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Educación

Print version ISSN 1019-9403

Educación vol.25 no.48 Lima Jan. 2016

http://dx.doi.org/10.18800/educacion.201601.003 

ARTÍCULOS

 

História e cultura afro-brasileira: uma política curricular de afirmação da população negra no Brasil

Historia y cultura afro-brasileña: una política curricular de afirmación de la población negra en Brasil

Afro-brazilian history and culture: a curricular affirmation policy of the black population in Brazil

 

Claudilene Silva* y Eliete Santiago**

Universidade Federal de Pernambuco – Recife – Pernambuco – Brasil.

 


RESUMO

O trabalho discute a institucionalização da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, compreendida como política curricular de promoção da igualdade racial e como referencial na luta por uma educação antirracista no Brasil. Trata-se de um estudo exploratório realizado a partir da produção acadêmica e da legislação referente ao tema. Para melhor compreender a trajetória da luta antirracista dos movimentos negros brasileiros, dialogamos com a perspectiva epistêmica dos estudos pós-coloniais latino-americanos. Problematizamos os fundamentos e o contexto de elaboração de uma política de educação para as relações étnico-raciais no Brasil, no conjunto das políticas de promoção da igualdade racial; e discutimos os dispositivos legais que institucionalizam a política educacional.

Palavras-chave: política curricular; diferença; diversidade; história e cultura afro-brasileira.

 


RESUMEN

El trabajo discute la institucionalización de la obligatoriedad de la enseñanza de historia y cultura afrobrasileña, comprendida como política curricular de promoción de igualdad racial y como referente en la lucha por una educación antirracista en Brasil. Se trata de un estudio exploratorio realizado a partir de la producción académica y de la legislación referente al tema. Para comprender mejor la trayectoria de la lucha antirracista de los movimentos negros brasileños, dialogamos con la perspectiva epistémica de los estudios poscoloniales latinoamericanos. Problematizamos los fundamentos y el contexto de elaboración de una política de educación para las relaciones étnico-raciales en Brasil, en el conjunto de las políticas de promoción de la igualdad racial; y discutimos los dispositivos legales que institucionalizan la política educacional.

Palabras clave: política curricular; diferencia; diversidad; historia y cultura afrobrasileña.

 


ABSTRACT

The paper discuss the institutionalization of the mandatory teaching of the Afro-Brazilian history and culture, which is understood as a curricular policy that aims to promote the racial equality and that is a reference in the fight for an anti-racist education in Brazil. This is an exploratory study which was done from the academic production and the legislation concerning the theme. To achieve a better understanding of the Black Brazilian Movements’ anti-racist fight trajectory, we debated with the epistemic perspective of the Latin-American Post-Colony studies. We question the fundamentals and the context of the elaboration of an education policy for ethnical-racial relations in Brazil, in the group of policies that promote the racial equality; and we discuss the legal devices that institutionalize the educational policy.

Keywords: Curricular policy; Difference; Diversity; Afro-Brazilian history and culture.

 


INTRODUÇÃO

No final do século XIX, a elite brasileira acreditava na progressiva extinção do segmento negro, que se concretizaria via miscigenação. Segundo Aparecida Bento (2003, p. 47), «o país era descrito como uma nação composta por raças miscigenadas, porém em transição. Havia uma expectativa de o Brasil tornar-se um país branco, como consequência do cruzamento de raças», para assim manter-se próximo dos moldes europeus de civilização, que considerava negros e mestiços não civilizados e não civilizáveis. O silenciamento sobre a condição étnico-racial da sociedade brasileira, a negação e a invisibilização da população negra naquele contexto visava ao «esquecimento» de que somos um país negro, nascido e prosperado sob a égide da escravidão negra. Apesar dos investimentos do Estado Brasileiro, o sonho do branqueamento de sua população não se concretizou.

