõem pedagogias afetivas que demarcam uma centralidade da conjugalidade nos processos de subjetivação das mulheres, delineando scripts culturais que favorecem que elas se cobrem em “conquistar” ou manter um casamento (Wolf, 1992; Zanello, 2018). Em outras palavras, scripts que redimensionam para as mulheres o valor simbólico de ser (e manter-se) escolhida e para os homens concedem um espaço de privilégio do poder da escolha e da validação/valoração delas. Logo, ao vivenciarem essa dinâmica como ferramenta de validação de si através do outro, elas experienciam uma intensificação de suas questões narcísicas, seja interpeladas por suas idealizações (sobre o que gostaria de ser aos olhos do outro), seja vulnerabilizadas frente ao poder que o outro tem sobre si, dado que a possibilidade de que o outro as (des)legitime pode impactá-las narcisicamente com questionamentos identitários (Zanello, 2018).

Identificou-se, porém, um paradoxo na relação entre ciúmes e autoestima. Se, em um primeiro momento, o ciúme do outro é recebido como uma “prova de amor”, quando manifesto em excesso ao ponto de lhes trazer sofrimento, este se torna uma “prova” de que o parceiro não confia nelas, ou de que elas próprias não seriam confiáveis (já que se atribui a eles a legitimação narcísica delas). Patrícia, por exemplo, ao relatar sobre o ciúme do namorado avalia: “eu me sentia um nada, já que a minha palavra não serve de nada e a pessoa não confia em mim”.

A narrativa de Tereza elucida essa questão ao mencionar um “momento específico que ele [o marido] demonstrou de uma forma muito intensa esse ciúme”. Embora ela nomeie como “um momento”, a situação vivida durou mais de 6 meses, em que o marido a acusava de adultério com um colega de trabalho a questionando, repetidamente, sobre detalhes de um episódio; insistia que ela mentia; a seguia e vigiava sua rotina; acessava seu celular e aplicativos de mensagem sem sua autorização; e a acusava, de modo quase delirante, de forjar histórias e tramar com outro homem contextos para enganá-lo. Tereza identificava como mesmo as lembranças desse período lhe traziam sofrimento, contudo, conclui sua narrativa dizendo que “o que mais me dói é a desconfiança de que ele possa pensar que eu possa fazer alguma coisa”. Ou seja, apesar dos constrangimentos e das angústias vividas, o que para Tereza representou mais sofrimento foi vivenciar as suspeitas do marido, entendendo-as como uma ameaça à sua própria honra e a sua valoração como pessoa/mulher.

Outra questão evidenciada nas narrativas diz respeito ao quanto os homens, raramente, nomeavam como ciúme as situações que elas identificavam como tal. Na história de Cora, ela percebe que mudou seu jeito de ser em razão das críticas do marido: “eu sempre fui uma pessoa super extrovertida, então eu brincava, ria, achava natural. Ele, por me ver dessa forma, quando me via me abrindo muito assim para homem e tudo, ele já ia e me chamava atenção”. Seu parceiro alegava que tal postura era de cuidado com ela para que os outros homens não a “interpretassem mal”. Neste ponto, o controle se estendia até mesmo a familiares próximos - “ele reclama até se eu ficar dando muita conversa para o meu genro. Ele fala que isso não é ciúme, mas eu acho que isso é ciúme sim, porque eu não posso conversar muito, sei lá, ou rir demais, ou alguma coisa assim”.

A justificativa de um cuidado ou proteção da companheira corrobora com o discurso que romantiza o ciúme. Como reflete Nise:

“eu via como um nível saudável de ciúmes. Não, não saudável, na verdade. Eu via como um nível normal, da sociedade normal, entendeu? Só que eu não conseguia argumentar, porque sempre era uma coisa...sempre era um ciúme romântico, entendeu? Sempre era essa coisa de “na verdade eu quero te proteger”. E aí, eu ficava meio sem recursos assim para argumentar, né?”

Esse apelo romântico de ser a escolhida e a cuidada por ele surgiu também na narrativa de Virgínia. No início do relacionamento, o parceiro diariamente a presenteava com roupas novas, mas eram “vestidos totalmente fora dos padrões que eu to acostumada a usar, mais ou menos assim, ai eu achava “poxa, é presente! é bonito!”, e ai eu comecei a usar, chegou o momento que o meu guarda-roupa, não me cabia mais nele, eu não existia nele”. Virgínia percebeu, então, que as roupas que ganhava de presente eram estratégias dele para que ela não usasse mais as roupas que a agradavam, mas que o deixavam com ciúme. Ele também reclamava se ela dançasse em uma festa alegando que ela só dançava para seduzir outros homens e, aos poucos, ela foi parando de dançar, algo que, antes do relacionamento, era seu grande prazer.

Sob o discurso romantizado de ser “a escolhida” revela-se, assim, o quão vulnerável para as mulheres é a subjetivação por meio do dispositivo amoroso, sendo essa uma experiencia relacional que conecta, de modo interseccional, questões de gênero e de raça. Como apontamos anteriormente, o racismo atravessa as dinâmicas amorosas, delimitando lugares de maior ou menor possiblidade de “ser escolhida” a depender de parâmetros racializados (Pacheco, 2013; Zanello, 2018).

A narrativa de Lélia evidenciou suas vivências advindas desses lugares hierarquizados e racializados da prateleira do amor:

“eu acho que conta muito também, enquanto mulher negra, né?...dessa questão de que são as que menos namoram, são as que menos tem relacionamento sério, então acho que isso também interfere muito...de caras que você fica e aí falam “eu não quero nada sério” e aí aparecem, uma semana depois, namorando uma mulher branca, entendeu? E aí você gosta, fica afim, se apaixona e depois,., Isso é uma grande constante social na vida de qualquer pessoa negra, né...acho que isso geram cicatrizes né? que mudam a nossa percepção de como é nosso relacionamento”.

Lélia percebe, desse modo, que esse histórico contribui para que ela se sinta insegura e fragilizada quando “consegue um namoro sério” e, assim, na tentativa de manter-se como “a escolhida”, por vezes, viveu dinâmicas abusivas em namoros - “eu não acredito que eu aceitei tantas coisas, né, que me foram impostas”. Pesquisas (Gonzales, 2019; Pacheco, 2013) evidenciam como a dimensão cor/raça regula as preferências afetivas de homens brancos e negros erotizando e hipersexualizando as mulheres negras enquanto atribuem às mulheres brancas o espaço do matrimônio e do comprometimento afetivo, correspondendo a uma concepção ainda “presente no imaginário social brasileiro e nas teorias do luso-tropicalismo freyreano de ‘a branca para casar, a mulata para f.... e a preta para trabalhar’” (Pacheco, 2013, p. 277).

Ciúme “normalx anormal: Apesar dessa romantização, ou mesmo em decorrência dela, um dilema se apresentou nas vivências de todas as entrevistadas: como identificar um possível limiar entre a ideia romantizada do ciúme e os sofrimentos vividos por elas em decorrência dessas experiencias afetivas. A fala de Lélia ilustra essa problemática:

“acredito, não sei se eu tô errada, posso estar errada, mas acredito que o ciúmes em certa medida é bom. Mas, isso que eu tô falando é só um senso comum, mas eu acho que você sentir ciúmes porque você gosta da pessoa, ai a pessoa precisa te respeitar e eu acho que isso quando tá nesse sentido eu acho que é bom assim, mas quando é um ciúmes que te poda, te exclui, te isola e te faz sofrer e aí não é bom, entendeu?”

O nível de sofrimento sentido revelou-se como um possível critério classificatório utilizado, tendo a maioria delas estipulado nomenclaturas próprias para tais diferenciações: Patrícia fala em ciúme x possessão, Cora em “ciúme x ciúme possessivo”, Tereza em “ciúme natural x ciúme intenso”. Essa diversidade de nomenclaturas demonstram, em uma primeira análise, como as dimensões sociais e simbólicas compõem o sentir e o reconhecer as emocionalidades (Le Breton, 2009; Rezende & Coelho, 2010).

