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Educación

versão impressa ISSN 1019-9403versão On-line ISSN 2304-4322

Educación vol.30 no.58 Lima jan./jun. 2021

http://dx.doi.org/10.18800/educacion.202101.004 

Artículos

A Covid-19 e a Educação Superior no Brasil: usos diferenciados das tecnologias de comunicação virtual e o enfrentamento das desigualdades educacionais

COVID-19 and Higher Education in Brazil: different uses of virtual communication technologies and educational inequalities

COVID-19 y la educación superior en Brasil: usos diferenciados de las tecnologías de la comunicación virtual y las desigualdades educativas

1Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) - Brasil, anpires@puc-campinas.edu.br

Resumo

O artigo tem por objetivo discutir efeitos da pandemia da Covid-19 no ensino superior brasileiro em 2020. A adoção do ensino remoto durante a pandemia, por meio da utilização de tecnologias de comunicação virtuais, alterou as relações de ensino e aprendizagem. Estas mudanças não ocorreram de maneira homogênea e linear. Este texto tece considerações sobre os usos diferenciados destas tecnologias e sobre como estes processos contribuíram para o fortalecimento das desigualdades educacionais já existentes. Os argumentos foram estruturados em três momentos, considerando os processos que ocorreram antes, durante e depois da pandemia. Foram elencados três desafios para que a possibilidade de retorno presencial às aulas no pós-pandemia seja também uma oportunidade para enfrentarmos os processos que favorecem as desigualdades educacionais

Palavras-chave: educação superior; exclusão educacional; políticas públicas

Abstract

The article aims to discuss the effects of the Covid-19 pandemic on Brazilian higher education in 2020. The experience of remote classes, using virtual communication technologies during the pandemic, changed the learning relationships between teachers and students. These changes did not happen in a homogeneous and linear manner. This text discusses the different uses of these technologies and how these processes have contributed to strengthening existing educational inequalities. The arguments were structured in three moments, in order to consider processes that occurred before, during and after the pandemic. To deal with education inequalities after the pandemic, three challenges are suggested.

Keywords: Higher education; educational exclusion; public policies

Resumen

El artículo tiene como objetivo discutir los efectos de la pandemia producida por el Covid-19 en la educación superior brasileña en 2020. La adopción de la educación remota, utilizando tecnologías de comunicación virtual durante la pandemia, cambió las relaciones de enseñanza y aprendizaje; los cambios no se produjeron de forma homogénea y lineal. Este texto analiza los diferentes usos de esas tecnologías y cómo sus procesos han contribuido a fortalecer las desigualdades educativas existentes. Los argumentos se estructuraron en tres momentos a fin de considerar procesos que ocurrieron antes, durante después de la pandemia. Al final, se enumeran tres desafíos para que la posibilidad del regreso presencial a clases en la pospandemia sea también una oportunidad para enfrentar los procesos de favorecimiento de las desigualdades educativas.

Palabras clave: educación superior; exclusión educativa; políticas públicas

1. Introdução

Este artigo tem por objetivo discutir alguns dos efeitos da pandemia da Covid-19 no ensino superior brasileiro durante o ano de 2020. A partir da segunda quinzena do mês de março de 2020, em decorrência das medidas de isolamento social anunciadas pelos governos municipais, estaduais e federal, as aulas presenciais foram suspensas. Essa decisão obrigou as Instituições de Ensino Superior (IES) a adotarem o ensino remoto, por meio da utilização de tecnologias e plataformas de comunicação virtuais, alterando de maneira visceral as relações de ensino e aprendizagem. Essas profundas mudanças não ocorreram de maneira homogênea e linear, variando de maneira significativa conforme a natureza das instituições de ensino (públicas ou privadas, por exemplo), os tipos de cursos (cursos com disciplinas mais teóricas ou mais práticas) e o perfil socioeconômico dos corpos docente e discente.

Tendo em vista esta heterogeneidade, este texto visa apresentar e tecer algumas considerações sobre os usos diferenciados das tecnologias de comunicação e informação durante a pandemia e sobre como estes processos sugerem o fortalecimento das desigualdades educacionais já existentes. Como será visto a seguir, a suspensão das aulas presenciais ocorreu num momento em que o processo de expansão de matrículas e de inclusão de pessoas com desvantagens socioeconômicas no ensino superior brasileiro (pobres, pretos ou pardos, indígenas etc.) desacelerava. A pandemia da Covid-19 não criou as desigualdades educacionais no ensino superior brasileiro, mas contribuiu para seu fortalecimento.

É importante alertar sobre os limites das interpretações de um texto elaborado ainda com os efeitos da pandemia em andamento. Como já observado por Hobsbawn (1995), escrever sobre seu próprio tempo tem suas agruras, já que o conhecemos por dentro, acumulamos opiniões e preconceitos. Além disso, por se tratar de um processo em curso, há relativamente poucos trabalhos que sistematizam, a partir de pesquisas comparadas e abrangentes, os usos e efeitos das tecnologias de comunicação nas IES durante a pandemia. Falamos muitas vezes a partir de nossas próprias instituições, onde vivenciamos nossas experiências. A despeito das dificuldades apontadas, entendemos ser relevante apresentar as considerações deste artigo mesmo que estas possam (e devam) ser contestadas pelo porvir.