O Brasil do século XXI é um país majoritariamente negro, que possui o maior contingente da população negra fora do continente africano1. Dados do Censo Demográfico de 2010 mostram que dos 191 milhões de brasileiros 47,7% declararam-se brancos. Entre os não-brancos: 0,4% declararam-se indígenas; 1,1% afirmaram serem amarelos; 7,6% informaram serem pretos e 43,1%, pardos. A população negra (pretos e pardos) constitui, portanto, um total de 50,7% (IBGE, 2010). Entretanto, os indicadores sociais revelam elevadas desigualdades segundo grupos de raça/cor e renda.

A despeito de a sociedade brasileira se caracterizar pela pluralidade étnico- racial, a ideia da subalternização das populações negra e indígena tem estruturado as relações sociais que aqui foram estabelecidas, de forma que a diferença foi transformada em desigualdade e opressão, conformando uma hierarquia social baseada em critérios étnico-raciais. A sociedade brasileira e suas instituições, inclusive a escola, vão se constituir em sintonia com esse projeto colonial que institui o racismo e as práticas racistas em suas instituições (Silva, 2013). A elaboração de políticas de promoção da igualdade racial no país dá-se nesse contexto de silenciamentos e enfrentamentos. Resulta de anos de luta do Movimento Negro Brasileiro para denunciar o racismo e propor caminhos para a superação das desigualdades étnico-raciais às quais a população brasileira está exposta. Somente no final do século XX foi possível desestabilizar a imagem de que no Brasil vivíamos em uma democracia racial. Essa ideia orientou o discurso oficial do Estado Brasileiro até o ano 19952.

Como lembra Ribeiro (2014), alguns acontecimentos tornaram-se referências na institucionalização dessas políticas, a saber: a promulgação da Constituição Federal Brasileira em 1988; o Centenário da Abolição em 1988; a Marcha 300 anos de Zumbi dos Palmares: contra o racismo, pela cidadania e a vida, em 1995; e a 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban – África do Sul, em 2001.

No campo da educação, as políticas de promoção da igualdade racial para a população negra têm se concentrado, de forma mais expressiva, em três áreas, buscando atender demandas tanto da educação básica quanto do ensino superior: o acesso à universidade, as especificidades da educação quilombola e o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira, que será o foco da discussão deste trabalho.

Neste artigo, nos propomos a discutir a institucionalização da obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira, compreendida como política curricular de promoção da igualdade racial e como referencial na luta por uma educação antirracista no Brasil. Trata-se de um estudo exploratório realizado a partir da produção acadêmica e da legislação referente ao tema.

Organizamos o texto em duas sessões: num primeiro momento, problematizamos os fundamentos e o contexto de elaboração de política curricular direcionada à população negra brasileira. Em seguida, abordamos o marco legal que institucionaliza a política educacional.

1. ENTRE A IGUALDADE E A DIFERENÇA: A CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA CURRICULAR DE EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO/RACIAIS NO BRASIL

Aprendemos com Paulo Freire (2011) que, sendo uma prática social, a educação ou o agir educativo de cada povo ou nação pauta-se pelas condições e necessidades postas em seus contextos e em seu tempo.

A discussão a respeito da educação para as relações étnico-raciais no Brasil, bem como das demais subjetividades humanas, tem colocado em evidência a inserção do conceito de diversidade em um contexto escolar que nasceu e se estruturou a partir da noção de igualdade. Há duas décadas, Miguel Arroyo (1995) nos alertava sobre o fato de que nós, educadores, fazemos parte de uma tradição pedagógica que aprendeu a lidar com a igualdade, e não com as diferenças. Por isso, quando precisamos tratar pedagogicamente as diferenças «pensamos que o pedagógico é superá-las, exigindo de todos a mesma trajetória educativa» (Arroyo, 1995, p. 19).