Além disso, os esforços por apreender quais seriam as características (a)normais do ciúme direcionado a elas revelam o quanto essa dinâmica psíquica opera a partir de mecanismos de racionalização desenvolvidos por elas na tentativa de amenizar ambivalências tanto da postura do parceiro, quanto dos seus próprios dilemas narcísicos. A racionalização funciona como uma tentativa de camuflar certos aspectos da realidade psíquica, de afastar o afeto presente e de apresentar (para si e para o outro) uma narrativa relativamente coerente (do ponto de vista lógico) e compreensível (do ponto de visto moral) (Laplanche & Pontalis, 1970).

Nas entrevistas, ficou evidente momentos em que as participantes insistiam no caráter sútil ou não prejudicial do ciúme direcionado a elas, ainda que seus relatos e afetos parecessem contradizer essa percepção. Inicialmente, Nise, ao comentar sobre o ciúme de um ­ex-namorado, relata que “aconteciam coisas pequenas, coisas sutis em festas, em seguida descreve as situações: eu ia no banheiro e ele ia atrás, e ele sempre me segurava pela coisinha [cós] da calça, assim…Tipo, a gente ia andando e ele ia me segurando assim, e aí eu ficava tipo, não sei, me incomodava muito com isso...Me sentia um cachorro”.

Tereza, por sua vez, desenvolveu o hábito de sempre avisar ao marido quando fosse se levantar da mesa para ir ao banheiro, mas quando sua amiga presencia a cena há um certo estranhamento ao qual ela tenta justificar: “Eu levantei e falei: tô indo no banheiro. Aí ela [amiga] olhou para mim e falou: “Como assim você tem que avisar que quer ir no banheiro?” Sabe? Porque a relação dela é muito diferente. Então, se eu levantasse simplesmente e saísses, ele ia ficar meio assim: “Ué?” Então, eu tinha que dizer. Para mim, isso não é uma coisa que me incomoda, sinceramente, isso não me incomoda, para mim, é normal”. Nestes dois exemplos, é possível perceber tensões e de angústias envolvidas nas situações, ao mesmo tempo em que há uma insistência em descrevê-las como banais ou inofensivas.

Ainda que a racionalização tenha uma nítida função defensiva, esse processo psíquico se aproxima mais de uma elaboração secundária do que de um mecanismo de defesa, já que não se dirige contra a satisfação pulsional mas atua, principalmente, disfarçando elementos de um conflito defensivo anterior (Laplanche & Pontalis, 1970). A racionalização sob a lógica do dispositivo amoroso funciona como uma forma de proteção narcísica, para salvar a ideia de que se é amada pelo outro.

Como apontado por Laplanche & Pontalis (1970), os processos de racionalização se respaldam (e são reforçados) pelos parâmetros culturais e discursos normalizados socialmente. O que demonstra que as tecnologias de gênero (Lauretis, 2019) constituídas sob a lógica da romantização do ciúme contribuem para que as mulheres racionalizem os impactos psíquicos associados a receber e/ou a sofrer com posturas ciumentas do cônjuge.

Importante pontuar o quanto os esforços para uma racionalização eram perpassados por angústias e, comumente, permearam-se em contextos relacionais abusivos. A própria percepção de que existiria um limiar tênue entre um sofrimento imputado pelo outro (“um ciúme que te poda, te exclui, te faz sofrer”) e um lugar de destino como mulher (ciúme necessário para “se sentir valorizada”) já representa em si uma violência (Saffioti, 1999).

Com os rígidos parâmetros sexistas e a ideia de um “destino de gênero traçado para as mulheres de sujeição aos homens” (Saffioti, 1999, p. 84), o próprio (re)conhecimento das violências torna-se um processo ambíguo, dado as desiguais relações de poder que circunscrevem dinâmicas cruéis nos relacionamentos afetivos em meio a esse aparente “continuum” entre direitos/privilégios dos homens e deveres/destino das mulheres (Guimarães & Pedroza, 2015; Saffioti, 1999).

Muitas participantes nomeavam o “ciúme em excesso” quando conseguiam identificar práticas (ou tentativas) de controle sobre sua vida e sua subjetividade. O relato de Lélia de que o namorado “me fazia não falar com nenhum amigo homem, inclusive bloquear os amigos homens que eu tinha no celular” revela de modo explícito essas práticas que, em grande medida, se configuram como situações de violência.

Ainda assim as ambiguidades em perceber ou racionalizar um limite (in)tolerável a determinados comportamentos ciumentos evidenciam a complexidade de tais experiências. Virgínia relatou as dificuldades vividas com o seu então companheiro quando decidiu realizar seu “sonho de fazer uma faculdade”, mas sua vida “foi virando aquele inferno”. Ela conta que depois de várias tentativas dele de convencê-la a não fazer o curso, ele então insistia para leva-la e busca-la na faculdade, rotina que se estendeu durante os cinco anos de curso: “quando dava o horário da aula, eu olhava assim na porta da sala, tinha uma janelinha, ele já estava lá olhando para ver com quem eu tava, o que eu tava fazendo e tudo. Ele entrava lá dentro de faculdade e ficava me curiando”.

Em sua narrativa, Virgínia percebia certo nível de controle dele, mas só nomeou como sofrimento e violência quando “ele começou a passar pra agressões verbais...piranha, vagabunda. Até então acho que ele nunca tinha ido para esse lado. Eu tinha muito medo porque ele era militar aposentado e ele tinha arma dentro de casa”. Ou seja, os esforços por racionalizar e encontrar explicações plausíveis para vivências abusivas em nome de uma aparente lógica romântica dificultam que situações de violência sejam identificadas e enfrentadas como tal.

Além disso, o fato do ciúme recebido ser comumente mencionado pelos respectivos cônjuges como cuidado e paixão constitui outro fator complicador nessa tarefa de diferenciar um ciúme (a)normal. Como abordado por Machado (1998) em seus estudos sobre violência conjugal, os parâmetros socialmente legitimados do comportamento masculino na conjugalidade correspondem a um funcionamento obsessivo, pautado em uma disposição e em uma demanda narcísica de se perceber como suprindo/sendo tudo para o outro, adotando, assim, estratégias como “se apropriar de um objeto vivo para transformá-lo em objeto morto, e cuidar para que assim permaneça....pode igualmente enobrecer seu objeto de amor enfeiando-o, isto é, transformando-o em objeto cada vez mais indesejável” (Machado, 1998, p. 18).

Transformar o outro em um objeto morto e não desejante, revela, assim a tendência a um “narcisismo total e absoluto” (Lachaud, 2001, p. 126) das manifestações do ciúme. Por isso, Lachaud (2001) argumenta que essa valoração, como algo cotidiano e normal, pode mascarar e invisibilizar um nível intenso de sofrimento e aflição. O que se revela, inexoravelmente, nas vivências das mulheres enquanto objeto de ciúme do outro é que

“o verdadeiro rival que eles [os ciumentos] combatem o tempo inteiro é o desejo, ou melhor, a autonomia do desejo, que tentam controlar. Por isso, o ataque a qualquer interesse do parceiro, a qualquer ideia ou gosto próprio, chegando a parecer sadismo o mau humor com o qual o ciumento percebe alguma alegria no parceiro e tenta boicotá-la”. (Brasil, 2009, p. 18)

Autoresponsabilização delas e desresponsabilização deles: Uma última categoria identificada sobre a experiência de ser objeto de ciúme do outro refere-se a como as mulheres se percebem responsáveis pelo manejo desse ciúme sem esperar que o parceiro se responsabilize e lide com os seus próprios afetos. Pelas narrativas apresentadas, evidenciou-se que, para tal manejo, as principais estratégias adotadas foram as de se subjugar às exigências e às queixas apresentadas por eles.

Cora contou que, como o marido se incomodava e reclamava por ela gostar de conversar e rir perto de outras pessoas, ela foi se controlando para ser “menos expansiva e extrovertida”. Elza e Virgínia pararam de dançar por conta das queixas dos parceiros. Tereza e Lélia se afastaram de amigos homens e mudaram a forma de acessar suas redes sociais virtuais - “eu praticamente não acesso mais Facebook, tirei todo mundo, qualquer homem que ele não conhecesse, que não fosse parente e que não fosse alguém que, de repente, ele conhecesse muito” (Tereza).