2. Marco teórico

O marco teórico desta reflexão repousa na tradição de pesquisas relacionadas à sociologia das desigualdades educacionais, cuja matriz está no pensamento de Pierre Bourdieu e em seus desdobramentos. Entendemos que o processo de expansão das matrículas no ensino superior brasileiro, a ser descrito à frente, é caracterizado como um processo de massificação (Barbosa, 2019; Dubet, 2015), o qual se distingue de um processo de democratização, uma vez que esta expansão vem acompanhada de maior estratificação interna dos sistemas educacionais, seja em função dos tipos de instituições, turno, ciclos, currículos e dos próprios cursos. Como já salientado por Bourdieu e Champagne (2003), o processo de inclusão, paradoxalmente, favorece também o crescimento dos chamados «excluídos no interior», isto é, do grupo socioeconomicamente desfavorecido que, embora matriculado no ensino superior, encontra-se em instituições, cursos e com diplomas de menor prestígio. Em suma, é um processo que inclui, mas que mantém a desigualdade nos sistemas. Quanto mais estratificado for um sistema educacional (em termos de ciclos, currículos, natureza das instituições etc.), maior o ganho competitivo de certos grupos manterem ou ampliarem suas posições sociais a partir das escolhas educacionais (Hadja & Becker, 2016)

[...] alunos de boas famílias estão em condição de investir na hora certa e no lugar certo, enquanto os oriundos de famílias pobres são obrigados a entregar suas escolhas ao acaso para encontrar seu caminho num universo cada vez mais complexo. (Bourdieu & Champagne, 2003, pp. 484-485)

As vantagens de possuir este capital informacional, que permite navegar num sistema altamente diversificado e fazer as escolhas nas horas e lugares certos, como diz Bourdieu e Champagne, parecem ter se acentuado na pandemia da Covid-19. Para sustentar esta afirmação, serão apresentados trabalhos que tratam do processo de expansão e inclusão do ensino superior brasileiro nas últimas décadas e duas pesquisas empíricas, realizadas em 2020, com estudantes de instituições públicas e privadas sobre suas experiências de ensino, aprendizagem e usos de tecnologias de comunicação durante as aulas remotas. Trataremos também do adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2020. Os argumentos foram estruturados em três momentos, considerando processos que ocorreram antes, durante e aqueles que se projetam para depois do encerramento das medidas de isolamento social provocadas pela Covid-19.

3. Metodologia

Este artigo se baseia em trabalhos que discutem de maneira crítica o contexto econômico e os processos de expansão das matrículas e de inclusão de pessoas com perfil socioeconômico desfavorável no ensino superior brasileiro nas últimas décadas. Em relação à Covid-19, apresenta resultados de duas pesquisas empíricas sobre os usos das tecnologias de informação pelos alunos durante a pandemia: uma realizada com alunos de uma Instituição de Ensino Superior Pública e a outra, com alunos de instituições privadas no ensino superior.

A pesquisa com alunos da rede pública intitulada «A Unicamp e o novo coronavirús» (Observatório Institucional Unicamp, 2020) consultou todos os estudantes matriculados na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) nos cursos de graduação e pós-graduação e obteve um percentual de resposta de 16%, ou seja, 4.665 respondentes. A pesquisa com estudantes da rede privada foi conduzida pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior (Semesp) (Instituto Semesp, 2020) e contou com a participação de 1.764 alunos de todos os estados brasileiros, sendo 62,4% estudantes da rede privada e 37,6% da rede pública. Para os propósitos deste artigo serão consideradas somente as respostas dos cerca de 1.100 alunos matriculados na rede privada. A pesquisa da Unicamp foi realizada entre 25 de junho e 27 de julho de 2020. A do Semesp, entre 6 e 13 de julho de 2020.

4. Resultados e discussão

4.1. Antes da pandemia

Como já mencionado na Introdução, a pandemia da Covid-2019 veio acirrar processos de fortalecimento de desigualdades sociais, que já estavam em curso na década de 2010, sobretudo a partir de 2015.

Um recente trabalho de Barbosa, Souza e Soares (2020), publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), parece ser um bom ponto de partida. Utilizando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do período de 2012 a 2018, os autores propõem dois grandes ciclos relacionados ao crescimento da renda e da desigualdade social no Brasil, desde a virada para o século XX. O primeiro, que se estende até 2014, é caracterizado pelo crescimento da renda e pela diminuição das desigualdades. Por sua vez, no segundo ciclo, iniciado a partir de 2015, estas tendências se invertem. Como não é difícil imaginar, esses dois ciclos não afetaram da mesma maneira as famílias mais ricas e mais pobres. Enquanto o primeiro foi caracterizado como um «crescimento pró-pobre», a partir de 2015 a 2018 (último ano da Pnad considerada), os 50% mais pobres experimentaram crescimento negativo, enquanto os 50% mais ricos, crescimento positivo. Nas palavras dos autores:

Nossos resultados mostram que o período de instabilidade econômica iniciado no fim de 2014 não afetou da mesma forma os diferentes estratos de renda. Para os mais pobres, veio uma crise aguda que provocou reversão parcial dos ganhos distributivos e de bem-estar experimentados anteriormente. Esses grupos mais desfavorecidos se mantêm reféns de posições instáveis no mercado de trabalho e dependem das políticas de proteção social, que, por sua vez, chegaram até a se contrair nos anos recentes. Para os mais ricos, a tormenta foi algo episódico, concentrada principalmente em 2015, e ficou para trás rapidamente. Em 2018, a recuperação econômica já seguia a pleno vapor para o topo da distribuição de renda. (Barbosa et al., 2020, p. 7)

Esse movimento atinge plenamente o processo de expansão e massificação do ensino superior brasileiro, que se intensifica a partir do final do século XX, com a inclusão de grupos socioeconomicamente desfavorecidos. Vejamos, de maneira breve, como esse processo se manifestou.