Entretanto, quando as diversidades humanas não são foco de atenção entre os atores que compõem a comunidade escolar, a escola termina por desenvolver práticas curriculares e pedagógicas que atuam na manutenção do racismo, do preconceito e da discriminação no cotidiano da instituição escolar.

De modo geral, o debate acerca da diversidade humana e cultural conduz necessariamente ao enfoque e adoção de conceitos que não são consensuais entre os autores das várias áreas do conhecimento. Notadamente, as noções de identidade, igualdade, diferença e diversidade, entre outras, têm perturbado a estabilidade de realidades sociais construídas e fundamentadas na homogeneidade. Mais precisamente na homogeneidade eurocêntrica, ocidental, que se pretendia universal. Como bem lembra Boaventura de Sousa Santos (2011, p. 1) «o mundo diversificou-se, e a diversidade instalou-se no interior de cada país. A compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo».

Vivemos uma época de incertezas e mudanças. Mudanças tão profundas que, para alguns, se configuram como uma mudança de época (Candau, 2008). O que era universal, hoje, pode ser entendido como uma experiência local, particular. O enfoque da igualdade de todos os seres humanos, tão caro para a modernidade, hoje sofre um deslocamento quando enfatizamos a diferença. E a tensão entre igualdade e diferença, entre universal e particular é foco de discussão nesse processo, em diferentes contextos e nas mais diversas áreas do conhecimento.

Candau (2008) situa a discussão no âmbito da ampliação do entendimento dos direitos humanos como direitos individuais, civis e políticos. Lembra-nos que os direitos humanos, como uma construção da modernidade, carregam os valores e as afirmações da modernidade. Assim, nos parece que vivemos um momento de mudança que exige a ressignificação desses direitos, no qual a importância dos direitos coletivos, culturais e ambientais são cada vez mais enfatizados3. Por essa perspectiva, a ascensão das políticas de identidade, nos mais diferentes contextos mundiais, visa à garantia dos direitos humanos na sua radicalidade: o direito a diferença. Dessa forma, não contrapõe igualdade e diferença, mas sim promove a articulação entre as duas noções, possibilitando que todos sejamos iguais nas nossas diferenças.

No âmbito da educação, na produção acadêmica e também nas políticas educacionais, o direito à diferença tem se traduzido, quase sempre, como o direito ao trato pedagógico das diversidades humanas e culturais. Como aponta Tomaz Tadeu Silva (2008), há de se considerar as peculiaridades de cada termo. A diversidade tem sido concebida como um fato dado, natural, como natureza humana comum: ninguém é igual a ninguém, por isso somos diversos. Por sua vez, a diferença é uma produção social, uma diferenciação produzida por meio das relações sociais de poder. Para o autor, embora a diversidade biológica possa ser um produto da natureza, o mesmo não se pode dizer da diversidade cultural. Estudos realizados por Gatti, Barreto e André (2011) sobre as políticas docentes no Brasil apontam que as novas realidades contemporâneas, preocupadas com a educação como um direito humano e entendendo o direito à educação como o direto à diferença (inclusive curricular), solicitam um novo perfil docente e incidem diretamente nos currículos que circulam tanto nas escolas como nas instituições formadoras.

Gatti e seus colaboradores (2011) afirmam que os modos de gestão do currículo constituem uma das maneiras por meio das quais a política docente se efetiva, se materializa, ganha vida. As autoras apontam indícios de que o currículo é um território em disputa social, e que essa disputa pode ser percebida, inclusive, a partir da concepção de currículo defendida por cada uma das partes interessadas. Nos referenciais nacionais, embora se busque responder a demanda social de inserção de questões como pluralidade cultural, gênero e sexualidade e meio ambiente, entre outros temas atuais, o currículo ainda é estruturado de forma dicotômica e hierárquica. De um lado estão as áreas do conhecimento, e de outro, os temas considerados transversais.