Ainda que nas experiências relatadas, as mulheres, por vezes, questionassem seus companheiros e manifestassem desagrado com as exigências deles, percebe-se que, ao longo do relacionamento, elas cediam a essas reclamações, abdicando daquilo que causava incômodo a eles ou encontrando alternativas para não os chatear. Tereza evitava participar de almoços com colegas de trabalho que não tivessem sido marcados previamente. Se Sueli fosse almoçar com um amigo, ela dizia ao companheiro que mais pessoas também estariam presentes. Virgínia tentava, na faculdade, se aproximar e estudar apenas com colegas mais velhas - “até isso, eu escolhi minhas amizades com as mais senhoras, só com o pessoal mais assim da minha idade, porque ele achava que as outras eram putas. Então ele achava minhas amigas que eram solteiras, todas, nenhuma prestava, eram todas putas, vagabundas”.

Esses exemplos demonstram um elevado investimento afetivo/pulsional das mulheres no cuidar da relação e do parceiro, revelando uma rotina cotidiana e intensamente dedicada a tentar evitar incômodos no parceiro. Nas entrevistas, porém, ficou evidente como elas próprias tinham pouca consciência desse desgaste emocional. Nise percebeu essa dinâmica apenas com o término do relacionamento:

“antes eu sempre tava exausta, sempre tava desgastada, então eu sempre me enxerguei como uma pessoa meio velha, né? Assim, cansada e exausta. Só que desde eu terminei meu relacionamento, eu sou uma outra pessoa. Assim que tem muita energia, né? Eu não sei, aí eu pensei, eu acredito que foi dessa forma que o ciúmes me afetou, né? Ele me sufocava no sentido de eu não, não me expressar da forma que eu queria, sabe? Ao ponto de até mudar a forma que eu enxergava as coisas, sabe?”

Essa subjugação ao outro é marcada, especialmente, pelo silenciamento das mulheres, o que envolve uma renúncia de si e uma anulação (ou retenção) de seus afetos e pensamentos com vistas a conseguir manter o bem-estar do parceiro e a harmonia na relação amorosa (Zanello, 2018). Diniz & Pondaag (2004) demonstram como esse silêncio reflete uma posição gendrada da mulher na sociedade apresentando-se como uma estratégia delas de sobrevivência e de enfrentamento perante situações de desigualdade de poder e de violência. Ou seja, silenciar-se é uma performance prescrita e reforçada às mulheres como uma tática para reduzir conflitos e não desagradar o parceiro, com a promessa de assim garantir-se no relacionamento e no lugar de mulher/esposa/pessoa valorizada (Zanello, 2018).

Este silenciamento impede, inclusive, que a temática dos ciúmes seja um ponto a ser conversado e compreendido entre os cônjuges, tanto que todas as participantes relataram pouco diálogo sobre o assunto. De todo modo, é importante destacar que quando marcadores de gênero e de raça se interseccionaram na experiência da conjugalidade, percebemos que novas dinâmicas se associavam ao silenciar-se.

Nise, Rose e Tereza entendiam, por exemplo, que um importante fator relacionado ao ciúme do parceiro era o fato de eles serem negros e se sentirem (ou terem sido) inferiorizados por situações de racismo. Nise e Rose se identificavam como mulheres brancas, enquanto Tereza se declarava parda, embora o marido e seus familiares a considerassem branca. Embora demonstrassem refletir sobre racismo, elas não conseguiam abordar o assunto com o parceiro, principalmente, no tocante a possíveis impactos raciais nas subjetividades deles e nas dinâmicas conjugais estabelecidas. Esse silenciamento parece operar, então, junto com o paradoxo da negação, de certo modo comum nas dinâmicas das famílias inter-raciais: “uma defesa psíquica para evitar o contato com a dor e o sofrimento produzidos pelo racismo em relação a si próprio ou a um familiar querido, mas que na verdade o perpetua, ao deixá-lo intocado” (Schucman, 2018, p. 18).

Nesse sentido, abordar um assunto que poderia trazer desconforto ao outro, ou se posicionar de forma a não satisfazê-lo, retoma dilemas narcísicos da escolha amorosa e de seus impactos identitários. Frente a tais dilemas, as soluções encontradas/definidas pelas participantes sinalizam uma tentativa de se silenciar para se proteger como a “escolhida” e para não questionar o lugar daquele homem que as escolhe, pois se, por um lado, há um poder desigual que atribui a eles este privilégio, por outro, há que se considerar como as estruturas racistas interditam e inferiorizam esse acesso aos homens negros (Bicudo, 2010; Fanon, 2008). Por isso, estes silenciamentos revelam também as ambiguidades nas desiguais relações de poder no que tange questões raciais e de gênero.

Além disso, não só o manejo afetivo do ciúme operava a partir das ambivalências em torno da (auto/des)responsabilização, mas também as justificativas das mais variadas escolhas e ações do parceiro podiam ser ressignificadas como de responsabilidade delas, como ilustra o relato de Nise:

“e eu sempre tive muito medo, assim, dele fazer merda, né? E aí sempre foi uma forma de me controlar também... e eu sempre me incomodei muito quando ele ficava aborrecido. Não gostava, né, de deixar ele aborrecido, então eu evitava, eu não saía, não fazia as coisas. [quando questiono o que ela queria dizer com “fazer merda”, ela explica] ah, me trair. Assim, no impulso, assim, nessa birra, entende? Porque eu não me incomodava dele sair, eu achava tranquilo. O que me incomodava é ele sair emburrado comigo, sair chateado comigo, sair só porque tá com ciúmes e tá com essa birra por eu estar saindo, entendeu?”

Ou seja, desta fala é possível apreender como ela se cobrava por cuidar e garantir o bem-estar dele, e caso ele se chateasse ou mesmo a traísse isso significaria tanto uma falha dela quanto uma impossibilidade de se queixar ou de sofrer, afinal ela teria provocado tal situação.

Quando Virgínia se manifestava contrária às tentativas de controle do parceiro, sua família a criticava: “ninguém aceita o fato de eu achar que eu não tenho que ser submissa, meus cunhados falam que: “isso não existe! marido que não põe rédea em mulher””. Tereza conta que sempre que ela precisa fazer viagens a trabalho, o seu marido “meio que dá uma desequilibrada”, e que após uma crise intensa de ciúme dele, uma amiga a aconselhou: “agora você sabe o que você tem que fazer. Você tem que fazer assim: Não inventa nada não. Não pega um cargo, não inventa de escrever projeto, não faz nada não! Fica bem quietinha, bem submissa”.

Nesse ponto, há de se destacar também como os discursos e práticas dos homens produzem (e também são produtos) destas dinâmicas. As narrativas sobre o ciúme recebido revelaram que é comum que os homens se refiram às possíveis situações de ciúme deles como uma mera reação às ações e às escolhas da parceira. Ou seja, eles também parecem se desresponsabilizar pelo manejo de seus afetos responsabilizando-as por provoca-los.

O marido de Virgínia ao se incomodar porque um homem tinha a assediado, a culpabiliza pela situação e pelo seu incômodo: “tá vendo, se você se desse o respeito, isso não teria acontecido. Porque você quer agir como uma vagabunda, porque vagabunda que veste um biquíni desse”. Já o namorado de Rose dizia que se sentia inseguro/ciumento quando ela usava o celular e então insistia para que eles ficassem juntos o tempo todo para que ela não tivesse como usar o aparelho e ele, assim, sentisse menos ciúmes. Frente a estas queixas, caberia a elas então - na percepção deles e delas - abdicar destes comportamentos ditos provocativos para manter a harmonia da relação (Diniz & Pondaag, 2004; Zanello, 2018).