É sabido que o movimento de expansão foi favorecido por condições demográficas, normativas, econômicas e por decisões políticas. Sem ter a pretensão de esgotá-los, mencionaremos, a título de ilustração, alguns componentes que favoreceram esse crescimento. Comecemos pelos normativos. A Reforma Universitária de 1968 (Lei no 5.540/68), a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 (Lei no 9.394/96) e o Plano Nacional de Educação de 2001 (Lei no 10.172/91), entre outros, conceberam, plasmaram e estabeleceram metas para o ensino superior brasileiro, cuja característica principal é a forte presença do segmento privado no número de matrículas dos cursos de graduação (Sampaio, 2000; Almeida, 2014; Martins, 2000). Trata-se, também, de um sistema altamente diferenciado em seu interior, considerando-se as categorias administrativas e os tipos de organização acadêmica (Prates & Barbosa, 2015). Uma primeira diferença se estabelece entre IES públicas e privadas. No interior das públicas, há subdivisões entre as instituições federais, estaduais e municipais e, dentre as particulares, distinguem-se as instituições privadas com e sem fins lucrativos. Em termos da organização acadêmica, as IES podem ser Universidades, Faculdades e Centros Universitários, sendo esta última configuração apenas possível na rede particular. Há também, em menor número, Institutos e Centros Federais de Educação Tecnológica.

A partir de 1997, não por acaso um ano após a LDB ter sido sancionada, promoveu-se a diferenciação institucional dentro do segmento privado entre as instituições lucrativas e sem fins lucrativos (confessionais, filantrópicas e comunitárias, Almeida, 2014)1. Essa possibilidade favoreceu o movimento de expansão de matrículas no Ensino Superior que atinge sua plenitude na década de 2010, resultado de uma série de políticas afirmativas, de bolsas e de crédito estudantil. Não podemos deixar de considerar que esse contexto de expansão foi favorecido pelo aumento da demanda para o ensino superior gerado pelos processos de universalização do ensino fundamental (Oliveira R. P., 2007) e de expansão do ensino médio (Schwartzman, 2001), observados com mais intensidade a partir da década de 1990. Ainda no tocante à demanda, outro fator que favorece a procura pelo ensino superior no Brasil é o fato de ele ser um dos países que oferece melhor retorno salarial para os portadores de um diploma universitário (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômicos, 2020).

[...] em 2013 os trabalhadores com ensino médio completo ganhavam em média pouco menos do que o dobro (100% a mais) do que os trabalhadores sem escolaridade com características semelhantes, enquanto os trabalhadores com nível superior completo ganhavam quase 3,5 vezes a mais (350%). (Souza, 2018, p. 342)

A partir do ano 2000, um conjunto de políticas de ações afirmativas, bolsas de estudo e de crédito estudantil favoreceu o crescimento expressivo das matrículas no ensino superior brasileiro. Desta cesta de políticas e ações governamentais, destacamos quatro, duas voltadas para o setor público, a saber, o Programa de Apoio a Planos de Restruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni/2007) e a Lei das Cotas para o Ensino Superior (Lei nº 12.711/2012), e duas para o segmento privado: Programa Universidade para Todos (Prouni/2004) e o Programa de Financiamento Estudantil (FIES/2001). Comecemos pelo Reuni e pela Lei de Cotas.

O programa Reuni e a Lei das Cotas foram concebidos para o segmento público federal. O principal objetivo do Reuni, que vigorou de 2007 a 2012, era aumentar o número de alunos matriculados nas universidades públicas federais. Já o da Lei das cotas era promover a diversificação socioeconômica e étnica dos estudantes [...] A lei estabelece destinar, o prazo era o ano de 2016, 50% das vagas das universidades federais a estudantes provenientes de escolas públicas; essas vagas dividem-se entre estudantes oriundos de famílias de baixa renda e/ou estudantes que se auto identificam com grupos afrodescendentes ou indígenas. (Sampaio & Andrade, 2020, p. 25)

Por sua vez, o Programa Universidade para Todos (Prouni):

[...] destina-se «à concessão de bolsas de estudo integrais e bolsas de estudo parciais de 50% ou de 25% para estudantes de cursos de graduação em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos» (Brasil, 2005).A bolsa de estudo integral somente pode ser conferida aos alunos cuja renda familiar mensal per capita não exceda o valor de até um salário-mínimo e meio. Já as bolsas parciais são concedidas a alunos cuja renda familiar mensal per capita não exceda o valor de até três salários-mínimos. Para a concessão de bolsas, integrais ou parciais, é preciso que o aluno tenha cursado o ensino médio completo em escola da rede pública ou em instituições privadas na condição de bolsista integral. A escolha do curso depende da nota obtida no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o estudante precisa conseguir 75% de aprovação no total de disciplinas cursadas em cada período letivo. (Pires, Romão, & Varollo, 2019, pp. 3-4)