Ao contextualizar as questões sobre políticas curriculares da diversidade e políticas da igualdade no conjunto das políticas de formação docente do governo federal, Gatti e seus colaboradores (2011) põem em evidência a tensão existente entre esses dois campos e a predisposição do Ministério da Educação (MEC) em romper com o dualismo e ofertá-las de forma articulada, em que pese ao fracasso dessa articulação identificado na análise das autoras.

A partir dos anos 1990, embalado pelo avanço do neoliberalismo, o debate acerca das políticas públicas contrapunha políticas universais às políticas focais. Quando da formulação das primeiras proposições em torno de políticas de promoção da igualdade racial, uma das críticas era de que se tratava de políticas focalizadas, destinadas a grupos específicos, com forte inspiração neoliberal.

É importante ressaltar que, para se alcançar uma efetiva equidade racial na sociedade brasileira, faz-se necessário repensar o paradigma das políticas públicas centrado na dicotomia políticas universais versus focalizadas (Silva & Guimarães, 2015). No caso brasileiro, a combinação dessas políticas e a tentativa de desenvolvê-las de forma simultânea tem se mostrado um desafio promissor. Considerando que a população negra constitui a maioria da população brasileira, a formulação de políticas locais para esse grupo específico incide diretamente na oferta de políticas universais. Por outro lado, a literatura pertinente ao tema revela que as práticas racistas na escola constituem obstáculos à aprendizagem de estudantes negros/as, quando não os/as afastam desse espaço. Desse modo, o argumento de que políticas de equidade racial feririam o princípio de um universalismo abstrato, assentado em uma noção igualmente abstrata de cidadão, não se sustenta frente a esse contexto.

Na realidade brasileira, as políticas específicas não se destinam apenas às populações específicas que tencionam beneficiar diretamente. No campo da educação, as proposições visam, em última instância, educar as pessoas, enfatizando crianças e jovens, para o convívio com a diferença e o respeito à história e cultura dos diversos povos que formaram o Brasil. Sejam elas direcionadas para as relações de raça, de etnia, de gênero, de sexualidade, de geração, de inclusão ou qualquer outra subjetividade humana, destinam-se ao benefício de toda a população brasileira. O que se busca é repensar as bases das relações étnico-raciais, sociais e pedagógicas sobre as quais se assenta a política educacional brasileira.

Desse modo, um dos maiores desafios da atualidade para gestores e profissionais da educação é dar materialidade a uma política curricular que trate pedagogicamente as diferenças de forma equitativa e respeitosa. A implementação dessa política educacional é um exercício em busca de uma educação de qualidade e em busca de uma sociedade mais democrática.

No caso da política de educação para as relações étnico-raciais, a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena tem mediado esse processo em construção. Sua institucionalização é uma política pública educacional de afirmação da população negra, que compõe o conjunto das políticas de promoção da igualdade racial no campo da educação. Como afirma Gonçalves e Silva (2013, p. 2), «trata-se de uma política curricular de reconhecimento e de reparação de desigualdades». Ela integra o grupo de políticas de reconhecimento das desigualdades e discriminações raciais contra os negros no Brasil e objetiva enfrentar a injustiça nos sistemas educacionais do país. Por isso, para Gomes (2009) a política vincula-se à garantia do direito à educação e requalifica esse direito ao acrescer-lhe o direito à diferença.

O processo de instituição da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira constitui-se, portanto, como referência para a construção de uma educação antirracista no Brasil. Conhecer a legislação que institucionaliza a política é um passo fundamental para sua implementação.

2. MARCO LEGAL DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO- RACIAIS NO BRASIL

As iniciativas no campo da educação empreendidas, historicamente, pelo Movimento Negro no Brasil, são indícios de que esse movimento social sempre considerou a educação escolar como uma prática poderosa para ascensão social de seu povo. Vários estudos (Gomes, 2009; Romão, 2005; Santos, 2005) apontam que, além de promover os seus próprios processos de escolarização, o Movimento Negro Brasileiro reivindicou e continua a reivindicar a inclusão da população negra na escola pública em todos os níveis de ensino.