Sobre o ciúme que sentem

Riscode serem abandonadas: A narrativa de Conceição sobre suas experiências em sentir ciúmes explicita características fundamentais desta categoria de análise. Para ela, “quanto mais eu gosto da pessoa, mais ciúmes eu tenho”. Por se perceber uma pessoa muito ciumenta nos relacionamentos amorosos, mas também com familiares e amigas, ela avalia que o “ciúme está na minha vida desde sempre”. No atual relacionamento, ela diz que pensa o tempo todo sobre isso, imaginando que ele pode traí-la, que outras mulheres podem interessá-lo, que ela sofreria em uma separação ou em ser abandonada, mas ainda assim afirma que só “agora ele percebeu que eu sou um pouquinho mais ciumenta do que ele esperava, mas eu tento não demonstrar, 90% do meu ciúme fica só para mim, os outros 10 é o que eu falo, só quando alguma coisa começa a realmente incomodar muito”. O dilema que ela vivia no momento da entrevista é que, por razões profissionais, o marido faria diversas viagens a trabalho, e que nesse contexto ela disse a ele que ficava insegura com a situação, mas que entendia e apoiava a ida dele - “olha, eu boto fé, acho que você tem que ir ....é a sua oportunidade, vai”.

Os seguintes aspectos se destacam na análise empreendida: (a) um discurso que naturaliza a ideia de que as experiências de gostar e de sentir ciúmes seriam indissociáveis; (b) um medo intenso de ser abandonada ou traída; (c) um investimento emocional elevado em disfarçar ou silenciar suas queixas em relação ao próprio ciúme sentido; e (d) uma percepção de que o ciúme seria um problema individual e caberia a ela exclusivamente o manejo desse sentimento.

O discurso da romantização do ciúme, presente nas categorias relacionadas ao ciúme recebido, se apresenta aqui também quando as participantes mencionam o próprio ciúme (sentido): “ele está muito atrelado, sim, a quantidade de amor que eu sinto” (Conceição) “ou se eu não tenho ciúmes nenhum da pessoa, é porque aquela pessoa, para mim, não significa tanta coisa” (Lélia).

Apesar de uma aparente similaridade nessa romantização, aponta-se aspectos psicodinâmicos diferenciados para as experiências de sentir e receber ciúmes. Se as mulheres romantizaram o ciúme recebido em uma tentativa de afirmar-se como “a escolhida”, quando se trata do próprio ciúme, o que se revela é um esforço por manter-se nessa relação e um medo de não corresponder, plenamente, ao desejo do outro.

Contudo, ao mesmo tempo que se apresenta essa demanda de ser tudo para o outro, os dilemas do ciúme revelam em si mesmo tal impossibilidade. Como Rose pontua: “eu até falava para ele “eu não me sinto a menina dos olhos pra você”. E eu queria ser e eu sentia que eu não era”. E assim, o ciúme se torna, “pois, uma prova da perda. O próprio sujeito se perde, de resto, pois na identificação com o que ele acreditava ser o objeto do desejo do Outro, algo vacila de seu próprio ser” (Lachaud, 2001, p. 100).

O ciúme sentido por elas, desse modo, se relaciona com a demanda narcísica de garantir-se amada e com a percepção de que há um risco constante de que seus companheiros possam encontrar em outra mulher a plenitude/satisfação que elas próprias não teriam sido capazes de oferecer a eles. Por essa razão, os ciúmes delas são vivenciados intensamente como um “medo de ser abandonada, de perder o relacionamento, de ser traída ou de ser trocada”, como se esse afeto demonstrasse uma ameaça de perder seu lugar na prateleira do amor ou, mesmo denunciasse quão vulnerável, para elas, é a subjetivação por meio do dispositivo amoroso.

Apesar dos relatos de que tais medos seriam frequentes em seus cotidianos, de modo similar revelaram-se constantes os esforços pessoais para não manifestá-los para o parceiro. Nesse âmbito, surgiram justificativas como: evitar demonstrar fraqueza e assim ficar vulnerável para que o parceiro a manipule (Patrícia); não parecer/ser “uma mulher chata” (Conceição e Cora); ou aparentar ser uma pessoa “segura de si” (Elza) mesmo quando percebiam que essa sensação de insegurança se associava a situações concretas de traição do parceiro.

Nessa perspectiva, foi comum as participantes entenderem seu ciúme como um problema individual, em relação ao qual se responsabilizavam em controlar e se culpabilizavam caso o parceiro percebesse ou se incomodasse com suas queixas ciumentas. Narrativas sobre baixa autoestima apareceram como uma explicação causal para os ciúmes sentidos, e até para justificar a traição do parceiro - “se a mulher não tem autoestima, ai fica com ciúme, aí o marido fica de saco cheio e às vezes você desencadeia mesmo alguma coisa que ele vai fazer, de tanto você pegar no pé dele, né?” (Cora).

Percebe-se, assim, que a dinâmica de autoresponsabilização inclui desde o ciúme sentido às possíveis repercussões desse afeto no relacionamento e nos comportamentos do parceiro. O que significou que, embora as mulheres associem o seu ciúme ao medo de ser traída, mesmo quando elas descobriam uma traição, a tendência foi que elas continuassem no relacionamento. Mecanismos de racionalização e de denegação (ele fez isso, mas eu o amo) participaram da configuração desse contexto subjetivo, como ilustra a fala de Cora:

“nunca peguei nada dele, de vacilo, entendeu? Assim, claro que já houve uma traição. Já, mas dizendo ele que foi uma coisa rápida, sem muito envolvimento. Mas, assim, ele não deixa transparecer nada assim...Ele me passa confiança, sempre me passou confiança. Eu...o problema está em mim: eu ficava insegura, ficava totalmente insegura, começava a pensar besteira...”

Quando Elza descobre uma traição do parceiro, ela também demonstra se culpabilizar pela ação dele: “sofri muito e eu perguntava para ele se tinha algum problema em mim, algum problema no nosso relacionamento, no beijo, no sexo sempre perguntei tudo, e ele falava que tava tudo bem”. Nestes casos, destacou-se como há uma tolerância das mulheres com as infidelidades do parceiro, o que evidencia a lógica da poligamia consentida aos homens e demonstra como as gramáticas de gênero da nossa sociedade valoram de modos completamente opostos o comprometimento afetivo de homens e mulheres (Lagarde, 2001) . Estudos socioculturais apontam como os tabus referentes ao adultério e ao controle da sexualidade se associam com as experiências de sentir e manifestar ciúmes, especialmente se existe culturalmente um duplo padrão para as questões de gênero em que a infidelidade masculina é mais aceitável, enquanto a feminina é execrada (Clanton, 2007).

Além dessa racionalização em torno do adultério masculino, destacou-se o fato de que as mulheres avaliam que um comportamento inadequado do parceiro (como uma traição) repercutiria em uma valoração negativa delas, mas não necessariamente deles. Sueli ao comentar o quanto receia ser traída, conclui que: “a grande questão era ser feita de trouxa, ser passada pra trás....não vou ser mulher trouxa”. Ou seja, uma traição dele desvalorizaria ela. Essa sensação de serem inferiorizadas ou deslegitimadas por eles retorna, assim, à discussão anterior de que o dispositivo amoroso, enquanto processo de subjetivação central para as mulheres, atribui aos homens um lugar privilegiado de validar ou não a honra e as qualidades da mulher (Zanello, 2018).

Ciumenta: de insegura a louca?: As desigualdades de poder - até certo ponto implícitas nas dinâmicas da conjugalidade - se revelaram imbricadas nas experiências ciumentas das mulheres e foram explicitadas quando os níveis de sofrimento se intensificam e os processos de violência psicológica foram identificados. Neste ponto, uma dinâmica comumente observada nas narrativas foi a tentativa dos parceiros de desqualificar as mulheres quando estas mencionavam sobre ciúmes ou sobre suas desconfianças em relação a situações de infidelidade deles.

Mesmo em situações que as participantes descobriam um interesse ou um envolvimento extraconjugal do parceiro, eles insistiam no discurso de que elas seriam inseguras e frágeis pela baixa autoestima. Neste ponto, é ilustrativa a fala de Elza: “eu chegava e conversava: “olha, eu to vendo isso de errado”, aí a pessoa sempre fala né “você tá louca!””. A acusação de serem loucas, instáveis emocionalmente ou delirantes evidencia um padrão de manipulação emocional que corresponde ao fenômeno do gaslighting (Abramson, 2014), configurando um quadro de violências psicológicas.