Criado em 1999, o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) é um programa do governo federal destinado a financiar o pagamento das mensalidades dos cursos de graduação de estudantes matriculados em instituições privadas. Até 2009, os financiamentos deste programa cresceram de maneira lenta, uma vez que, para a concessão do crédito estudantil, exigia-se fiança dos estudantes (garantia para o pagamento do empréstimo). A partir de 2010, o programa passou por reformulações, relacionadas às taxas de juros e ao sistema de fiança, permitindo que ele se expandisse de maneira notável até 2015 (Ristoff, 2016).

Em especial, a partir de 2010, o número de contratos firmados cresceu vertiginosamente a cada ano (acréscimo de mais de 900% entre 2009 e 2015) devido às novas regras do financiamento, como a redução dos juros para 3,4% ao ano e o aumento do prazo de carência e desobrigação do fiador para os bolsistas parciais do ProUni que solicitassem o crédito educativo. (Santos & Barbosa, 2020, p. 73)

Mudanças no programa em 2016, como a adoção de critérios de seleção mais restritivos, a diminuição do número de vagas e o aumento das taxas de juros, diminuíram sua importância. De qualquer maneira, os resultados dessa cesta de políticas e ações destinadas à ampliação de vagas no setor público e no privado podem ser observados na tabela abaixo.

Tabela 1 Distribuição das IES e das Matrículas nos cursos de graduação presenciais por categoria administrativa (2000 e 2019) 

Fonte: Sampaio & Andrade (2020) e Censo da Educação Superior 2019.

Como se pode verificar, num intervalo de duas décadas, o número de matrículas nos cursos presenciais de graduação no Brasil atingiu mais que o triplo, significando um acréscimo de quase 6 milhões de alunos no ensino superior. A análise dos números da tabela acima indica que tanto o segmento público como o privado cresceram no período, em relação ao número de instituições e também ao número de matrículas. Porém, o crescimento do segmento privado foi mais significativo: representava 67% das matrículas em 2000, ante 76% em 2019. O aumento de 9 pontos percentuais das matrículas do setor privado corresponde à queda, em igual proporção, das matrículas do setor público. Embora se trate de expansão muito significativa, os números de 2019 colocam o Brasil com 19,7% de taxa de matrícula líquida no Ensino Superior. De acordo com as metas estabelecidas no Plano Nacional de Educação em vigência (2014-2024), o Brasil deverá atingir 33% de taxa de matrícula líquida em 2024. Uma meta que se torna, pelas razões apresentadas a seguir, praticamente inalcançáveis.

É importante considerar que a expansão do segmento privado no período considerado, assim como no anterior (Almeida, 2014), é marcada por uma relação de dependência das políticas de bolsas e de crédito estudantil do poder público, tais como o Prouni e o Fies. Num contexto de crise econômica, que se estabelece a partir de 2015 e traz, como observado, consequências mais graves para os mais pobres, a capacidade fiscal do governo federal fica comprometida, colocando em questão a manutenção e ampliação desta expansão. Neste contexto, alunos com condições socioeconômicas desfavoráveis (elegíveis para as políticas públicas de ingresso e relacionamento estudantil, por exemplo) são os mais afetados. Sampaio e Andrade (2020) apresentam de maneira clara esta relação de mútua dependência entre o poder público e o segmento privado:

Com efeito, em 2016, a grave crise econômica que atingiu o país e a mudança no governo central - o vice-presidente Michel Temer assume a Presidência da República após o impeachment de Dilma Roussef - parecem ter afetado a prioridade de manter a ampliação e diversificação do acesso ao ensino superior. O discurso oficial sobre a necessidade de diminuir custos com a operacionalização do FIES, notadamente, e a reação do setor privado diante das novas medidas restritivas a este programa evidenciam a mútua dependência que se forjou entre os provedores do setor privado e o poder central na governança da oferta de ensino superior no país. A dependência do primeiro em relação aos recursos públicos para manter o seu ritmo de crescimento é comparável à dependência do poder público em relação aos grupos educacionais privados na sua meta de incluir 33% dos jovens entre 18 e 24 anos no ensino superior, conforme estabelecido na PNE de 2014. (Sampaio & Andrade, 2020, pp. 31-32)

Com a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, que estabeleceu um novo regime fiscal para o poder público, a situação agravou-se, uma vez que foram colocados no texto constitucional brasileiro fundamentos da austeridade fiscal, impondo à União um teto de gastos.

