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Educación

Print version ISSN 1019-9403On-line version ISSN 2304-4322

Educación vol.32 no.62 Lima Jan./Jun. 2023  Epub May 18, 2023

http://dx.doi.org/10.18800/educacion.202301.001 

Ensayos

bell hooks e a transgressão pela presença: inquietações mobilizadas no trânsito pandémico

bell hooks and transgression through presence: concerns mobilized in pandemic traffic

bell hooks y la transgresión a través de la presencia: preocupaciones movilizadas en la pandemia

Fabio Scorsolini-Comin1 
http://orcid.org/0000-0001-6281-3371

1Universidad de São Paulo - Brasil, fabio.scorsolini@usp.br

Resumo

O objetivo deste ensaio crítico é problematizar a questão da categoria “presença” abordada como uma das condições essenciais da educação libertadora na proposta da escritora afro-americana bell hooks (1952-2021), tendo como cenário de referência a educação não presencial desenvolvida no trânsito pandêmico. Será abordada a proposta da educação libertadora diante da necessidade de refletir sobre o intercurso pandêmico, sendo analisados em profundidade dois elementos enfatizados na obra da autora: a voz e o corpo. A partir do exemplo de grupos de reflexão on-line conduzidos com estudantes de enfermagem apresenta-se uma estratégia pedagógica capaz de reconhecer e valorizar a voz de diferentes atores do processo educacional, priorizando o encontro para além da presença tradicionalmente defendida nos espaços formativos: um encontro que espera, resiste e luta pela possibilidade da presença genuína.

Palavras-chave: educação a distância; estudantes universitários; COVID-19; bell hooks (1952-2021)

Abstract

The aim of this critical essay is to problematize the question of the presence category addressed as one of the essential conditions of liberating education in the proposal of the African-American writer bell hooks (1952-2021), having as a reference scenario the non-presential education developed in the pandemic traffic. The proposal of liberating education will be addressed in view of the need to reflect on the pandemic intercourse, and two elements emphasized in the author’s work will be analyzed in depth: voice and body. Based on the example of online reflection groups conducted with nursing students, a pedagogical strategy capable of recognizing and valuing the voice of different actors in the educational process is presented, prioritizing the meeting beyond the presence traditionally defended in training spaces: an encounter that waits, resists and fights for the possibility of genuine presence.

Keywords: distance education; university students; COVID-19; bell hooks (1952-2021)

Resumen

El objetivo de este ensayo crítico es problematizar la categoría presencia abordada como una de las condiciones esenciales de la educación liberadora en la propuesta de la escritora afroamericana bell hooks (1952-2021), teniendo como referencia la educación remota en la pandemia. Se abordará la propuesta de educación liberadora ante la necesidad de reflexionar sobre la pandemia, y se analizarán en profundidad dos elementos enfatizados en la obra de la autora: la voz y el cuerpo. A partir del ejemplo de los grupos de reflexión online realizados con estudiantes de enfermería, se presenta una estrategia pedagógica capaz de reconocer y valorar la voz de los diferentes actores en el proceso educativo, priorizando el encuentro más allá de la presencia tradicionalmente defendida en los espacios de formación: un encuentro que espera, resiste y lucha por la posibilidad de una presencia genuina.

Palabras clave: educación a distancia; estudiantes universitarios; COVID-19; bell hooks (1952-2021)

1. INTRODUÇÃO

Delimitar o período de uma pandemia nem sempre é uma tarefa que pode ser empreendida com exatidão, sobretudo quando extrapolamos os critérios epidemiológicos. Até quando, então, dura uma pandemia? Inauguramos o ano de 2022, por exemplo, com incertezas que nos acompanharam desde que o novo coronavírus foi identificado primeiramente na China e, a partir de então, deu corpo à pandemia da COVID-19, deflagrada oficialmente pela Organização Mundial de Saúde em março de 2020. Nesse período, as narrativas dos números que se avolumavam nacional e internacionalmente mobilizaram sempre um estado de apreensão coletivo: números de infectados, números de mortos e números de vacinados. Curvas e mais curvas se sucederam, criando confusão, alarme e questionamentos acerca, por exemplo, da retomada de uma vida mais próxima do que existia antes desse período.

Em que pesem as repercussões globais dessa crise de saúde, econômica e também humanitária, a educação tem sido um dos campos mais impactados pela pandemia, não sendo possível, ao certo, delimitar até quando suas repercussões serão observadas. Da educação infantil ao ensino superior ainda são incipientes as tentativas de apreender, de fato, quais os prejuízos a longo prazo promovidos pela pandemia (Scorsolini-Comin, Patias, Cozzer, Flores, & Von Hohendorff, 2021). Em uma pandemia ainda em trânsito, a tentativa de mensurar o que se perdeu ao longo desse percurso parece ser uma tarefa bastante complexa e que nos revela, de partida, a necessidade de incluir nessa análise diferentes marcadores, como os de raça/cor, gênero, classe social, origem, entre outros. Esse movimento pode ser útil, em um primeiro momento, para revelar que não se trata de uma única pandemia a afetar a todos, mas diferentes facetas da pandemia a afetar determinadas populações em função de seus operadores sociais. Essa consideração é premente quando pensamos na educação, por exemplo.

O modo como estudantes do ensino básico e do superior foram e têm sido afetados pela pandemia é bastante distinto (Magalhães, 2021). Quando analisamos o ensino público e o privado, as assimetrias se ampliam (Macedo, 2021). Quando aplicamos os recortes de gênero, raça/cor, origem, renda e origem acessamos um quadro bastante complexo que não pode ser resumido em uma pandemia, mas em diferentes facetas que revelam, sobretudo, diversidades e desigualdades (Pérez, Cisternas, Yánez, & Moratalla, 2021; Pires, 2021). Compreender essa desigualdade é importante para que as próximas ondas no curso pandêmico possam ser discutidas de modo mais crítico, com elementos concretos que nos habilite a reflexões que ultrapassem a tão explorada necessidade de adaptação.