Lélia, por exemplo, relatou que, em um episódio, ela viu no celular do namorado que ele havia trocado fotos de mulheres nuas com um amigo. Por considerar essa postura desleal, ela o questionou sobre isso e ele se posicionou dizendo:

“isso é coisa da sua cabeça, você tá ficando louca” aí ele ficava rindo de mim enquanto eu tava nervosa. Ele: “olha como é que você tá, olha o seu estado”, entendeu? [...] “nossa, socorro, olha que loucura, você é muito louca” e chegou um momento que eu duvidei da minha sanidade mental, entendeu? eu duvidei assim não só da minha sanidade mental, duvidei do que eu vi! Eu fiquei: “Será que eu vi mesmo ou será que não?”

O gaslighting é um termo utilizado para descrever dinâmicas de manipulação emocional, na qual o autor do gaslighting tenta (conscientemente ou não) induzir em alguém a sensação de que suas reações, percepções, memórias e/ou crenças não são apenas equivocadas, mas totalmente sem fundamento - paradigmaticamente, tão infundadas que qualificaria o outro como louco. Essa dinâmica é diferente de uma simples discordância, pois envolve um processo em que, por repetidas vezes, há um descrédito do outro, que não é reconhecido em seu lugar de interlocutor/sujeito e que objetiva que este não mais se reconheça como tal (Abramson, 2014).

O gaslighting pode ocorrer em diferentes contextos e se configurar em relações interpessoais independentemente dos padrões de gênero. Contudo, Abramson (2014) enfatiza que, na maior parte das vezes, os alvos do gaslighting são as mulheres e os perpetradores os homens, o que coincide com dois fatores que contribuem para um efeito mais intenso dessa dinâmica: o âmbito de desigualdade de poder no qual o gaslighting ocorre e o grau de importância e afeto atribuído àquele que faz gaslighting.

Além disso, as normas sexistas dos scripts culturais apresentam-se como substrato e como produto das dinâmicas de gaslighting, uma vez que existe uma pedagogia afetiva que disserta sobre como os homens seriam confiantes e certeiros em suas atitudes e as mulheres, inseguras quanto às suas opiniões e frágeis psiquicamente (Abramson, 2014; Zanello, 2018).

Logo, tais normas são produzidas e reforçadas pelo gaslighting que visa minar e deslegitimar as experiências, as crenças e as percepções de uma outra pessoa, como se ela perdesse a si mesma - ainda que de modo parcial e temporário (Abramson, 2014). Sendo assim, à medida que tais dinâmicas são repetidas, invisibizadas e naturalizadas produz-se um processo de sofrimento e de adoecimento psíquico. Situações como essa foram frequentes em um namoro de Lélia, que durou apenas 3 meses, mas lhe acarretou um intenso sofrimento psíquico:

“então eu tinha surtos, assim, eu virei o estereótipo da mulher histérica do Freud, sabe? Eu tinha, completamente, surtos mesmo...porque ele me prendia, prendia que eu gritava - e não que adiantasse algo já que ele era surdo - mas eu ficava completamente desesperada, tinha crise de ansiedade, vomitava, teve dia que eu vomitei 8 vezes numa crise de ansiedade por causa dessas coisas”.

Essa carga emocional intensa envolvida nos relacionamentos perpassados pelo ciúme revela assim o quanto o alto investimento psíquico por parte das mulheres na manutenção do relacionamento e na cobrança que fazem a si próprias para garanti-lo, configuram espaços de vulnerabilidades que se complexificam à medida que seus cônjuges passam a cometer violências contra elas. Além do mais, é importante pontuar que as três participantes da pesquisa (Elza, Lélia e Virgínia) que relataram situações de violências psicológicas e morais cometidas por companheiros são negras, evidenciando como as interseccionalidades de gênero e raça configuram experiências de opressão às mulheres negras. No Brasil, elas são as principais vítimas da violência doméstica e de feminicídios (Waiselfisz, 2015).

Rivalidade feminina acirrada por dilemas raciais e estéticos: A terceira categoria identificada na experiência de sentir ciúmes refere-se a comparações com outras mulheres. Em todas as narrativas, constatou-se a lógica de uma rivalidade, seja concreta ou simbólica. Como rivalidade concreta, consideramos situações de sentir ciúmes de mulher(es) específica(s) com as quais elas temem que o parceiro estabeleça relacionamentos afetivo-sexuais e/ou com as quais o parceiro já tenha se relacionado. Já a rivalidade simbólica, apresentou-se a partir do sentir ciúme de mulheres que não compartilham de uma realidade factual com elas, como pessoas públicas de mídias televisivas, redes sociais ou revistas pornográficas.

A história de Elza elucida a associação do seu ciúme com uma rivalidade concreta, pautada em quanto ela se percebia a preferida do amor do outro. Quando iniciou o relacionamento, o parceiro mantinha um relacionamento com outra mulher, mas ao formalizar o namoro ela afirma que: “eu não tinha ciúmes dela de jeito nenhum, né? Para mim, era coisa passada, se ele deixou de ficar com ela e escolheu namorar comigo, me pedir em namoro e tudo, então realmente ele não gostava dela, e passou a gostar de mim”. Quando descobriu que ele tinha a traído com essa outra mulher, direcionou sua decepção mais a ela do que a ele:

“pelo fato de a gente mulher, a gente tem que se unir e não destruir uma à outra. Eu fiquei assim mesmo com ela. Nossa! A gente fez o curso juntas... Ela mesmo viu o tanto que ele fez mal a ela trocando ela por mim. Por que ela quer isso pra ela de novo? Entendeu?”

Logo, em um primeiro momento Elza se compara com essa outra mulher como uma forma de valorar a si própria a partir da escolha do parceiro em namorá-la. Porém, quando descobre a traição e se depara com a ideia de ser preterida por ele, ela entende tal circunstância como um indício de falha dela: “chorei muito, me senti muito mal, porque? porque eu sempre perguntava para ele se tinha algum problema em mim [...] querendo ou não a gente coloca a culpa em si, a gente fala “que que eu fiz para não ter dado certo?””.

Em relação à rivalidade simbólica, algumas entrevistadas relataram sentir ciúmes do parceiro se ele admirava alguma atriz ou gostava de ver revistas com nudez feminina. Neste ponto, o relato de Rose se destacou ao contar que até no momento de assistir um filme com o namorado ela escolhia um em que não atuassem atrizes muito bonitas para evitar enciumar-se: “eu ficava bem triste, não me sentia suficiente. E se a pessoa ela vai assistir, ou vai olhar um Instagram ou vai abrir uma notícia aleatória, ela não necessariamente tá me dizendo que eu sou horrível, mas eu lia desse jeito, sabe? era bem terrível pra mim mesma”.

Embora a primeira dimensão dessa rivalidade se associe mais diretamente com o receio por uma infidelidade do parceiro; e a segunda sinalize um medo de ser inferiorizada quando comparada a outras mulheres, as duas dinâmicas revelam uma mesma premissa norteadora: um questionamento narcísico gendrado. A dimensão narcísica se revela tanto pela constatação (ou pelo receio) de não estar na posição daquela que representa “tudo” para o outro, quanto pelo impacto identitário sentido na frustração desse ideal. A fala de Conceição ilustra tais dilemas: “o meu medo é de confirmar que eu não sou tudo aquilo que eu quero ser”. Uma leitura gendrada dos processos narcísicos, contudo, explicita o que na experiência das mulheres significaria este desejo do “todo”: ser a escolhida e a que supre a “tudo” que o outro deseja.

Neste ponto, o rivalizar-se com outras mulheres se apresenta como uma tentativa de proteger a legitimidade advinda do “ser escolhida”, ao mesmo tempo que evita entrar em contato com tais dilemas. Se a demanda ciumenta revela, por um lado, uma reivindicação narcísica por ser o tudo para o outro, quando esta impossibilidade se evidencia a rivalidade parece disfarçar essa falha: “eu não possuo todo o objeto do amor (ou todo o amor do objeto amado) não porque isso seja impossível, mas porque alguém me rouba” (Brasil, 2009).