A EC 95/2016 [...] consiste em uma regra constitucional para despesas primárias do Governo Federal que dura 20 anos, mas que pode ser revista após 10 anos de vigência. Segundo a regra, os gastos primários devem permanecer nos níveis executados em 2017 (já deprimidos, diga-se de passagem, pelo ajuste em 2015 e 2016) e só poderiam ser reajustados ano a ano pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Assim, o não crescimento real do gasto público promove uma redução do gasto primário per capita ao longo dos anos e uma redução do gasto primário em relação ao PIB. (Oliveira A. L., 2019, pp. 214-215)2

Como demonstra a autora, a alteração na Constituição Federal vincula-se ao movimento que logrou derrubar a presidente Dilma Rousseff em 2016 e que assumiu o poder com uma narrativa dominante de que os encargos constitucionais com saúde, educação e assistência trariam rigidez ao orçamento e atrapalhariam o desenvolvimento econômico. A mudança provocou uma equação perversa. Para que houvesse aumento (ou mesmo manutenção) dos gastos em educação, outra área deveria perder. Como já sugerido, isso refletiu diretamente no crédito estudantil (Fies) e nos gastos da União com políticas de ingresso e relacionamento estudantil. Lembremos que a Emenda Constitucional 2016 situa-se exatamente no segundo ciclo econômico descrito no relatório do Ipea, aquele de crescimento negativo para os mais pobres.

Oliveira (2019) indagava, com base nesses fatores mencionados, se o processo de inclusão no ensino superior brasileiro estaria interrompido? Pelas informações que dispomos hoje, sua pergunta tende a se converter numa afirmação.

4.2. Durante a pandemia

Com a pandemia do novo coronavírus, as IES suspenderam suas aulas presenciais e, num curto intervalo de tempo, tiveram que adaptar suas atividades (ensino, pesquisa e extensão) para o modo remoto. Isso trouxe consequências não homogêneas, pois devem ser compreendidas, levando-se em conta a natureza das instituições (públicas/privadas), suas diferenciações internas (universidades, faculdades etc.) e as posições sociais das pessoas.

Algumas instituições públicas demoraram a decidir adotar o ensino remoto. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por exemplo, iniciaram as aulas remotas somente no segundo semestre de 2020. A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) retomou as aulas em abril de 2020. Em relação ao segmento privado, que depende do pagamento das mensalidades dos alunos para se manterem, a passagem para o ensino remoto foi quase imediata. A Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), do segmento privado sem fins lucrativos, por exemplo, ficou apenas uma semana sem aula, retomando, de maneira remota, suas atividades no final do mês de março. A mencionada enquete realizada pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior (Semesp), com 1.800 estudantes de graduação, aproximadamente, corrobora esta percepção. Em julho de 2020, 99% dos alunos respondentes da rede privada adotaram o regime de ensino remoto durante a pandemia, ante 42% dos respondentes da rede pública.

Como qualquer fenômeno social, os usos diferenciados das tecnologias durante a pandemia e o ensino remoto podem ser interpretados de diferentes formas. De um lado, como ponte, conectando-nos a lugares e pessoas que se tornaram disponíveis neste ambiente virtual. Nesse sentido, facilitou a interação de professores e pesquisadores com grupos de pesquisas de instituições do Brasil e do exterior, a participação em bancas, o acesso a conferências, palestras e o processo de internacionalização. Poupou também deslocamentos diários às IES para o ensino presencial e atividades de gestão, evidenciando o custo pessoal e emocional destas ações.

Por outro lado, as atividades remotas alteraram de maneira profunda as relações de ensino e aprendizado, impondo um novo ritmo de trabalho, muito mais intenso, acelerado e extenuante (aulas, bancas, reuniões, atendimento aos alunos, entre outras atividades). Uma boa ilustração desta situação pode ser encontrada na composição «Samba do Ensino Remoto», de autoria da professora Stella Maris Nicolau, cuja letra salienta dificuldades nas interações, em falar para pequenos retratos na tela do computador, nos tempos de fala e de silêncio das aulas que foram agudamente transformados.

Vou confessar uma agonia Sou professora na pandemia Desabafar a minha dor Pois desde março eu moro no computador É google meeting, é aula síncrona e assíncrona É uma novela para compartilhar a tela É um aluno que não liga o microfone Abre esta câmera e me diga o seu nome [...] (Nicolau, 2020)

Em relação aos alunos, observaram-se alterações nas rotinas, perda das relações presenciais com colegas, vivências alteradas com o ensino superior, ansiedades, depressões e incertezas, que serão consideradas a seguir.

O acesso ao computador, à internet e a outros aparatos para as atividades remotas, ao capital cultural objetivado, como define Oliveira (2020), é extremamente desigual. São desiguais também os espaços nas moradias dos estudantes para os estudos e para as aulas, bem como o fato de o estudante ter que ajudar ou não nas tarefas domésticas (contribuindo para acentuar as distinções por gênero). Em suma, essas diferenças têm implicações profundas.

Um relatório produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020), utilizando dados da PNAD de 2018 sobre o tema da Tecnologia da Informação e Comunicação, indicou que somente 41% dos domicílios do Brasil possuíam computador e 12,5%, tablet. A pesquisa ainda mostra que 20% dos domicílios não têm acesso à internet. Em 99,2% dos domicílios que possuem acesso à internet, este era feito pelo celular. Já os computadores, mais adequados às aulas remotas, eram acessados em somente 48% das residências com acesso à internet. É preciso indicar que este acesso varia de maneira muito significativa quando se considera a renda per capita do domicílio. O acesso ao computador e à internet estável, por exemplo, diminui significativamente quando se consideram os domicílios mais pobres. A ideia de que todo mundo está conectado e com equipamentos e serviços adequados para as aulas remotas mostrou-se muito desigual durante a pandemia.