No ensino superior pudemos observar diferentes movimentos desde que a pandemia foi anunciada e que as aulas e demais atividades presenciais foram suspensas no início de 2020. Instituições que possuíam estrutura para a oferta de cursos na modalidade a distância foram pioneiras no sentido de adaptar ferramentas que possibilitassem a manutenção de aulas e demais atividades, agora mediadas exclusivamente por computadores, tablets ou por smartphones. Em uma primeira corrida pela adaptação, essas instituições puderam explorar os benefícios do que estava consolidado até então no domínio da educação a distância, vendida a partir daí como sinônimo de futuro e de inovação (Scorsolini-Comin, Melo, Rossato, & Gaia, 2020).

Outras instituições que também possuíam alguma estrutura próxima da educação a distância se tornaram pioneiras nessa adaptação emergencial. Universidades com cursos que tinham atividades desenvolvidas em ambientes virtuais de aprendizagem puderam replicar esse modelo, tornando o que era, até então, algo bastante restrito, uma forma generalizada de manter o ensino superior funcionando, mesmo com um cenário sanitário devastador. Professores e alunos, então, foram “convidados” a migrar para o modelo da educação a distância. Obviamente, com o preconceito que ainda existe sobre esse modelo e também a partir do reconhecimento de que essa adaptação não se tratava, pois, de um modelo genuíno de educação a distância, outras nomenclaturas passaram a habitar o espaço discursivo.

Essas novas nomenclaturas tinham duas funções principais: a primeira delas era reafirmar que a educação a distância não era uma solução e que cursos presenciais continuariam a ser presenciais assim que possível; a segunda era a de que a adaptação operada pelas universidades era transitória, optando-se por termos que revelavam esse sentido, como o chamado ensino emergencial e também o ensino remoto emergencial. Para fazer frente à primeira necessidade, um termo bastante recorrente, por exemplo, passou a ser o ensino remoto. O efeito de sentido que se buscava com essa nomenclatura era reafirmar que não se tratava, pois, da clássica educação a distância, o que poderia recuperar toda uma gama de preconceitos em relação à modalidade. O ensino remoto, empregando ferramentas de aprendizagem e de comunicação síncronas e assíncronas, em si, não se diferenciava muito dos modelos de educação a distância até então disponíveis. Mas marcar as diferenças entre esses modelos era importante.

Com a melhoria das condições sanitárias em diversas partes do país e do início da vacinação em massa ainda no primeiro semestre de 2021 no Brasil, algumas instituições de ensino superior passaram a realizar atividades presenciais, como aulas com pequenos grupos, estágios, supervisões de estágio em equipamentos de saúde, bem como atividades de laboratório para cursos de saúde, atividades essas que não poderiam ser realizadas remotamente. Ao mesmo tempo, outras atividades permaneciam a distância, como aulas, sobretudo de disciplinas teóricas ou sem carga horária prática. Outra nomenclatura, então, passou a ser empregada de modo recorrente: o ensino híbrido. O ensino híbrido passava a ser um termo que mostrava a transição possível: ainda não exclusivamente presencial, mas também não totalmente remoto.

Essa aparente indefinição do termo “ensino híbrido” no contexto brasileiro levou o Conselho Nacional de Educação a adotar um posicionamento oficial por meio do Parecer CNE/CP nº 14/2022, que trata das Diretrizes Nacionais Gerais para o desenvolvimento do processo híbrido de ensino e aprendizagem na Educação Superior. Segundo este parecer, o ensino híbrido não deve ser confundido com a educação a distância (EAD), prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 e regulamentada pelo Decreto nº 9.057, de 25 de maio de 2017. O ensino híbrido faz uso de estratégias de ensino-aprendizagem que integram o ensino presencial e atividades em diferentes tempos e espaços mediadas pelas tecnologias digitais.

Aos poucos, muitos cursos superiores voltaram às atividades exclusivamente presenciais, sobretudo aqueles ligados às áreas de saúde, e outros conservaram os modelos desenvolvidos durante a pandemia como forma de ainda avaliar os cenários sanitários vindouros e as possibilidades de retomada. O que se observou, também, é que esses modelos passaram a ser muito mais customizados em função da pandemia e da evolução ou não das condições sanitárias. Assim, esses modelos funcionaram como ferramentas que poderiam ser recuperadas ou abolidas em função de determinações externas e mesmo a partir de decisões dos gestores educacionais.

Em função disso, outros importantes termos que fazem parte do universo educacional passaram a ser cada vez mais discutidos. Os termos “tradicional”, “conservador” e “inovador”, apenas para citar três exemplos, passaram a ser refletidos de modos distintos, como se os sentidos evocados a partir dos mesmos flutuassem de acordo com as ondas da pandemia. O termo tradicional, por exemplo, passou a ser bastante esvaziado, como se fosse sinônimo de algo defasado, com o qual ninguém mais poderia se identificar. Em um primeiro momento, a recusa ao tradicional trazia a ideia de que a pandemia era um convite para que o ensino, de modo geral, pudesse conhecer mais a educação a distância e as novas tecnologias digitais de informação e de comunicação. Um convite à inovação. Tudo o que se recusasse a esse convite era considerado tradicional, desfasado e deveria ser superado. A pandemia, até aquele momento, revelava esse sentido.