Além disso, considerando que na nossa cultura as mulheres são subjetivadas a partir do dispositivo amoroso, tem-se que o principal parâmetro presente nas lógicas da rivalidade relaciona-se ao ideal estético (Zanello, 2018). Ou seja, a beleza como o principal fator a ser considerado na comparação e na valoração das mulheres no que seria uma disputa por ser escolhida/amada. E este ideal na sociedade brasileira, como apontado anteriormente, é, sobretudo, branco e jovem.

Interessante notar que, para as entrevistadas de cor preta e parda, o caráter racial desses padrões estéticos é muito evidente, enquanto que as entrevistadas brancas demonstraram pouca percepção em relação a tais dinâmicas. Embora essas diferenças possam parecer paradoxais, na verdade, elas apenas explicitam o que os estudos sobre a branquitude têm revelado: que as pessoas brancas não pensam sobre sua condição racial, colocando-se como parte do grupo de referência de um universal-humano, e, em consequência disso, ou se silenciam (quando possível) sobre o assunto racial, ou revelam (quando questionadas) uma percepção da raça não como diferença, mas como desigualdade/hierarquia (Bento, 2002). Ou seja, há uma lógica ambígua de ocultamento e negação do racismo mantida por uma cumplicidade narcísica no discurso da branquitude, em que evita-se possíveis desconfortos ou questionamentos em abordar o quanto os próprios privilégios brancos decorrem, produzem e mantém as estruturas racistas (Bento, 2002; Kilomba, 2019; Schucman, 2014).

Considerando o caráter silenciado(r) do racismo brasileiro, optamos por perguntar nas entrevistas se a participantes consideravam que questões raciais se associavam, de algum modo, com os ciúmes ou com a forma com que se relacionavam amorosamente. A tal questionamento, as mulheres brancas percebiam possíveis associações apenas quando o parceiro não era branco, demonstrando o caráter relacional das identidades/identificações raciais (Schucman, 2018). Já no caso das entrevistadas negras, identificou-se que, independente da cor/raça do parceiro, elas demonstravam já terem refletido sobre o assunto em outros contextos. Ainda assim destaca-se que a temática da racialidade praticamente não apareceu de forma explicita e espontânea nas narrativas, mas a partir do momento em que se construiu uma abertura a esse diálogo, diversas reflexões emergiram nas entrevistas.

As narrativas das mulheres negras demonstram as angústias do lugar de opressão interseccional vivida, revelando como as lógicas racistas impactam, de modos diversos, seus processos de subjetivação e de afetividade. Ora por se compararem e se perceberem em desvantagem: “parece que eu tô numa grande competição com todas as mulheres do mundo e nessa grande competição enquanto mulher negra eu tô perdendo, entendeu? a todo momento essa é a sensação que eu tenho” (Lélia). Ora por serem julgadas/cobradas a se tornarem uma (boa) representante de seu contexto racial, como ilustrado na narrativa de Sueli e explicado por Kilomba (2019): “um status de representar a negritude anuncia o racismo: ela tem de representar aqueles/as que não estão lá, e pessoas negras não estão lá porque seu acesso às estruturas é negado. Um círculo duplo, de inclusão e exclusão” (p. 173):

“Tem uma questão de ser negra e ser de uma classe média, então a gente não tinha contextos em que tinha outros negros. Então minha mãe sempre falava “Olha, se comporte que nós somos os únicos negros aqui.”. Ou então, eu tinha uma visão que eu tinha que fazer a mais para me destacar, né? Então tem muito dessa competição dentro de mim assim. Então eu tinha que ser a melhor aluna ou a melhor filha, né?.... Só que eu sofria com isso, tinha um custo, né? Eu tinha dores de estômago todo final de semestre; eu tinha que me destacar em qualquer ambiente. Então acho que essa competição dá uma sensação de que “Eu tenho que tá atenta. Eu tô na frente, e tem alguém atrás, tá vindo, não posso ser passada para trás”, sabe? [...] Então isso aparece nos ciúmes também, um pavor de ser passada pra trás” (Sueli)

Neste ponto, destaca-se como a experiência de rivalizar-se com outras mulheres (na tentativa de afirmar-se como a preferida/especial) está associada com a de sentir-se constantemente ameaçada pelo risco de ser deslegitimada pelo outro; mas, sobretudo, como o racismo atravessa tais processos. Por isso, é fundamental compreender como os discursos e práticas raciais impactam nas emocionalidades e performances, desde a lógica do silenciamento às configurações de disputa ou competição.

Além dos critérios raciais, a questão geracional também se fez presente nos discursos das mulheres sobre os ciúmes que sentiam e sobre como se comparavam com outras mulheres. O incômodo com a ideia de envelhecer e o medo de que o parceiro se interessasse por mulheres mais jovens esteve presente tanto nas falas de uma entrevistada de 29 anos quanto de 52. Deste modo, evidencia-se que mesmo um lugar “privilegiado” da prateleira do amor revela uma armadilha já que “1) processos normais do desenvolvimento fazem com que a manutenção desse lugar seja sempre efêmera e provisória (por exemplo, o envelhecimento e ganho de peso); 2) sempre haverá a possibilidade de novos ‘produtos’/mulheres que se encaixem melhor nesse ideal” (Zanello, 2018, p.84).

Por fim, essa vivência da comparação e da busca por corresponder a determinado ideal estético tem sido potencialmente intensificada em razão da cultura contemporânea das redes sociais virtuais e do culto à imagem e a padrões de beleza inatingíveis e insustentáveis. Não foi coincidência, portanto, que as experiências ciumentas tenham sido comumente associadas a conflitos que se deram em torno da virtualidade ou a partir das dimensões virtuais dos relacionamentos. Logo, surgiram com frequências relatos de controlar o celular do parceiro (ou ter seu celular acessado por ele, com ou sem sua anuência); verificar com quem conversava nas redes sociais; fiscalizar que tipo de perfil/assunto atraía o outro na internet.

Rose admitiu “monitorar facebook, twitter e instagram” do namorado e ter tido o hábito de cancelar nos aplicativos dele, caso ele estivesse “seguindo mulheres bonitas”. Porém, posteriormente, ela reflete que

“eu tinha muito ciúmes de uma amiga dele, que hoje eu vejo que eu que achava ela linda e eu tinha mais obsessão por ela do que ele. Eu olhava o instagram dela o tempo inteiro, era uma coisa meio doente assim....eu ficava com raiva dela se ela postasse uma foto de biquíni, sacou? e tipo, eu pensei, meu deus, aí foi aí que eu comecei a falar “eu to virando uma pessoa que eu não quero ser....meu deus eu tô me transformando em uma pessoa horrível, uma pessoa misógina que odeia mulheres.”

Esse relato demonstra que o lugar e o significado que a pessoa ciumenta atribui para seu dito rival representa suas próprias idealizações e denuncia suas frustrações em não atingi-las (Freud, 1922/2006a; Lachaud, 2001), mas que estes processos narcísicos precisam ser lidos a partir de uma ótica de gênero (Zanello, 2016, 2018). Como destaca Brasil (2009), “o rival amado constitui-se, via identificação, em esteio narcísico contra a fragilidade das posições sexuadas, masculina ou feminina. Os rivais são idealizados, portadores imaginários ou da potência masculina ou do segredo da feminilidade e da sedução” (p. 15).

Interessante destacar ainda que Rose manifestou uma posição de disputa com outras mulheres, mas, ao mesmo tempo, falou de um esforço para questionar e não reforçar a lógica da rivalidade feminina. Essa problemática também apareceu na narrativa de Patrícia quando fala sobre avaliar se uma pessoa está mesmo demonstrando alguma ameaça, e, em seguida, parece recuar em sua análise:

“esse termo ameaça, às vezes, me deixa um pouco incomodada, até porque, assim, a gente não vive mais no tempo da idade média, da pré-história em que, enfim, a gente tem que ficar lutando por homem, até porque é só uma pessoa, entende? Então, assim, querendo ou não a gente vive em uma sociedade patriarcal de uma maneira, assim, muito acentuada, então, a rivalidade feminina sempre foi uma coisa que acontece desde que a gente é criada, desde criança basicamente, a gente sempre é incentivada a competir com outras mulheres, assim por um homem que nem é lá, assim, essas coisas, sabe?”