Como mencionado, a pesquisa «A Unicamp e o novo coronavírus» consultou todos os estudantes matriculados na universidade (na graduação e na pós), obtendo 4.665 respondentes. Por sua vez, a pesquisa do Semesp contou com a participação de 1.764 alunos de todos os estados brasileiros. Desta última pesquisa, focalizaremos somente as repostas dos alunos matriculados na rede privada. Importante alertar que os resultados das pesquisas, feitas com instrumentos, questões e amostras diferentes, não são em princípio comparáveis entre si. Será feito um pequeno exercício de cotejar certas variáveis para ilustrar algumas tendências, que devem ser vistas como aproximações muito gerais. Começaremos com informações sobre os alunos da Unicamp para depois apresentarmos os resultados da pesquisa do Semesp.

Em relação ao formato das aulas, a maioria dos estudantes da Unicamp (70%) prefere aulas síncronas com gravação e disponibilizadas em plataformas. Cerca de 35% dos alunos da graduação alegaram impacto sobre o conteúdo dos programas das disciplinas em 70% ou mais. Na pós-graduação, este impacto foi bem menor: 9%. No tocante à adaptação para o ensino remoto, cerca de ¼ dos alunos tem dificuldade entre média e elevada para a disponibilidade de equipamentos e acesso à internet. E metade alegou o mesmo grau de dificuldade quando se considera espaço apropriado para realizar atividades acadêmicas. Chama a atenção o fato de que ¼ dos estudantes necessitou providenciar apoio psicológico durante a pandemia, número mais elevado em relação àqueles que tiveram que providenciar computador e acesso à internet (21% e 17%, respectivamente); 68% dos alunos sentem falta do convívio pessoal, 62% apresentam dificuldades em conciliar atividades das disciplinas com as tarefas de casa e metade (52%) se sente desmotivada para o ensino on-line.

A maioria dos alunos da Unicamp não se sente mais confortável em casa e também se considera menos disciplinado com esse formato de aulas. Verifica-se também uma percepção de que a carga de estudo aumentou durante o período de isolamento (56%). Três de cada quatro alunos concordam (em parte ou muito) que estão mais ansiosos e preocupados com suas carreiras e 64%, mais tristes e deprimidos.

Tabela 2 Síntese de informações selecionadas da pesquisa «A Unicamp e o novo coronavirus» 

Fonte: Observatório Institucional Unicamp (2020).

Tendência similar se observa nos resultados da pesquisa do Semesp, realizada com alunos da rede privada. Pouco mais da metade dos alunos (54%) não está satisfeita com as aulas remotas. Os principais pontos negativos elencados foram: problemas com a metodologia e/ou didática de aula; dificuldade de concentração e/ou adaptação ao modelo remoto, problemas de acesso à internet (qualidade do sinal, as falhas de conexão, a velocidade baixa ou a falta da internet), e a equipamentos e ferramentas adequadas para assistir às aulas remotas (Instituto Semesp, 2020, p. 17). Cerca de 15% dos alunos da rede privada, que responderam à pesquisa, utilizam o celular como equipamento principal. Trata-se de uma minoria, é verdade, mas que não pode ser ­desconsiderada. Além disso, 1/3 dos alunos teve que compartilhar o uso do equipamento principal durante as aulas remotas, evidenciando um grande problema nas condições para o aprendizado durante o ensino remoto. Cerca de 40% dos respondentes da rede privada disseram que a qualidade da internet utilizada para as aulas variava entre péssima e regular. Um em cada três alunos classificou o ambiente de estudo como não adequado (de ruim a regular). Por último, aparece a questão financeira: metade dos alunos respondeu que a sua instituição não facilitou o pagamento das mensalidades durante a pandemia.

Tabela 3 Síntese de informações selecionadas da pesquisa Semesp 

Fonte: Instituto Semesp (2020).

Voltaremos a esses números nas conclusões. Em relação às escolhas para o acesso ao ensino superior, e como elas são importantes para o fortalecimento das desigualdades educacionais (Hadja & Becker, 2016), torna-se importante destacar o exemplo do calendário do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2020. Embora seja um exame relacionado ao Ensino Médio, a utilização do Enem se justifica por ele ser o principal meio de acesso de estudantes brasileiros ao Ensino Superior. A título de ilustração, cerca de 5 milhões de estudantes se inscreveram em 2019 para fazer a prova.

Criado em 1998 pelo Ministério da Educação, mas alterado de maneira substantiva na década de 2000, o exame avalia os estudantes ao final do ensino médio e constitui-se como porta de entrada para o ensino superior público e privado brasileiro (Pires, 2015). A partir do desempenho no Enem, os alunos podem participar do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), o qual seleciona alunos para a rede de Universidades Federais do Brasil, além de poder pleitear vaga no Programa Universidade para Todos (ProUni) e financiamento estudantil no Fies (Sampaio & Andrade, 2020; Santos & Barbosa, 2020). Além disso, muitas IES públicas (das redes estaduais e municipais) e privadas utilizam a nota do Enem como forma de possibilitar o ingresso nestas instituições.