Com o passar do tempo e a permanência das condições adversas que contraindicavam a retomada das atividades presenciais, um movimento de desmotivação e entediamento em relação aos modelos não-presenciais passou a ser referido por estudantes, professores e gestores. Assim, aquilo que outrora se revelava como novo (inovador) passava a gerar como efeito o cansaço, a desmotivação e a necessidade de promover mudanças (Dias, 2021). Rapidamente, o ensino remoto ou a distância passou a ser questionado em sua efetividade e em sua possibilidade de substituir o então ensino presencial - também conhecido como tradicional e, algumas vezes, já superado.

Nesse ponto, as instituições de ensino reforçaram a necessidade de retorno presencial o mais rápido possível. As ferramentas da educação a distância ou do ensino remoto estavam se mostrando obsoletas e desmotivadoras, ampliando a evasão nos cursos, sobretudo de instituições privadas de ensino. Em algumas instituições consideradas tradicionais reforçava-se, então, o compromisso com a educação presencial, o que mobilizava a adoção do termo emergencial para reconhecer que se tratava de algo apenas transitório e adotado à revelia de quem pensava uma boa educação ou uma educação superior de qualidade. As mesmas instituições de ensino que anteriormente se colocavam a favor da adoção de ferramentas da educação a distância como inovação para ao ensino superior passavam a reformular a noção de inovação: a “presença”, então, passava a ser a tão desejada inovação.

Esse preâmbulo mostra-se necessário para que possamos compreender que essas discussões não se iniciaram na pandemia da COVID-19, pelo contrário. Trata-se de questões sobre as quais educadores têm se debruçado há muitos anos, sobretudo a partir da necessidade de compreender o que era, de fato, a inclusão das novas tecnologias digitais da informação e da comunicação no ensino superior. Tidas como revoluções, essas tecnologias, ao longo da pandemia, não se mostraram suficientes para manter a estrutura educacional funcionando. De algum modo, os professores passaram a ser revalorizados nesse processo: em um cenário pré-pandêmico em que se discutia a necessidade de professores na pós-modernidade e mesmo da escola, esses personagens passam a ser novamente necessários por diferentes motivos (Lévy, 2009). Primeiramente para mediar a relação entre estudantes e tecnologias, haja vista que muitos desses alunos não se mostravam tão letrados no mundo digital como se imaginava, pelo menos não para finalidades educacionais. Em segundo lugar, pelo reconhecimento da importância da presença do professor em todo o ato educativo.

Isso nos leva a importantes discussões apresentadas ao longo da carreira da escritora feminista afro-americana bell hooks (1952-2021). bell hooks (pseudônimo adotado por Gloria Jean Watkins) atuou como professora no ensino superior em diferentes universidades dos Estados Unidos, mostrando-se uma pensadora crítica sobre o processo de construção da identidade do professor e de como o ensino era promovido, tendo como referência o cenário pré-pandêmico. Fortemente inspirada no início de sua carreira pelos escritos de Paulo Freire (2010), bell hooks acreditava em uma pedagogia crítica, engajada e que pudesse levar, de fato, à libertação. Essa educação libertadora estava ligada ao reconhecimento, por parte do aluno, dos mecanismos de opressão presentes no sistema de ensino. O reconhecimento dessa estrutura e do diálogo como fonte de combate seriam capazes de promover uma educação capaz de romper não apenas com a opressão, mas também com a exploração e a desigualdade. Essas ideias, também partilhadas por Paulo Freire, estariam no cerne de toda a sua reflexão sobre a educação contemporânea.

Embora bell hooks tenha sido uma importante entusiasta da obra de Paulo Freire, deve-se destacar que a autora assinalava algumas lacunas na produção freireana, como a ausência de uma crítica feminista e o posicionamento sexista muitas vezes atribuído ao educador. Em seus ensaios, hooks (2021a) menciona que, em contato com Paulo Freire, este se mostrou receptivo a tais críticas.

Em sua obra “Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade”, bell hooks (2021a) apresenta uma série de ensaios sobre educação que produziu ao longo de toda a sua carreira. Esses ensaios revelam muitos dos seus questionamentos produzidos quando era estudante e, sobretudo, quando se tornou professora, ofício este que, no início, não era alvo de seu desejo. bell hooks desejava ser escritora, mas a carreira acadêmica se revelava, à época, uma forma de poder produzir seus livros. O fenômeno educativo sempre foi alvo da reflexão da autora, de modo que a sua inspiração na obra de Paulo Freire (2010) já revelava, de antemão, um compromisso com uma ruptura em relação ao modo bancário como o ensino era visto e reproduzido. bell hooks (2021b) assinala, a todo momento, a necessidade de que os estudantes e professores possam se tornar conscientes dessa educação, compreendendo de que modo a sua raça/cor, gênero, classe e origem, por exemplo, marcam o processo educativo.

A partir desse panorama, o objetivo deste ensaio crítico é problematizar a questão da categoria “presença” abordada como uma das condições essenciais da educação libertadora na proposta de bell hooks tendo como cenário de referência a educação não presencial desenvolvida no trânsito pandêmico. Será abordada a proposta da educação libertadora diante da necessidade de refletir sobre o intercurso pandêmico, sendo analisados em profundidade dois elementos enfatizados na obra da autora: a voz e o corpo.

2. A EDUCAÇÃO LIBERTADORA PODE SOBREVIVER À PANDEMIA?

Na tentativa de compreender e postular como uma educação poderia ser libertadora, bell hooks (2021a) convoca os professores universitários para importantes reflexões. Em uma delas, destaca o papel docente na promoção do que chama de entusiasmo diante do que deverá ser aprendido. Esse entusiasmo não recupera qualquer necessidade de recorrer a conhecimentos prévios ou fórmulas mnemônicas que facilitem a recuperação da aprendizagem, mas fundamentalmente considerar a “presença” do professor:

Na comunidade da sala de aula, nossa capacidade de gerar entusiasmo é profundamente afetada pelo nosso interesse uns pelos outros, por ouvir a voz uns dos outros, por reconhecer a presença uns dos outros. Visto que a grande maioria dos alunos aprende por meio de práticas educacionais e conservadoras e só se interessa pela presença do professor, qualquer pedagogia radical precisa insistir em que a presença de todos seja reconhecida. E não basta simplesmente afirmar essa insistência. É preciso demonstrá-la por meio de práticas pedagógicas. Para começar, o professor precisa valorizar de verdade a presença de cada um. Precisa reconhecer permanentemente que todos influenciam a dinâmica da sala de aula, que todos contribuem. Essas contribuições são recursos. Usadas de modo construtivo, elas promovem a capacidade de qualquer turma criar uma comunidade aberta de aprendizado. (hooks, 2021a, p. 13).

Aqui é importante destacar dois pontos. O primeiro deles é que a autora acentua a importância da “presença” do professor. Essa “presença”, bem como o seu reconhecimento e valorização por parte do estudante, são elementos considerados tradicionais. O segundo ponto é a presença dos próprios estudantes, como se esta não fosse devidamente reconhecida no chamado ensino presencial. Deve-se enfatizar que as reflexões propostas por bell hooks e recuperadas no presente ensaio não foram produzidas no contexto pandêmico, mas revelam certa perenidade de inquietações sobre o ato educativo.

Transpondo esse pensamento para o contexto da pandemia da COVID-19, pode-se pensar que o elemento que justamente é afetado é o da “presença”. A “presença” do professor passa a ser virtual, remota. Ele pode estar presente de modo síncrono em atividades como aulas ao vivo, ou então remotamente em aulas gravadas, assíncronas. O professor pode se fazer presente em diferentes espaços virtuais de aprendizagem, como em chats, fóruns e mesmo a partir de comunicações mais tradicionais, por meio de aplicativos de mensagens e e-mails.

Nesses espaços de comunicação a “presença” deve ser problematizada a partir de diferentes sentidos dessa sua participação, inclusive da questão do corpo que será posteriormente endereçada neste ensaio. Em algumas ­ferramentas, a “presença” do professor se converte na possibilidade de escrita - de modo síncrono, respondendo a dúvidas em tempo real, ou então de forma assíncrona, posteriormente. A visualização do corpo deste professor também acaba sendo uma experiência fragmentada: por vezes é possível enxergar o tronco do professor, na maioria das vezes apenas o seu busto ou rosto, por vezes apenas a sua voz pode ser ouvida. Essa experiência da presença comunicada de diferentes formas acaba promovendo uma fragmentação do professor, de modo que ele parece ser diferente a cada forma de comunicação: quando se conversa com o professor pelo e-mail, pelo aplicativo de mensagens, pela aula ao vivo, pela caixa de dúvidas. Em cada experiência de comunicação este corpo aparece de modo mais ou menos visível, de modo mais ou menos integral.

Quando pensamos na experiência da presença do aluno, o cenário parece ser ainda mais complexo. Durante a pandemia foram constantes os relatos de professores incomodados com estudantes que, nas aulas síncronas e por plataformas de vídeo, não habilitavam as suas câmeras para que pudessem ser vistos pelos professores e pelas demais pessoas da turma. Ainda que essa questão da câmera possa ter diferentes atravessamentos, como pelo fato de não haver o equipamento instalado no computador, por não estar em um lugar adequado para a aula, por não estar sozinho no espaço em que assiste à aula, entre outros tantos fatores mais pessoais ou mais macrossociais (Máximo, 2021), a experiência do aluno que não se mostra visível adquire um status ainda não devidamente endereçado na literatura pedagógica.

Quando pensamos na questão da voz, o que também será aprofundado a seguir, os problemas parecem se manter: ainda que alguns alunos não possuam microfone, o fato de não poderem ser vistos nem ouvidos durante a aula coloca a “presença” como uma condição que não mais é um fator exclusivo para que o aprendizado possa ocorrer. Muitos estudantes, nesse período, manifestavam-se por chat, criando outra forma de pensar a presença, agora não mais pelo corpo, não mais pela voz, mas pela escrita.

bell hooks (2021a) destaca a necessidade de que o professor valorize e reconheça a “presença” de todos os estudantes da turma, não importando a quantidade de alunos que façam parte daquele espaço. Embora estejamos em um contexto de desenvolvimento tecnológico que permita a existência de plataformas de vídeo que suportem centenas de estudantes ao mesmo tempo, em uma mesma “sala de aula”, é imperativo pensar em uma forma de reconhecer e valorizar a presença do aluno.

Primeiramente, essa dificuldade se deve ao fato de que a “presença” nem sempre pode ser atestada nesse tipo de tecnologia - por mais que saibamos que um aluno está logado no sistema nunca saberemos, com toda a certeza, se ele, de fato, está presente. Ainda que essa discussão não seja a mais importante, ainda recai sobre o professor a necessidade de convocar esses estudantes para a experiência da aula. Como visualizar estudantes sem câmeras e ouvir estudantes sem microfones? Como permitir que todos se vejam e se escutem no espaço da aula? É aqui que bell hooks (2021a) nos provoca a pensar em estratégias pedagógicas que possam incluir a “presença”, como apresentado a seguir.

3. DE ONDE VEM A VOZ NO ENSINO NÃO PRESENCIAL?

bell hooks (2021a) convoca professores e estudantes para o desenvolvimento de estratégias que possam, de fato, permitir que a voz de todos faça parte da sala de aula, evitando que determinadas pessoas ou grupos sejam silenciados por forças dominantes. Em experiências com estudantes de um curso superior em enfermagem no Brasil, temos trabalhado desde o início da pandemia com grupos de reflexão on-line (Scorsolini-Comin, 2020). Esses grupos de reflexão com estudantes são desenvolvidos em diferentes momentos, mas dois se mostraram mais significativos para as discussões recuperadas neste ensaio.

Um desses grupos ocorre sempre no início do ano letivo com os estudantes calouros, que recentemente ingressaram na universidade. Nos anos de 2020 e 2021, em função da pandemia, esses grupos foram realizados remotamente. É uma das primeiras experiências desses estudantes na universidade e com os colegas que farão parte da sua turma. Nesses grupos encontramos muitos estudantes dispostos a abrirem a câmera e o microfone, também como forma de se conhecerem. Ainda que eles se acompanhem em outros espaços, como nas redes sociais, conhecer um colega de turma a partir de um encontro virtual (um colega que deve acompanhá-lo pelos próximos quatro ou cinco anos de curso), é uma experiência que pode mobilizar diferentes sentimentos. No entanto, permanecem os sentidos geralmente observados com os ingressantes: desconhecimento do novo, vontade de estabelecer novos relacionamentos, interesse pelo outro, necessidade de se comunicar e de construir e fortalecer vínculos (Rossato & Scorsolini-Comin, 2019).

Outra experiência grupal ocorre com esses mesmos ingressantes, mas no momento em que eles chegam ao final do primeiro ano. Esse processo pode ser observado ao final dos anos de 2020 e de 2021, já no período pandêmico. A maioria dos estudantes ainda não se conhecia pessoalmente, embora em 2021 alguns já tivessem se conhecido em função da retomada de algumas atividades presenciais, como as que envolviam laboratórios de prática.

Nem todos os estudantes, nesse segundo grupo, após um ano de curso, mostravam-se tão disponíveis para abrirem suas câmeras e seus microfones, haja vista que não se tratava mais da primeira experiência de contato. No entanto, o desconhecimento acerca do outro ainda estava fortemente marcado. Algumas histórias apresentadas, experiências vivenciadas ao longo do primeiro ano de curso, não foram identificadas por todos da turma. Alguns estudantes mostram-se surpresos com a revelação de eventos vivenciados com colegas próximos. Trata-se, aqui, de um novo convite ao contato, à “presença”.

Esses grupos de reflexão com estudantes têm se mostrado uma estratégia pedagógica importante pela possibilidade de reconhecimento e de valorização não apenas das experiências discentes, mas das suas presenças, dos seus corpos, das suas vozes (Rossato & Scorsolini-Comin, 2019; Scorsolini-Comin, 2020). Essa estratégia dialoga diretamente com o que propõe bell hooks:

Ensinar é um ato teatral. E é esse aspecto do nosso trabalho que proporciona espaço para as mudanças, a invenção e as alterações espontâneas que podem atuar como catalisadoras para evidenciar os aspectos únicos de cada turma. Para abraçar o aspecto teatral do ensino, temos que interagir com a “plateia”, de pensar na questão da reciprocidade. Os professores não são atores no sentido tradicional do termo, pois nosso trabalho não é um espetáculo. Por outro lado, esse trabalho deve ser um catalisador que conclame todos os presentes a se engajar cada vez mais, a se tornar partes ativas no aprendizado. (hooks, 2021a, p. 16)

O papel do professor, aqui, parece ser o de catalisador, assim como postulado por hooks (2021a). Na experiência em tela o professor atua como um mediador, atento para que ases diferentes experiências possam ser relatadas e sejam igualmente ouvidas no espaço grupal on-line. Isso pode ser garantido a partir das instruções apresentadas no início da atividade: todos devem ouvir as experiências dos colegas com respeito, os relatos devem ser acolhidos, as ponderações apresentadas devem ter como objetivo garantir o espaço saudável de trocas de experiências, todos devem ser ouvidos sem quaisquer distinções. A “presença”, a participação, a voz e o relato em si são acolhidos, valorizados, cabendo aos estudantes se posicionarem também em relação aos eventos compartilhados pelos colegas. Assim, não se trata apenas de um espaço em que cada um expõe a sua voz, mas que os estudantes sejam convidados a efetivamente se ouvirem no processo interativo. A partir disso pode-se atingir o que bell hooks destaca como reconhecimento:

Segundo minha experiência, um dos jeitos de construir a comunidade na sala de aula é reconhecer o valor de cada voz individual. [...] Ouvir um ao outro (o som de vozes diferentes), escutar um ao outro, é um exercício de reconhecimento. Também garante que nenhum aluno permaneça invisível na sala. (hooks, 2021b, p. 46)

É importante considerar os termos empregados pela autora e o modo como eles se ressignificam a partir de uma leitura no trânsito da pandemia. Aqui é importante considerar que estamos tratando de uma escuta que se posiciona de modo distinto quando estamos em um grupo presencial, em um grande círculo em que todos podem se ver ou sentir a presença do outro, por exemplo, e quando compomos um grupo on-line no qual nem sempre podemos nos ver (ainda que todos estejam com as câmeras abertas, a depender da quantidade de participantes).

Outras questões podem ser aqui aventadas: de algum modo, assim como o espaço virtual pode fazer com que algumas vozes não queiram ser ouvidas, no espaço presencial nem sempre todas ases vozes poderão se manifestar. Desse modo, sem que façamos um julgamento no sentido de comparar modelos, é mister ponderar que diferentes possibilidades interativas podem ocorrer. Pessoas mais participativas presencialmente nem sempre funcionarão desse modo em grupos on-line, da mesma forma que pessoas consideradas mais caladas nas aulas presenciais não necessariamente silenciarão na interação virtual. Isso equivale a dizer que as diferentes modalidades de interação podem convocar diferentes públicos e dar visibilidades a diferentes vozes.

No entanto, isso não pode ser apreciado passivamente pelo professor que está propondo a atividade e aqui reside a responsabilidade pela prática pedagógica tão enfatizada por bell hooks (2021c):

Como professora, reconheço que os alunos de grupos marginalizados têm aula dentro de instituições onde suas vozes não têm sido nem ouvidas nem acolhidas, quer eles discutam fatos - aqueles que todos nós podemos conhecer -, quer discutam experiências pessoais. Minha pedagogia foi moldada como uma resposta a essa realidade. Se não quero que esses alunos usem a “autoridade da experiência” como meio de afirmar a sua voz, posso contornar essa possibilidade levando à sala de aula estratégias pedagógicas que afirmem a presença deles, seu direito de falar de múltiplas maneiras sobre diversos tópicos. Essa estratégia pedagógica se baseia no pressuposto de que todos nós levamos à sala de aula um conhecimento que vem da experiência e de que esse conhecimento pode, de fato, melhorar nossa experiência de aprendizado. (hooks, 2021c, p. 87)

O termo “autoridade da experiência” é aceito por bell hooks em um primeiro momento da sua produção, sendo alvo de críticas por parte da autora posteriormente. Para ela, um dos efeitos do uso da “autoridade da experiência” é justamente a reafirmação de preconceitos e estigmas, reforçando as diferenças entre classes e entre gêneros, por exemplo. Desse modo, o professor precisa adotar uma estratégia de condução da atividade que permita que as diferentes vozes sejam ouvidas, mas que a “autoridade” atribuída a algumas delas não reforcem as desigualdades e as assimetrias de poder, promovendo desencontros.

Cabe ao professor, aqui, mediar a atividade no sentido de reconhecer todas as experiências que forem partilhadas. Pode, ainda, buscar incentivar que as vozes que ainda não foram ouvidas possam se manifestar, pode propor direcionamentos para que outras experiências sejam também legitimadas e ouvidas pelo grupo, pode propor questões a serem respondidas por diferentes interlocutores, valorizando as diferenças e também os pontos de encontro. A experiência aqui narrada deve convidar à expressão, à troca, à partilha, não sendo significada como um espaço de avaliação (do curso, de uma disciplina ou da instituição). A adoção dessa estratégia nos coloca diante de outra recomendação trazida por bell hooks em sequência:

Para lecionar em comunidades diversas, precisamos mudar não só nossos paradigmas, mas também o modo como pensamos, escrevemos e falamos. A voz engajada não pode ser fixa e absoluta. Deve estar sempre mudando, sempre em diálogo com um mundo fora dela. (hooks, 2021a, pp. 16-17)

Neste ponto podemos pensar que a educação crítica e engajada defendida por hooks deve se colocar a serviço da mudança. O trânsito pandêmico nos trouxe o desafio de não apenas migrarmos (do presencial para o distante, remoto, emergencial ou híbrido), mas de revermos o modo como ensinávamos e como passaríamos a ensinar a partir de então. Muito do desgaste relatado por professores que adoecerem durante o trabalho na pandemia deve-se ao fato de que a orientação recebida por gestores era a de tentar, ao máximo, manter a proximidade com o ensino presencial. Em outras palavras, tratava-se de tentar, ao máximo, manter a chamada normalidade, como se não estivéssemos atravessando uma pandemia.

Essa recomendação é um dos equívocos importantes que têm sido reconhecidos pelas comunidades educacionais, sobretudo nos dois primeiros anos de pandemia. Pensar o ensino a distância ou remoto como uma substituição ou adaptação do ensino presencial nos leva a diferentes dilemas no ato educativo. Isso pode ser observado tanto em aspectos mais concretos quanto subjetivos da experiência educativa.

Citamos aqui alguns exemplos. Uma aula que, no modelo presencial, durava três ou quatro horas ininterruptas não poderá ser simplesmente mantida desse modo quando alunos e estudantes estiverem no ensino remoto. Estudantes e professores nem sempre poderão estar conectados por longos períodos e com a preservação de espaços e de condições ambientais adequadas para a aula. Esses atores da aprendizagem estarão, muito provavelmente, em suas casas, de modo que diferentes circunstâncias podem interferir nesse processo, inclusive o cansaço pela exposição contínua às telas de computadores, tablets e smartphones.

Outro exemplo: exigir que a aplicação de uma prova se dê da mesma forma que no presencial pode oferecer diferentes riscos, haja vista que nem sempre o professor poderá sustentar as condições ambientais desejadas. É óbvio, mas importante lembrar, que o professor não pode controlar o espaço da casa do aluno. Esses dois exemplos simples são importantes para que possamos discutir que os modelos e estratégias adotados e desenvolvidos durante a pandemia devem refletir os anseios e as condições observadas nesse momento, e não como forma de sustentar a manutenção de algo que não pode mais ser garantido: a “presença” - pelo menos não no sentido mais tradicional do termo.

Por fim, uma reflexão torna-se premente: sustentar uma comparação rígida de modelos em busca de verificar quais as perdas e os ganhos alcançados ao longo da pandemia é uma tarefa pouco comprometida com o que afirma a educação libertadora. A educação libertadora não se coloca a serviço de reunir evidências em prol de um modelo ou de outro que se mostre mais efetivo ou eficaz em função de parâmetros construídos por teóricos que nem sempre estão engajados na experiência radical do ato educativo.

Quando analisamos o ensino não presencial adotado emergencialmente ou como algo mais perene no trânsito da pandemia não estamos nos comprometendo, necessariamente, com um modelo anteriormente desenvolvido e testado, mas com uma forma de responder especificamente às necessidades desse momento. Estamos, sim, buscando uma forma de continuar, de dar sentido à experiência de permanecer estudando/ensinando quando boa parte da população está tentando sobreviver, manter a subsistência, pagar contas básicas e não se abandonar à própria sorte ou às controversas políticas públicas elaboradas para acolher quem mais precisa. Essa experiência de manter uma proposta educacional e de não permitir a evasão, seja qual for o modelo adotado e o nome escolhido para dar corpo ao mesmo, deve ser mais valorizada do que propriamente as características de cada proposta.

A transgressão, utilizando uma expressão bastante presente em toda a obra de bell hooks (2021a), parece ser a de justamente resistir em um cenário que nos provoca, a todo momento, pela interrupção, pelo abandono, pela evasão. Aqui novamente a autora nos convida a olhar que essa resistência não será a mesma para todos os estudantes e todos os professores: por meio de uma leitura interseccional é que poderemos compreender melhor o papel de cada marcador social na experiência de ensino e aprendizagem no trânsito da pandemia.

Para tanto, problematizar como o gênero, a raça/cor, a classe social e a origem atravessam de modos distintos alunos de camadas distintas, de cursos distintos e de universidades distintas é um requisito básico, pautando toda e qualquer análise que busque romper com a romantização que insiste, muitas vezes, em reconhecer a educação diante da pandemia como uma só educação, com um só perfil de estudante, com um só perfil docente. Apropriando-nos do pensamento de bell hooks (2021a), podemos afirmar que a transgressão na educação, no contexto pandêmico, é ser capaz de resistir e de compreender que não se trata de apenas uma forma de resistência, mas de uma pluralidade de sentidos, personagens e cenários que, juntos, nos permitem continuar.

4. ONDE ESTÁ O CORPO NO ENSINO NÃO PRESENCIAL?

Como temos discutido neste ensaio, a voz e o corpo assumem um papel muito importante no pensamento de bell hooks (2021d). Eles deixam de ser apenas elementos analíticos da experiência educativa e passam a ser operadores por meio dos quais a educação libertadora pode se concretizar. É permitindo que a voz dos estudantes seja ouvida, sobretudo daqueles excluídos e marginalizados socialmente, e que seus corpos habitem espaços nem sempre pensados para a existência dos mesmos que o ato educativo pode ser transgressor. A esse respeito, a autora afirma:

Acho que um dos incômodos silenciosos que rodeiam o modo como um discurso sobre raça e gênero, classe social e prática sexual perturbou a academia é exatamente o desafio a essa cisão entre mente e corpo. Quando começamos a falar em sala de aula sobre o corpo, sobre como vivemos no corpo, estamos automaticamente desafiando o modo como o poder se orquestrou nesse espaço institucionalizado em particular. A pessoa mais poderosa tem o privilégio de negar o próprio corpo. [...] A pedagogia libertadora realmente exige que o professor trabalhe na sala de aula, que trabalhe com os limites do corpo, trabalhe tanto com esses limites quanto através deles e contra eles: os professores talvez insistam em que não importa se você fica em pé atrás da tribuna ou da escrivaninha, mas isso importa sim. [...] Reconhecer que somos corpos na sala de aula foi importante para mim, especialmente no esforço para quebrar a noção do professor como uma mente onipotente, onisciente. (hooks, 2021d, p. 140-141)

A perspectiva de hooks não pode ser lida apenas como uma questão de tornar o corpo visível a partir de uma leitura, por exemplo, do gesto. A presença do professor deve permitir que este seja lido pelo estudante para além do que ele pensa ou do conhecimento que ele traz, mas a partir do modo como ele se inscreve. Essa inscrição se dá a partir do corpo, a partir do modo como consegue ser um único ser e não um fragmento.

No contexto da pandemia, esses corpos (de alunos e de professores) passaram pela experiência da fragmentação. Quando as turmas conheciam presencialmente um professor podiam observar, pelas plataformas de transmissão de aula, possíveis mudanças ao longo do tempo. No caso de turmas que ainda não conheciam seus professores, o que ocorreu a partir da tela de computadores e tablets, o contato presencial ainda guarda a questão da surpresa e das possibilidades de leitura de corpo que foram produzidas a distância: é na distância que não sabemos a altura, o peso, o modo como se caminha, o espaço que se ocupa, o cheiro que se tem.

Isso significa, na perspectiva de hooks (2021d), que a experiência do corpo não tem sido apenas historicamente negada, como alçada a uma condição de normalidade com a pandemia. Um corpo que já era excluído do processo educacional passa a ser legitimado como um fragmento ou, por vezes, como algo que não pode se tornar visível. Assim, estudantes deixam de abrir suas câmeras (quando podem fazê-lo) e isso acaba sendo normalizado, como se o corpo mesmo não fosse importante. Decorrente disso a voz também é silenciada: alunos são autorizados, gradativamente, a deixarem de se tornarem visíveis e falantes para resumirem-se a fotos ou avatares.

Quando alunos mencionam que não podem abrir câmeras e microfones pela inexistência desses equipamentos uma outra questão pode se apresentar: a de estudantes que são invisibilizados e silenciados não porque assim o desejam, mas porque operadores macrossociais impõem essa condição. Isso traz para o debate uma outra questão: a quem interessa invisibilizar e silenciar determinados corpos e vozes no processo educacional? Uma educação que permita esse processo pode estar a serviço da liberdade e da transgressão? Naturalizar esses movimentos pode nos conduzir a uma postura descrita por hooks (2021d) como mascaramento do corpo:

O mascaramento do corpo nos encoraja a pensar que estamos ouvindo fatos neutros e objetivos, fatos que não dizem respeito à pessoa que partilha a informação. Somos convidados a transmitir informações como se elas não surgissem através dos corpos. [...] Todos nós somos sujeitos da história. Temos de voltar a um estado de presença no corpo para desconstruir o modo como o poder tradicionalmente se orquestrou na sala de aula, negando subjetividade a alguns grupos e facultando-a a outros. [...] É fascinante ver como o mascaramento do corpo se liga ao mascaramento das diferenças de classe e, mais importante, ao mascaramento do papel do ambiente universitário como local de reprodução de uma classe privilegiada de valores, do elitismo. (hooks, 2021d, p. 142-143).

O mascaramento do corpo, tal como descrito por hooks (2021d), está fortemente comprometido com a negação da diferença e da desigualdade. Quando pensamos em um ensino não presencial que, hipoteticamente, pode ser acessado por todos, estamos trabalhando com uma categoria que generaliza a experiência educacional e apaga corpos. A palavra mascaramento é oportunamente compreendida neste ensaio em proximidade com o que os efeitos das máscaras usadas como equipamentos de proteção individual promoveram nos estudantes e alunos no momento do retorno presencial em escolas e universidades, por exemplo: o mascaramento confunde, despersonaliza, generaliza, controla corpos para que estes sejam apenas aquilo que se pode ser.

O emprego das máscaras como símbolo do momento pandêmico oportuniza a aproximação de sentido com o mascaramento do corpo na educação desde antes da pandemia, como observamos nos escritos produzidos por hooks (2021d) ao final do século XX e nas duas primeiras décadas do presente século. A força simbólica da máscara como representativa da pandemia é uma forma de validar a invisibilidade do corpo: as poucas câmeras abertas a revelar poucos corpos no processo educativo também são afetadas por máscaras que escancaram a necessidade de cobrir um corpo e, com isso, uma experiência.

É por isso mesmo que a autora recomenda a volta a um “estado de presença do corpo”. Talvez seja esse retorno o tão ansiado em nossa sociedade. Mas aqui, novamente, cabe uma recomendação/provocação: não se trata de um retorno meramente presencial e que se recuse a discutir a experiência da pandemia, mas justamente uma presença com forma, cor, gênero, origem, classe, aroma e desejo por liberdade. Permitir que esses corpos escondidos/protegidos pelas máscaras novamente componham o espaço formativo é uma tarefa que deve ser assumida por estudantes e professores desejosos por uma educação verdadeiramente libertadora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Problematizando a “presença” a partir da voz e do corpo, este ensaio pode endereçar algumas reflexões de bell hooks (2021d) para o contexto da pandemia da COVID-19, tendo como referência, sobretudo, o cenário do ensino superior brasileiro. Embora a autora não tenha produzido originalmente essas reflexões em um contexto de emergência sanitária global, como o da pandemia da COVID-19, tais considerações são oportunas no sentido de pensar a presença, a voz e o corpo em um contexto que, de partida, busca invisibilizar e silenciar esses elementos.

A voz e o corpo não são apenas pistas para pensarmos uma educação libertadora, mas chaves importantes de uma leitura disposta a transgredir também o modo como esses elementos retratam uma educação possível diante da pandemia. As mais recentes tecnologias digitais de informação e de comunicação, embora ofereçam uma leitura que leva ao rompimento de tempos e espaços na educação, ainda permitem efeitos como o silenciamento e a invisibilidade de estudantes e professores. Essas tecnologias, sozinhas, não são capazes de proporcionar um acesso democrático e igualitário à educação. Pelo contrário: a depender de como são geridas reforçam distanciamentos, assimetrias, desigualdades e opressões.

Isso nos faz problematizar que a pandemia não pode ser analisada exclusivamente como uma condição extrema que promoveu efeitos extremos. Alguns dos efeitos vivenciados contemporaneamente foram apenas acelerados pela pandemia e pela desigualdade social e de acesso à educação que já eram alvo de debate acalorado em nosso contexto. Assim como as proposições de hooks (2021a) foram apresentadas em um cenário bem distinto do de uma pandemia, as ressonâncias de suas ideias possibilitam uma compreensão mais interseccional do que se apresenta na educação brasileira atual e, em especial, no ensino superior que busca fazer frente aos desafios históricos e aos recentemente deflagrados.

A “presença” não pode ser perseguida como uma tentativa forçada de retomada do ensino presencial considerado tradicional e historicamente construído. A “presença” não pode ser compreendida meramente como um elemento de estabilização diante das intempéries e dos desafios ainda desconhecidos quando pensamos nos modelos não presenciais com os quais convivemos sobremaneira nos anos de 2020 e 2021. A “presença”, como nos assinala hooks (2021d), deve ser um elemento de transgressão. A “presença”, a genuína presença, é transgressora por se colocar a serviço da mudança, da impermanência, do diálogo, da concretude de um corpo que resiste e de uma voz que não se coloca disposta ao silenciamento. Essa “presença” tão debatida pela autora ainda nos parece distante mesmo quando exercitamos a retomada de algo próximo do que fomos um dia. Talvez o equívoco seja mesmo o de vicejar o retorno a algo que não nos tornou presentes: deixar o diálogo aberto, como conclusão deste ensaio, talvez nos aproxime de modo mais radical do que poderá se corporificar, um dia, como o estado de “presença”.

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Recebido: 06 de Janeiro de 2022; Aceito: 20 de Fevereiro de 2023

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