Estas reflexões vão ao encontro do que Zanello (2018) discute sobre como os homens lucram com o dispositivo amoroso seja recebendo o cuidado e o investimento afetivo de suas parceiras, seja ocupando o lugar de avaliar o valor das mulheres (em termos de estética e de performance) instigando comparações e julgamentos. Por isso, destaca a autora que:

A maioria dos homens acredita narcisicamente nesse suposto valor do desespero das mulheres por eles; mas, de um ponto de vista psicodinâmico, a origem desse investimento é outra: por ser identitário, trata-se de algo narcísico. A ‘disputa’ entre elas não é por ele, mas pelo reconhecimento (‘ser escolhida’) que dele pode advir. (Zanello, 2018, p. 89)

Considerações finais

Esta pesquisa se propôs a compreender como o ciúme se configura e é ressignificado na experiência de mulheres em relacionamentos heteroafetivos abarcando as dimensões do sentir e do receber esse afeto. Evidenciou-se o quanto as experiências ciumentas são lidas de formas diversas a partir de como os sujeitos se posicionam e são posicionados como mulheres ou homens. Nesse sentido, a forma como as participantes referiam-se ao próprio ciúme foi significativamente diferente de como entendiam tal sentimento nos homens. Além disso, as narrativas das mulheres negras demonstraram como suas vivências afetivas e, consequentemente, suas subjetividades são atravessadas por práticas racistas. Por isso, destacamos como as emocionalidades precisam ser lidas sob uma ótica de gênero, de raça e de suas respectivas interseccionalidades.

Nessa perspectiva, o conceito de dispositivo amoroso (Zanello, 2018) revelou-se fundamental na análises empreendidas de como os ciúmes se configuram em suas experiências amorosas. A partir da metáfora da prateleira do amor, entende-se que o ser desejada e escolhida para um relacionamento amoroso é vivenciado por elas como uma conquista pessoal, que as interpela identitariamente revelando dilemas narcísicos sobre o ser mulher e o sentir-se legitimada enquanto pessoa/sujeito/mulher. Como demonstrado neste estudo, há a percepção do ciúme de um parceiro amoroso como um indício da escolha e da preferência deles por elas, o que contribui para que elas romantizem o ciúme recebido; tentem racionalizar e minimizar o próprio sofrimento quando identificam um excesso ciumento no outro; e se autoresponsabilizem por cuidar e evitar incômodos do parceiro, em geral, se silenciando e se sujeitando às exigências dele a fim de manter o relacionamento. Se o ciúme deles foi visto como uma possibilidade de garantia de seu lugar como escolhida, o ciúme sentido por elas se apresentou como uma ameaça a tal lugar, uma vez que revelam o risco de serem abandonadas e perderem o relacionamento; o medo de serem desqualificadas ao serem tratadas como inseguras ou loucas; e o acirramento da disputa com outras mulheres por um (bom) lugar na prateleira do amor.

Estas dimensões subjetivas apresentadas precisam ser compreendidas de modo contextualizado a questões sociais, culturais e relacionais, dado que o dispositivo amoroso se configura enquanto processo e produto de uma rede de significações e de elementos diversos (Zanello, 2018). Neste ponto, podemos destacar o quanto os discursos masculinos e outras tecnologias de gênero (como músicas, filmes, etc.) reforçam a ideia de que o controle e a subjugação dos corpos e das subjetividades das mulheres seriam formas de cuidado e de proteção para elas. Além do mais, é possível perceber que o receio das mulheres de serem valorada negativamente esteve associado com práticas de gaslighting cometidas por parceiros que se utilizavam de estratégias de manipulação emocional para ridicularizá-las e responsabilizá-las por conflitos sobre ciúme.

Destaca-se, assim, o quanto as experiências ciumentas e suas configurações nas relações heteroafetivas evidenciam relações de poder, enredadas entre posições de privilégios concedidos aos homens e de vulnerabilizações atribuídas às mulheres. Afinal, nessa pedagogia afetiva caberia a eles o poder de escolha e de legitimação delas, enquanto elas cuidariam do bem estar do outro e da harmonia conjugal, a fim de garantir-se como a preferida por eles, sob o risco de que um preterimento afetivo signifique uma deslegitimação de si como pessoa/sujeito/mulher.

Essa dinâmica entre ser preferida ou preterida apareceu mesmo em narrativas de mulheres que não mantinham relacionamentos monogâmicos e, por isso, não percebiam como problema ou temor a ideia de relacionamentos extraconjugais. Nísia, por exemplo, vivia um relacionamento poliamoroso, mas vivenciou muito ciúme quando um dos seus namorados pareceu privilegiar uma amiga em detrimento dela: “ela fica sentada no banco da frente, usando a jaqueta do meu namorado?”. Esta situação revela duas questões fundamentais a serem salientadas: a compreensão de que os dilemas de ciúme extrapolam questões de infidelidade; e a percepção de que a flexibilização de padrões de monogamia e de conjugalidade não necessariamente cessam angústias e conflitos decorrentes dos ciúmes.

Ainda assim aponta-se a importância de que novos estudos sejam desenvolvidos de modo a compreender como as emocionalidades, incluindo os ciúmes, são vivenciadas em relacionamentos pautados por diferentes acordos afetivos, como relacionamentos abertos ou poliamorosos (Pilão & Goldenberg, 2012). Ademias, é importante ressaltar que esta pesquisa focalizou a experiência de mulheres cis em relacionamentos heteroafetivos, não explorando, portanto, como questões ­relacionadas às diversidades sexuais e de gênero podem se interseccionar nas experiências ciumentas. Sugere-se que estudos posteriores discutam tais temáticas.

Por fim, é relevante mencionar que essa análise gendrada das emocionalidades pressupõe um jogo duplo em relação ao próprio construto de gênero, pois ao mesmo tempo que partimos do pressuposto de que seu uso é imprescindível, também reconhecemos sua insuficiência ontológica em afirmar ou garantir algo próprio da categoria de mulheres ou homens (Butler, 2019). Nos apropriamos, contudo, de certa lógica binária ao discutir sobre as experiências de homens e mulheres, e sobre as relações estabelecidas entre eles, por reconhecer que os processos de subjetivação de nossa cultura historicamente situada privilegia determinadas performances e scripts a partir de construções gendradas e racializadas dos corpos, enquanto homens ou mulheres, brancos/as ou negros/as. Deste modo, foi estabelecido uma análise norteada por um binarismo estratégico a fim de favorecer uma genealogia reflexiva a partir do gênero (Butler, 2019; Zanello, 2018).

Logo, não se pretendeu neste trabalho produzir essencializações de características designadas como femininas ou reificações sobre sentidos e significados dos ciúmes. Nesse sentido, a busca por estabelecer um diálogo entre os Estudos de Gênero e de Raça com a Psicanálise se fundamenta à medida que reconhecemos as dimensões psíquicas e inconscientes das subjetividades e buscamos incorporar o âmbito dos desejos nas configurações subjetivas, sociais e culturais (Butler, 2012; Gonzales, 2019; Zanello, 2016, 2018). Conclui-se, portanto, que as emocionalidades emergem frente a scripts culturais e se configuram a partir do modo como as relações afetivas são construídas e valoradas pelos sujeitos, em um jogo de forças em que o ciúme se faz presente denunciando (e prenunciando) dilemas narcísicos gendrados e racializados.