Muitos autores têm valorizado o potencial do Enem em relação ao processo de inclusão de estudantes socioeconomicamente desfavorecidos no ensino superior, por seu formato, que privilegia interpretações de textos e reflexões sobre situações da vida cotidiana (Almeida, 2014), pelo fato de o exame unificar e nacionalizar a disputa por vagas, diminuindo os custos de deslocamento e realização das provas (Neto, Medeiros, Paiva, & Simões, 2014), e, ainda, por possibilitar o acesso a um conjunto de políticas públicas de inclusão no ensino superior público e privado (Heringer, 2018).

O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgão do Ministério da Educação responsável pelo Enem, divulgou o calendário das inscrições e das aplicações das provas em 31 de março de 2020, portanto, quando as medidas de isolamento social no país já estavam em vigor. Para 2020, além do Enem em formato impresso, o exame poderia ser feito em formato digital. O prazo para inscrição no exame foi estipulado entre 11 e 22 de maio e as provas seriam realizadas em 11 e 18 de outubro de 2020 (formato digital) e entre 1 e 8 de novembro (formato impresso). O calendário inicial recebeu muitos protestos de educadores e de entidades educacionais que solicitavam o adiamento da prova, alegando que os alunos da rede pública, onde se concentra a maior parte dos estudantes com características socioeconômicas desfavoráveis, estariam em desvantagem em relação aos da rede particular, uma vez que estavam sem aulas no primeiro semestre, enquanto os segundos participavam das aulas remotas. Depois de muita resistência, o governo federal adiou em julho o exame impresso para 17 e 24 de janeiro de 2021 e o digital para 31 de janeiro e 7 de fevereiro de 2021.

A realização do Enem no calendário inicialmente previsto teria contribuído para aumentar as desvantagens dos alunos da rede pública. O adiamento abrandou esta diferença. Todavia, o período de inscrição para o exame manteve-se inalterado, em maio de 2020, diminuindo drasticamente as opções de escolhas de muitos estudantes que naquele momento estavam sem informações sobre o exame ou sem condições de efetuar a inscrição, devido às condições impostas pela pandemia. Pesquisas como a de Heringer (2013), realizada em Cidade de Deus (RJ), e a de Teixeira (2019), realizada no município de Limeira (SP), têm demostrado o grau de desconhecimento de estudantes mais pobres do ensino médio em relação às políticas de inclusão no ensino superior, incluindo o Enem. Em pesquisa, realizada junto a estudantes que cursavam o último ano do ensino médio de uma escola privada da elite (n=45) e alunos de uma escola pública da periferia (n=49), Teixeira (2019) mostrou que a participação no Enem de 2018 foi quase integral entre os estudantes da escola privada. Por outro lado, entre os jovens da escola pública, quase metade dos estudantes não participou do exame. Além disso, na escola privada, 60% dos alunos conheciam alguma política pública de inclusão e acesso ao Ensino superior. Na escola pública, onde, em princípio, estariam abrigados os alunos elegíveis para estas políticas, somente 1 em cada 3 estudantes conhecia tais políticas.

Como atestam as pesquisas, o capital informacional, que possibilita obter vantagens «naturais» nos processos de escolha para o ensino superior num sistema altamente hierarquizado como o brasileiro, já circulava antes da pandemia de maneira distinta, de acordo com as posições socioeconômicas das pessoas e de suas famílias (Nogueira, 2017). Os exemplos desta seção, dentre os quais, a manutenção do período de inscrição do Enem, sugerem que a pandemia aprofundou estas diferenças.

4.3. Depois da pandemia

A partir das experiências vivenciadas durante o ensino remoto e a retomada e fortalecimento das políticas de inclusão e permanência no ensino superior brasileiro, elencamos três desafios para que a possibilidade de retorno presencial às aulas pós-pandemia seja também uma oportunidade para enfrentarmos os processos já descritos de favorecimento das desigualdades educacionais.

  1. 1) A Importância de ações e políticas educacionais concertadas nos diferentes níveis da federação. A omissão do governo federal em liderar os esforços para o enfrentamento da pandemia, não estabelecendo, por exemplo, calendários, ações, protocolos e alterações na legislação de forma clara e unificada, tornou a experiência do ensino superior durante este período muito desigual, em relação às categorias administrativas (rede pública ou privada), ao tipo de organização acadêmica e às unidades da federação. O desafio aqui é fazer com que esta concertação, quanto às ações e políticas educacionais para o Ensino Superior, seja de fato estabelecida.

  2. 2) A importância da ampliação dos sentidos do relacionamento estudantil. A vivência de aulas remotas durante a pandemia evidenciou que as políticas de permanência e de relacionamento estudantil devem também ser sensíveis a outros fatores, não somente aos acadêmicos, sociais, extracurriculares, mas também ao bem-estar emocional, ao acesso ao chamado capital cultural objetivado (computadores, pacotes de dados, softwares), entre outros. Em suma, devem ser multidimensionais (Vargas & Heringer, 2017). Se, por um lado, a rede privada foi mais rápida em adotar aulas remotas, a rede pública possui maior experiência em ações de relacionamento estudantil multidimensionais, como atestam pesquisas na área (Dias, Toti, Sampaio, & Polydoro, 2020). Nesse sentido, os desafios são ampliar essas experiências e torná-las mais comuns na rede privada.

  3. 3) Repensar metodologias de ensino e aprendizagem: como serão as aulas depois da pandemia? Iremos para o chamado formato híbrido, em que aulas remotas e presenciais coexistem? A experiência de continuar utilizando aulas remotas, diferentes do que se chama de Ensino à Distância (EAD), uma vez que são síncronas e envolvem interação entre o professor e o aluno, pode ser uma alternativa vantajosa para professores, alunos e para as instituições. Custos de transporte, tempo de deslocamento, otimização dos espaços são alguns benefícios mais evidentes. Por outro lado, a experiência também demonstrou, pelas respostas dos estudantes verificadas nas pesquisas anteriores, que há muito a aprender em relação ao novo formato e que a transposição automática de aulas presenciais para aulas remotas pode ser desastrosa. Para 37,9% dos alunos da rede privada consultados na pesquisa do Semesp, as aulas no modelo de ensino remoto foram pouco atrativas. Em relação aos estudantes da Unicamp, 39% mencionaram lacunas na formação docente para uso de tecnologias. A questão é se estamos ou não preparados para este novo formato, do ponto de vista de nossas metodologias de ensino e aprendizagem. Ainda mais se considerarmos a heterogeneidade dos alunos e professores no que se refere ao acesso e ao uso de tecnologias, descrita no item anterior. Em suma, iremos utilizar a experiência da pandemia para repensar nossas metodologias de ensino e aprendizagem ou retornaremos para os formatos anteriores a essa situação?

5. Conclusões

Ao longo das páginas anteriores, discutimos o contexto econômico e os processos de expansão das matrículas e de inclusão de pessoas com perfil socioeconômico desfavorável no ensino superior brasileiro das últimas décadas. Vimos que este movimento de expansão apresentava sinais de desaceleração desde 2015, em razão das crises econômica e fiscal, assim como de decisões políticas. Vimos também que os mais pobres, elegíveis para as políticas de inclusão no ensino superior brasileiro, foram os mais afetados pela crise que se instaurou. A manutenção, ou mesmo a ampliação, destas políticas num momento de crise não ocorreu devido ao processo de austeridade fiscal implantado pelo governo federal. Foi nesse contexto de crise econômica e de redução das possibilidades de ingresso no ensino superior para grupos socioeconomicamente desfavorecidos que a pandemia da Covid-19 surgiu, quase como ‘uma terceira onda a atingir o asfixiado’.

Intencionamos demonstrar que a pandemia da Covid-19 não criou as desigualdades educacionais no ensino superior brasileiro, mas contribuiu para seu agravamento. Para tanto, apresentamos resultados de pesquisas empíricas sobre as aulas remotas durante a pandemia, assim como o adiamento do calendário do Enem 2020.

Em relação aos resultados das pesquisas, vimos como a experiência do ensino remoto e os usos das tecnologias durante a pandemia foram bastante desiguais. Para os estudantes provenientes de lugares conectados, a experiência do ensino remoto, embora custosa do ponto de vista dos relacionamentos sociais/pessoais, foi usufruída, relativamente ao acesso e à participação nas aulas, de maneira apropriada, considerando a situação em questão. Além disso, foi uma oportunidade para se investir na hora certa e no lugar certo, como por exemplo, estabelecer conexões com pessoas e instituições do Brasil e do exterior, por meio de cursos e outras formas de capacitação, uma vez que estas instituições estão mais abertas às interações virtuais em razão da pandemia. Em suma, este grupo soube navegar neste ambiente altamente diversificado e pôde ampliar suas posições sociais a partir das escolhas educacionais (Hadja & Becker, 2016).

Por sua vez, os menos conectados, em número significativo de acordo com as pesquisas, que utilizam o celular para as aulas remotas, com baixa qualidade no sinal, e devem compartilhar seus equipamentos com outros moradores num ambiente pouco propício para o aprendizado, foram, como observado, «obrigados a entregar suas escolhas à instituição escolar, ou ao acaso, para encontrar seu caminho, num universo cada vez mais complexo, e por isso votados a errar a hora e o lugar no investimento de seu reduzido capital cultural» (Bourdieu & Champagne, 2003, p. 485)

A manutenção do período de inscrição para o Enem 2020, como visto, também contribuiu para o processo de exclusão, ao diminuir drasticamente as opções de escolhas de muitos estudantes que naquele momento estavam sem informações sobre o exame ou sem condições de efetuar a inscrição devido às condições impostas pela pandemia. Lembremos que o Enem é a principal porta de entrada para o Ensino Superior brasileiro e para as políticas de inclusão e de crédito estudantil neste nível de ensino.

Por último, mas não menos importante, elencamos alguns desafios para o pós- pandemia, com a esperança de que a experiência acumulada durante este período tão atípico possa servir para transformações. A última frase do romance A montanha mágica, de Thomas Mann, reproduzida a seguir, sintetiza este incerto desejo.

«Será que também desta festa mundial da morte, e também da perniciosa febre que inflama o céu da noite chuvosa, ainda surgirá o amor?» (Mann, 2016 [1924], p. 827)

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1 A este respeito, consultar o Decreto n. 2.306, de 19 de agosto de 1997

2 Estas regras foram temporariamente suspensas durante 2021, no período da pandemia, mas voltarão a vigorar em 2022.

Recebido: 08 de Janeiro de 2021; Aceito: 22 de Fevereiro de 2021

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