De acordo com Nilma Gomes (1997), o olhar do Movimento Negro para a educação trouxe, para além das reivindicações, problematizações teóricas e ênfases específicas, que dão materialidade a um pensar sobre a educação construído a partir do ponto de vista do povo negro. Dentre as contribuições apontadas, destacamos a ênfase na história de luta e resistência do povo negro (invisibilizada ao longo da história do país) e a consideração de que existem diferentes identidades no espaço escolar.

As ações empreendidas pelo Movimento Negro ao longo do século XX e suas articulações com políticos aliados da luta antirracista deram origem à legislação local, que terminou por reverberar na legislação nacional. Conforme aponta Santos (2005), nas últimas décadas do século XX uma série de leis foi aprovada em diversas regiões do país, objetivando incluir nos currículos das redes de ensino estaduais e municipais disciplinas referentes à História dos Negros no Brasil e do Continente Africano4. Embora as referidas leis não tenham se efetivado ou induzido políticas públicas, como pontua Gomes (2009), certamente a existência e o texto dessas leis atuaram como referências no processo de elaboração da legislação federal.

Atualmente, no que se refere à legislação, encontramos avanços significativos e capazes de orientar políticas e práticas de uma educação comprometida com a superação do racismo e das desigualdades étnico-raciais. Entretanto, o desconhecimento dos dispositivos legais para a implementação de uma educação antirracista é apontado como um dos empecilhos para sua efetivação. Desse modo, a Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), alterada pela Lei n.° 10.639/03, o Parecer CNE5/CP 03/2004 e a Resolução n.° 01/2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- Brasileira e Africana, bem como o Plano Nacional de Implementação da Lei n.° 10.639/2003, formam um conjunto de documentos indispensáveis ao conhecimento de gestores/as, professores/as e outros profissionais da educação comprometidos com uma educação de qualidade para todos.

A Lei n.° 10.639/2003, sancionada em 9 de janeiro de 2003, é uma das primeiras iniciativas do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores. Ela altera a Lei n.° 9.394/1996, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), ao introduzir os Arts. 26-A e 79-B determinando a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira6, bem como estabelecendo a inclusão do dia 20 de novembro como «Dia Nacional da Consciência Negra» nos calendários escolares.

Além disso, estabelece o conteúdo que deve ser abordado: «os estudos da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil» (Art. 26-A, § 1°), e recomenda que os conteúdos devem ser ministrados «no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, de Literatura e História Brasileiras» (Art. 26-A, § 2°).

Trata-se, portanto, de uma modificação na lei orgânica e geral da educação brasileira, incorporando à referida temática as diretrizes e as bases da organização do sistema educacional. Desse modo, a não-observância do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos escolares significa infligir a LDB.

O texto da alteração da LDB foi bastante criticado, à época, por considerar-se, como afirmou Santos (2005), que a legislação era genérica e demonstrava certa despreocupação com uma implementação adequada. Indica, o autor, que não se estabelecia metas, não se referia à qualificação das professoras e professores nem à necessidade de as universidades reformularem os seus programas de ensino ou cursos de graduação para se adaptar às novas necessidades. Contudo, nos documentos de regulamentação da referida lei, o Parecer n.° 03/2004 e a Resolução n.° 01/2004, ambos emitidos pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), encontramos referenciais para a sua implementação.

O Parecer CNE/CP 03/2004 foi elaborado sob a responsabilidade da professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva7, a partir de ampla consulta a diversas pessoas e grupos do Movimento Social Negro, Conselhos Estaduais e Municipais de Educação e professores que desenvolvem trabalhos sobre a temática das relações étnico-raciais (Gomes, 2009). O documento oferece caminhos possíveis para que os sistemas de ensino tenham parâmetros e condições de efetivar os preceitos da Lei n.° 10.639/03, explicita os princípios orientadores da política educacional e faz recomendações para a formação de professoras e professores, a forma e os conteúdos que devem ser abordados, a necessidade de investimentos em pesquisas, bem como a produção e aquisição de materiais didáticos.

A Resolução CNE/CP 01/2004, fundamentada no referido parecer, institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que devem ser adotadas pelas diversas instituições de ensino, inclusive aquelas que atuam em programas de formação inicial e continuada de professoras e professores. Destaca que o cumprimento das referidas diretrizes será considerado na avaliação das condições de funcionamento das instituições de ensino. Apresenta os objetivos de cada uma das temáticas em questão, aponta as atribuições de cada ator dos sistemas de ensino e indica possíveis parceiros para subsidiar e trocar experiências com os sistemas e estabelecimentos de ensino na implementação da política, tais como: os grupos do Movimento Social Negro (inclusive grupos culturais), as instituições formadoras de professoras e professores e os núcleos afro-brasileiros de estudos e pesquisas.

Por sua vez, o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, elaborado pelo MEC, por meio da Secretaria de Alfabetização, Formação Continuada e Diversidade (SECADI), em conjunto com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), é exemplo dos esforços empreendidos pelo governo federal para fomentar e acompanhar a implementação da alteração da LDB.

O referido Plano, lançado em 13 de maio de 2009, foi construído com a participação da sociedade civil e do Movimento Negro, ao longo de seis encontros, que foram denominados «Diálogos Regionais sobre a Implementação da Lei n.° 10.639/03», realizados durante o ano de 2008. O processo de construção do documento contou também com a participação de instituições como: a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO); o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED); a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME); e a Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPED). Tais instituições foram representadas por membros participantes do seu quadro, nomeados por portaria ministerial, sendo responsáveis pela produção do documento base que orientou a discussão da sociedade civil nos seis encontros regionais.

Conforme consta na apresentação do Plano de Implementação, seu objetivo é fortalecer e institucionalizar as orientações disponibilizadas na Lei n.° 10.639/2003, no Parecer CNE/CP 03/2004 e na Resolução CNE/PC 01/2004, destinadas às instituições educacionais sobre suas atribuições na implementação dessa política.

O documento delimita e explica minuciosamente as atribuições e ações que devem ser adotadas pelas mais diversas instituições educacionais, fundamentando-se em seis eixos temáticos: 1) Fortalecimento do Marco Legal; 2) Política de Formação Inicial e Continuada; 3) Política de Materiais Didáticos e Paradidáticos; 4) Gestão Democrática e Mecanismos de Participação Social; 5) Avaliação e Monitoramento; e 6) Condições Institucionais (Silva, 2009).

Considerando a grande quantidade de atividades, programas, projetos e ações desencadeadas pela legislação e pela política curricular para o ensino de história e cultura afro-brasileira, parece-nos que a disputa curricular está instalada na sociedade brasileira e no interior das escolas. Entretanto, a perspectiva epistêmica dessas ações educativas nem sempre apresenta distanciamento significativo das práticas eurocêntricas que produziram a suposta inferioridade da população negra no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A política curricular do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana põe em evidência o questionamento ao modelo único de escola e, dentro dele, a seleção e hierarquização dos conhecimentos curriculares. Revela também as dificuldades de convivência respeitosa entre pessoas que possuem diferentes pertencimentos étnico-raciais, cujas diferenças terminam por constituir relações que subalternizam as populações negra e indígena.

Desse modo, pensar em uma educação antirracista é pensar na reeducação das relações étnico-raciais que foram estabelecidas ao longo da história do país. As orientações das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, não se resume à inclusão de novos conteúdos. A implementação da política curricular exige que se repense as bases da nossa instituição escolar: as relações étnico-raciais, sociais, pedagógicas; os procedimentos de ensino; as condições oferecidas para o ensino e a aprendizagem; e os objetivos da educação oferecida pelas escolas. Traduzir a legislação em conteúdos da formação e do ensino ainda constitui um desafio a ser enfrentado pelos atores da comunidade escolar, especialmente no que se refere à formação, às condições de trabalho e à prática pedagógica.

Nas pesquisas e estudos que se preocupam com essa questão, a formação de professoras e professores ganha centralidade no debate, aparecendo em duas perspectivas: ora como maior obstáculo a ser enfrentado, ora com uma estratégia relevante para garantir o sucesso do processo de implementação da legislação. Os resultados dessas pesquisas revelam a importância dos processos formativos na constituição da prática docente, discente e gestora da instituição escolar, tanto na sua dimensão inicial quanto na dimensão continuada.

Ao que parece, existem alguns avanços no que se refere ao conteúdo, mas ainda são poucas as iniciativas que se preocupam com a forma: as práticas pedagógicas, os procedimentos didático-pedagógicos e as atividades a serem trabalhadas estão em processo de produção.

 

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* Possui graduação em Pedagogia (2004) e Mestrado em Educação (2009) pela Universidade Federal de Pernambuco. Produtora cultural e pesquisadora da cultura afro-brasileira, entre os anos de 2005 e 2010 foi gerente do Núcleo da Cultura Afro-Brasileira da Prefeitura do Recife/Secretaria de Cultura. Doutoranda em Educação, pela Universidade Federal de Pernambuco. Contacto: claudilene.silva@hotmail.com.

** Possui Doutorado em Ciências da Educação - Université de Paris V (René Descartes), 1994. Professora titular do Departamento de Administração Escolar e Planejamento Educacional da Universidade Federal de Pernambuco, é pesquisadora da Linha de Pesquisa em Formação de Professores e Prática Pedagógica, do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPE. Contacto: mesantiago@uol.com.br.

1 Informaçãodisponívelem:<http://www.planalto.gov.br/seppir/pnpir/pnpir_programa/introducao.htm>. Acesso em: 25 out. 2010.

2 Em 1995, ocorreu a Marcha «300 anos de Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e a vida», em Brasília. O presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, recebeu uma comissão de ativistas negros e reconheceu solenemente a existência do racismo contra negros e indígenas e a necessidade de o Estado adotar políticas públicas para promover a igualdade racial.

3 «Hoje em dia, vários grupos em diferentes países questionam a universalidade dos direitos tal como foi construída, considerando-a uma expressão do Ocidente e da tradição europeia» (Candau, 2008, p. 47).

4 A Constituição do Estado da Bahia, promulgada em 1989; a Lei Orgânica do Município de Belo Horizonte/MG, promulgada em 1990; a Lei n.° 6.889, de 5/9/1991, do município de Porto Alegre/ RS; a Lei n.° 7.685/94, de 17/1/1994, do município de Belém/PA; a Lei n.° 2.221, de 30/11/1994, do município de Aracaju/SE; a Lei n.° 2.251, de 31/3/95, do município de Aracaju/SE; a Lei n.° 11.973, de 4/1/96, do município de São Paulo/SP; a Lei n.° 2.639, de 16/3/98, do município de Teresina/PI; e a Lei n.° 1.187, de 13/9/96, de Brasília-DF (Santos, 2005).

5 Conselho Nacional de Educação.

6 Em 2008, a promulgação da Lei n.° 11.645 altera o mesmo Art. 26A estendendo a obrigatoriedade para o ensino de histórias e culturas dos povos indígenas.

7 Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva é reconhecida ativista e intelectual da causa negra. Pesquisadora das relações étnico-raciais e africanidades brasileiras, Foi conselheira da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, mandato 2002-2006. É professora titular de Ensino- Aprendizagem das Relações Étnico-Raciais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e integra o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros/UFSCar.

 

Recibido el 10-11-2015; primera evaluación el 31-01-2016; aceptado el 15-02-2016

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