Referências

Abramson, K. (2014). Turnig up the lights on gaslighting. Philosophical Perspective, Ethics, 28, 1-30. [ Links ]

Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Edições 70. [ Links ]

Bauer, M. W., & Gaskell, G. (2002). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: Um manual prático (2a Ed.). Editora Vozes. [ Links ]

Bento, M. A. S. (2002). Branqueamento e branquitude no Brasil. In I. Carone & M. A. S. Bento (Eds.), Psicologia social do racismo - estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 25-58). Vozes. [ Links ]

Bicudo, V. L. (2010). Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo. (M. C. Maio, Ed.). Editora Sociologia e Política. [ Links ]

Braga, A. (2015). História da beleza negra no Brasil: discurso, corpos e práticas. EduFSCAR. [ Links ]

Brasil, A. (2009). Psicopatologia da Vida Amorosa. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 37, 9-21. http://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/psi-46376Links ]

Butler, J. (2012). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. (4a Ed.). Civilização Brasileira. [ Links ]

Butler, J. (2019). Os atos performáticos e a formação dos gêneros: um ensaio sobre fenomenologia e teoria feminista. In H. B. de Hollanda (Ed.), Pensamento feminista: conceitos fundamentais (pp. 213-230). Bazar do Tempo. [ Links ]

Carneiro, S. (2005). A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. (Tese de Doutorado não publicada). Universidade de São Paulo, São Paulo - SP. [ Links ]

Chauí, M. (2003). Ética, política e violência. In T. Camacho (Ed.), Ensaios sobre violência (pp. 39-59). Edufes. [ Links ]

Clanton, G. (2007). Jealousy and Envy. In J. E. Stets & J. H. Turner (Eds.), Handbook of the Sociology of Emotions (pp. 410-442). Springer. [ Links ]

Collins, P. H. (2016). Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Sociedade e Estado, 31(1), 99-127. https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006 [ Links ]

Crenshaw, K. (1994). A Intersecionalidade na Discriminação de Raça e Gênero. Annals of Saudi Medicine, 14(5), 399-404. https://doi.org/10.5144/0256-4947.1994.399 [ Links ]

Diniz, R. S., & Pondaag, M. (2004). Explorando significados do silêncio e do segredo nos contextos de violência doméstica. In J. S. N. F. Bucher-Maluschke, G. Maluschke, & K. Hermanns (Eds.), Direitos humanos e violência: desafios da ciência e da prática (pp. 171-185). Fundação Konrad Adenauer. [ Links ]

Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA. [ Links ]

Fontanella, B. J. B., & Júnior, R. M. (2012). Saturação Téorica em Pesquisas Qualitativas: contribuições psicanalíticas. Psicologia em Estudo, 17(1), 63-71. https://doi.org/10.1590/S1413_7372201200010 0008 [ Links ]

Fontanella, B. J. B., Ricas, J., & Turato, E. R. (2008). Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: Contribuições teóricas. Cadernos de Saúde Pública, 24(1), 17-27. https://doi.org/10.1590/s0102-311x2008000100003 [ Links ]

Foucault, M. (1979). Microfísica do Poder. Graal. [ Links ]

Freud, S. (2006a). Alguns Mecanismos Neuróticos no Ciúme, na Paranóia e no Homossexualismo. In ESB , Vol. XVIII (pp. 233-248). Rio de Janeiro - RJ: Editora Imago. (Original publicado em 1922). [ Links ]

Freud, S. (2006b). Sobre o Narcisismo. In ESB , Vol. XIV (pp. 75-110). Rio de Janeiro - RJ: Editora Imago . (Original publicado em 1914). [ Links ]

Gonzales, L. (2019). Racismo e sexismo na cultura brasileira. In H. B. de Hollanda (Ed.), Pensamento Feminista Brasileiro: formação e conceito (pp. 237-256). Bazar do Tempo (Original publicado em 1984). [ Links ]

Guimarães, M. C., & Pedroza, R. L. S. (2015). Violência Contra a Mulher: Problematizando Definições Teóricas, Filosóficas E Jurídicas. Psicologia & Sociedade, 27(2), 256-266. https://doi.org/10.1590/1807-03102015v27n2p256 [ Links ]

Hooks, B. (2010). Vivendo de Amor. Retrieved January 5, 2020. https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/Links ]

Kilomba, G. (2019). Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. Cobogó. [ Links ]

Küchemann, B. A., Bandeira, L. M., & Almeida, T. M. C. (2015). A categoria gênero nas Ciências Sociais e sua interdisciplinaridade. Revista Do Ceam, 3(1), 63-81. https://periodicos.unb.br/index.php/revistadoceam/article/view/10046/8878Links ]

Lachaud, D. (2001). Ciúmes. Companhia de Freud. [ Links ]

Lagarde, M. (2001). Claves feministas para la negociación en el amor. Puntos de Encuentro. [ Links ]

Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (1970). Vocabulário da Psicanálise (5a Edição). Editora Martins Fontes. [ Links ]

Lauretis, T. de. (2019). A tecnologia do gênero. En H. B. Hollanda (Ed.), Pensamento Feminista: conceitos fundamentais (pp. 121-155). Bazar do Tempo (Original publicado em 1987). [ Links ]

Le Breton, D. (2009). As Paixões Ordinarias: antropologia das emoções. Editora Vozes. [ Links ]

Lorde, A. (2019). Idade, raça, classe e gênero: mulheres redefinindo a diferença. En H. B. de Hollanda (Ed.), Pensamento Feminista: conceitos fundamentais (pp. 239-249). Bazar do Tempo. [ Links ]

Machado, L. Z. (1998). Violência Conjugal: os espelhos e as marcas. Série Antropologia, 240, 02-42. http://www.dan.unb.br/images/doc/Serie240empdf.pdfLinks ]

Minayo, M. C. de S. (2012). Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciência & Saúde Coletiva, 17(3), 621-626. https://doi.org/10.1590/s1413-81232012000300007 [ Links ]

Pacheco, A. C. L. (2013). Mulher negra: afetividade e solidão. EDUFBA. [ Links ]

Perez, L. C. A. (n.d.). Saudade ou saudades? Retrieved April 9, 2020. https://brasilescola.uol.com.br/gramatica/saudade-ou-saudades.htmLinks ]

Pilão, A. C., & Goldenberg, M. (2012). Poliamor e Monogamia: construindo diferenças e hierarquias. Revista Ártemis, 13, 62-73. https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/artemis/article/view/14231Links ]

Rezende, C. B., & Coelho, M. C. (2010). Antropologia das Emoções. Editora FGV. [ Links ]

Rosa, M. D., & Domingues, E. (2010). O método na pesquisa psicanalítica de fenômenos sociais e políticos: a utilização da ­entrevista e da observação. Psicologia & Sociedade, 22(1), 180-188. https://doi.org/10.1590/s0102-71822010000100021 [ Links ]

Saffioti, H. I. B. (1999). Já se mete a colher em briga de marido e mulher. São Paulo em Perspectiva, 13(4), 82-91. https://doi.org/10.1590/ S0102-88391999000400009 [ Links ]

Saffioti, H. I. B. (2004). Gênero, Patriarcado e Violência. Editora Fundação Perseu Abramo. [ Links ]

Schucman, L. V. (2014). Branquitude e poder: revisitando o “medo branco” no século xxi. Revista Da ABPN, 6(13), 134-147. [ Links ]

Schucman, L. V. (2018). Famílias inter-raciais: tensões entre cor e amor. EDUFBA. [ Links ]

Scott, J. (2019). Gênero: uma categoria útil para a análise histórica. In H. B. de Hollanda (Ed.), Pensamento Feminista: conceitos fundamentais (pp. 49-80). Bazar do Tempo (Original publicado em 1986). [ Links ]

Vinuto, J. (2016). A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas, 22(44), 203-220. https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/tematicas/article/view/2144/0Links ]

Waiselfisz, J. J. (2015). Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil. Flacso Brasil, 1, 83. https://doi.org/10.1017/CBO9781107415324.004 [ Links ]

Wolf, N. (1992). O mito da beleza - como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rocco. [ Links ]

Zanello, V. (2016). Escrita feminina, entre o bordejamento da falta e o desamparo: Contribuições a partir de uma leitura gendrada da Psicanálise. In J. de L. Freitas & E. P. Flores (Eds.), Arte e Psicologia: fundamentos e práticas (pp. 41-56). Editora Juruá de Psicologia. [ Links ]

Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Editora Appris. [ Links ]

Received: August 04, 2020; Accepted: March 29, 2022

Autor de correspondencia: * maisa.c.guimaraes@gmail.com

Autor de correspondencia: ** valeskazanello@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons