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Contratexto

versión impresa ISSN 1025-9945versión On-line ISSN 1993-4904

Contratexto  no.35 Lima ene./jun 2021

http://dx.doi.org/10.26439/contratexto2021.n035.4887 

Tendencias

Discursos de preconceito de gênero em publicações da mídia e sua relação com a construção da imagem da ex-presidente do Brasil Dilma Rousseff

Discursos de perjuicio de género en publicaciones de los medios de comunicación y su relación con la construcción de la imagen de la expresidenta del Brasil Dilma Rousseff

Gender prejudice discourse on media publications and its connection with the image construction by the former president of Brazil Dilma Rousseff

Rosiane Alves Palacios * 1  
http://orcid.org/0000-0002-7588-6358

Carolina Freddo Fleck ** 2  
http://orcid.org/0000-0002-1595- 0100

Márcia Vanessah Pacheco Abbondanza *** 3  
http://orcid.org/0000-0003-2812-6038

1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul rosiane.palacios@edu.pucrs.br

2 Universidade Federal do Pampa carolinafleck@unipampa.edu.br

3Universidade Federal do Pampa marciaabbondanza.aluno@unipampa.edu.br

Resumo

Esse estudo traçou argumento interligando os conceitos Teto de Vidro e Legitimidade de Poder de Max Weber, a partir da análise de textos e reportagens eletrônicos sobre a ex-presidente Dilma Rousseff. Objetivou analisar possíveis indicações de preconceito de gênero presentes nos textos, sua relação com a construção da imagem da ex-presidente e a possibilidade de vigência de legitimidade de poder nos seus mandatos. O método foi a investigação narrativa com análise de documentos e de discurso. A associação dos pressupostos teóricos trouxe elementos para a análise das nuances do poder, levando-se em conta o gênero e o entendimento do papel do preconceito de gênero em publicações da mídia que, por noticiar textos com foco em características sexistas, participou da construção da imagem da ex-presidente.

Palavras-Chave: Dilma Rousseff ; poder ; gênero ; mídia ; política.

Resumen

Este estudio relaciona el techo de cristal y la legitimidad del poder de Max Weber a partir del análisis de textos de periódicos sobre la expresidente Dilma Rousseff. Su objetivo fue analizar los posibles indicios de sesgo de género presentes en los textos, su relación con la construcción de la imagen de la expresidente y la posibilidad de legitimidad del poder en sus mandatos. El método elegido fue la investigación narrativa con análisis de documentos y discursos. La asociación de supuestos teóricos aportó elementos al análisis de los matices del poder si se tiene en cuenta el género y la comprensión del papel del sesgo de género en las publicaciones de los medios de comunicación que, al informar sobre textos centrados en características sexistas, participaron en la construcción de la imagen de la expresidente.

Palabras clave: Dilma Rousseff ; poder ; género ; medios de comunicación ; política

Abstract

This study formulated an argument linking glass ceiling to Max Weber’s legitimacy of power based on newspaper reports about former President Dilma Rousseff. It aimed to analyze possible signs of gender bias in such reports, their connection with the former president’s image-building, and the possibility of legitimacy of power in her term of office. The selected method was narrative research with document and speech analysis. The association of theoretical issues provided elements to analyze the nuances of power when considering gender and the role of gender bias in media publications focused on sexism, which influenced the image-building of the former Brazilian president.

Keywords: Dilma Rousseff ; power ; gender ; media ; policy

Introdução

O poder é intrínseco à política e aos cargos de representação pública (Bergue, 2010). Embora envolva vários fatores, os indivíduos que detêm certo grau de poder devem assegurar, a fim de mantê-lo, certo nível de legitimação (Weber, 2012), o que significa ser visto pela sociedade como alguém capaz de representá-la e com aptidão para trabalhar em prol do país, estado ou município. Além disso, um líder legitimado, do ponto de vista sociológico, também irá apresentar atributos que variam conforme localização, modelo econômico, cultura, entre outros aspectos.

Neste contexto, apesar de já exercerem cargos em que podem desempenhar a figura do indivíduo que detém o poder, as mulheres ainda enfrentam dificuldades no processo de legitimação deste, uma vez que o acesso aos cargos/espaços públicos ainda é restrito para elas. Existem empecilhos, muitas vezes sutis, que são suficientes para inibir o curso do desenvolvimento de poder e ascensão de mulheres à cargos/espaços de liderança. Um fenômeno conhecido como Teto de Vidro (Steil, 1997) e que, conforme Kroeber et al. (2019) e Biroli (2016, 2017), as afeta individual e coletivamente, visto que, com menor presença, a capacidade feminina de influenciar e transformar a política se vê diminuída.

Na maioria das democracias da atualidade, a distribuição é desproporcional no poder político (Folke e Rickne, 2016). Mundialmente, as mulheres representam somente 25% dos deputados eleitos (UN Women; Inter-Parliamentary Union, 2020). No ranking de participação das mulheres na política (composto por 193 países), o Brasil figura no 140º lugar (UN Women; Inter-Parliamentary Union, 2020). Mesmo com a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, que estabelece cotas para candidaturas de mulheres em todos os pleitos eleitorais, os números de brasileiras eleitas vêm caindo, principalmente, após o impeachment da ex-presidente Dilma em 2016 (Senado, 2016). Nas eleições de 2018, somente sete senadoras foram eleitas (Senado, 2018) e o atual governo (2020) tem apenas duas ministras entre os 22 ministérios brasileiros, (representando 9,1% dos ministérios chefiados por mulheres).

Os dados demonstram que as mulheres seguem à parte nos postos que podem lhes atribuir algum poder na esfera política. De acordo com um estudo da Procuradoria da Mulher no Senado (2015), esta ausência feminina na política pode ser explicada por alguns elementos como: divisão sexual do trabalho com a tripla jornada; caráter sexista da sociedade e domínio masculino dos partidos políticos. A política parece seguir a cartilha do público para o homem e do privado para a mulher, ou seja, ainda é uma esfera cuja participação não compete ao gênero feminino (Perrot, 1988). Uma ideia que, aparentemente, não é pensamento exclusivo de homens, uma vez que as mulheres também não as apoiam maciçamente para garantir a representatividade eleitoral.

Ao observar essa realidade, permitimo-nos a construção do argumento de que o conceito de Poder e Legitimidade, de Max Weber, e de Teto de Vidro podem estar entrelaçados ao observar que os direitos conquistados pelas mulheres, no que diz respeito à elegibilidade e à possibilidade de provimento de cargos públicos, podem conter rupturas no momento em que estas, em sua maioria, não são eleitas e quando eleitas têm seus mandatos legítimos e amparados do ponto de vista legal, mas falta-lhes legitimidade de poder do ponto de vista sociológico, pois a sociedade ainda não reconhece legitimidade no exercício de poder por uma mulher. Mesmo já na segunda década do século XXI, o cenário no Brasil é de que as mulheres são elegíveis, mas apenas uma pequena parcela delas consegue preencher cargos de representação política. E tem-se a dúvida se elas conseguem de fato exercer plenamente o poder em seus mandatos.

Partindo deste pressuposto, este estudo, que segue uma abordagem qualitativa de pesquisa, é caracterizado como descritivo-exploratório em função de seu objetivo e busca contribuir teórica e empiricamente com estudos de gênero que analisem a relação das mulheres com a política. Desta forma, entende-se que o estudo, que segue o método Narrativo de pesquisa, poderá trazer elementos teóricos de análise que podem ser replicados em outros estudos, bem como, maior compreensão a respeito dos eventos expostos na mídia sobre a ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff, que demonstram a deslegitimação dela como líder e representante máxima do país e também como o país tem como característica da esfera política a manutenção do Teto de Vidro.

O estudo Narrativo é um método adequado para pesquisas nas quais os pesquisadores envolvem-se mais com a narrativa dos temas, podendo os indivíduos e/ou organizações serem relevantes ou não (Creswell, 2014). Neste caso, a ex-presidente Dilma Rousseff e a presidência da República no Brasil (indivíduo e organização) fazem parte do contexto de análise, porque são objetos chave para a compreensão de como a teoria do Teto de Vidro e a teoria de Poder e Dominação de Max Weber se relacionam para explicar a falta de acesso e suporte das mulheres em cargos políticos.

O estudo teve como objetivo identificar discursos de preconceito de gênero publicados pela mídia brasileira sobre a ex-presidente Dilma Rousseff e de que forma estes impactaram para a manutenção de um modelo político que tem as mulheres como indivíduos não aptos para o poder, utilizando a teoria do Teto de Vidro e a teoria de Poder e Dominação de Max Weber como base de reflexão, analisando o que as reportagens trazem sobre mulheres no poder, especificamente no caso de Dilma Rousseff.

As técnicas de coleta de dados foram fundamentalmente documentos, ou melhor, textos relacionados à Dilma Rousseff em sites de jornais e revistas eletrônicas utilizando-se os filtros “Dilma Rousseff”, “mulher” e “gênero”. Os sites de jornais e revistas foram eleitos por popularidade de circulação e acesso, considerando especialmente às mídias virtuais e a época de circulação das notícias. Inicialmente, foram listados: Revista Veja, O Estadão, a Folha de São Paulo, Correio Brasiliense, ClicRBS, Diário do Comércio e Revista Isto É. O site do ClicRBS, Diário do Comércio, e a Revista Isto É foram excluídos da pesquisa por não apresentarem reportagens efetivamente relacionadas à temática pesquisada. Com os filtros Dilma, mulher e gênero, no espaço eletrônico da Veja foram encontrados 1.590 resultados entre os elencados em primeira página de busca; no Correio Braziliense, 315 publicações; no Folha de São Paulo, 310 publicações; e no O Estadão, 668 publicações, totalizando 2.883 reportagens. Considerando o tempo de pesquisa e a possibilidade de análise adequada, optou-se por selecionar quatro reportagens de cada site. As reportagens foram selecionadas por ordem de exibição na página de busca dos jornais, ponderando a questão de importância/relevância que costuma se atribuir neste caso 1 . Feito esse filtro, as reportagens foram revisadas mais uma vez com o intuito de garantir que ficassem apenas reportagens publicadas entre os anos em que Dilma Rousseff esteve à frente da presidência da República. Assim, ao final, ficamos com 17 reportagens para a análise.

Toda a pesquisa foi construída utilizando uma composição entre análise interpretativa e análise de discurso. A escolha por esta mescla se deu porque em algumas reportagens (no caso de colunas de opinião) era mais acessível a análise de discurso, uma vez que eram as falas/opiniões do próprio colunista que estavam expostas; já em outras, eram relatos de situações associadas a ex-presidente e, por isso, caberia mais uma interpretação do que estava apresentado do que propriamente uma análise do discurso. Optou-se por uma análise não categorizada como a análise de conteúdo, porque no estudo em questão não se considerou pertinente a necessidade de categorização, mas sim uma reflexão crítica sobre o que foi exposto e os impactos para a manutenção de um cenário de exclusão das mulheres dos cargos de poder na política.

O estudo divide-se, na sequência, em dois momentos distintos: a parte da reflexão conceitual que contempla a relação estabelecida entra as teorias do Teto de Vidro e da Legitimidade de Poder de Max Weber e, na sequência, a reflexão a partir das reportagens veiculadas na mídia que permitem corroborar os argumentos teóricos apresentados.

Os conceitos de dominação e legitimidade de Max Weber junto ao fenômeno Teto de Vidro

Max Weber (2012) entende a dominação como um tipo singular de poder, concebida quando um propósito pertencente a um dominador ou a agentes dominantes é evidenciado para que intervenha em ações e práticas dos indivíduos dominados. O dominador atinge seu objetivo, a dominação, quando os dominados se apropriam do propósito explicitado e o praticam tal qual um propósito próprio, sem ter dimensão de que este é privativo do dominante. O domínio é operativo sobre os mandados conforme elementos como intuição, inspiração ou persuasão racional e a combinação de tais fatores é determinante para o sucesso dos mandatários (Weber, 2012).

É essencial que ocorra fundamentação de práticas típicas do dominante conforme as concepções da legitimação do poder para que a dominação possa firmar-se (Weber, 2012). O valor do poder e da dominação é posto por meio do agrupamento de diretrizes coesas que são definidas ou pactuadas. O mandatário é legitimado por um conjunto de preceitos e seu poder concebido como genuíno no tempo em que o estiver praticando em conformidade com o roteiro estipulado. Há um respeito muito maior às regras do que à pessoa do mandatário, porém, o poder pode ser respaldado pela autoridade pessoal verificada (Weber, 2012).

Weber delimitou três tipos de dominação. O dominante pode ser carismático, tradicional ou racional-legal, conforme pode ser visualizado na Tabela 1. É por meio destas três categorias que o dominador impõe legitimidade ao dominante. Tais arquétipos dos líderes configuram os tipos fundamentais puros da estrutura de dominação (Weber, 2012). A fusão desses tipos puros origina perfis e contribui para a consolidação da dominação.

Tabela 1 Tipos de poder e suas características de acordo com Max Weber 

Tipos de Poder Características
Carismático Predicados distintos, tidos como extraordinários; se manifesta quando são outorgados atribuições, poderes ou características sobrenaturais a certo sujeito. De uma forma geral, líderes e governantes dos meios políticos dispõem de apurado carisma, que figura como importante artifício de dominação de povos e grupos
Tradicional Crença na primazia dos costumes. A conformidade e a obediência são conferidas ao sujeito que melhor simboliza a tradição e exprime os costumes próprios de uma localidade. As influentes famílias tradicionais; cujo posto se origina da via histórica na conjuntura econômico-financeira e política de determinado local, são espécimes da figura deste tipo de poder. A lealdade dos discípulos do líder tradicional determina o gênero das regras a serem estipuladas
Racional-legal Crença do povo na licitude; no campo do direito; nas normas e nas leis. O sujeito que cumpre tal padrão de dominação o exerce em razão da racionalidade. A fé comunitária na legalidade das normas e atos da administração, tanto as leis desenvolvidas pelos mandatários quanto às normas que sustentam sua condição de liderança são o que dão legitimidade ao poder racional-legal

Fonte: Adaptado de “Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva” de M. Weber, 2012, (4a ed.).

Um dominador não exerce, exclusivamente, um tipo de dominação; pois, ao ocorrer a dominação manifestam-se, mesmo que tênues, características dos demais tipos (Weber, 2012). O poder de mando em autoridade pessoal fundamenta-se na tradição; no que é costumeiro, clássico, habitual e capaz de manter acato perante alguns sujeitos ou, do contrário, está apoiado na fé no sobrenatural; em carisma através de pessoas que sejam capazes de conferir amparos ou benefícios; tidos como profetas paladinos ou heróis (Weber, 2012).

Na perspectiva da gestão, parte de que seja qual for o tipo de administração, é vital que exista algum tipo de dominação, pois para gerir é necessário que o poder esteja nas mãos de algum indivíduo. Referimo-nos à dominação no sentido da compreensão de que o dominante é uma figura de poder onde o dominado o legitima como tal, onde um representante político é agente dominante quando é eleito porque entende-se que é legitimado, ou posteriormente à investidura em cargo público, por ser figura tradicional ou carismática. Nesse sentido, percebe-se uma dificuldade de legitimidade feminina na política, sendo esse espaço marcado por sexismo e constrangimentos estruturais à sua participação, já que se trata de uma área social e culturalmente exercida por homens (Miguel e Biroli, 2010). Com Dilma Rousseff não seria diferente, pois o fato de ser mulher, abala a ordem estabelecida que se baseia na dominação masculina (Lima, 2020).

Ao ser naturalizada, a exclusão das mulheres da esfera pública, especialmente dos cargos políticos eletivos, torna-se um elemento de legitimação da política como “negócio de homens” (Biroli, 2018). Para que se possa refletir sobre qualquer oposição entre as esferas públicas e privadas, o fator “gênero” se torna necessário uma vez que os papéis de gênero na sociedade foram construídos com notória diferença entre atribuições femininas e masculinas. Historicamente, os homens estiveram à frente das atividades que envolviam prestígio, como a função política, enquanto às mulheres restavam os trabalhos servis e de pouca valorização (Veblen, 1983).

Sendo assim, a divisão sexual do trabalho é a base fundamental na qual assentam-se as hierarquias de gênero das sociedades contemporâneas, acionando restrições e desvantagens que produzem uma posição desigual às mulheres (Biroli, 2016). Objetivando elucidar a existência de desigualdades recorrentes entre homens e mulheres no mundo do trabalho, os estudos de Glass Ceiling (Teto de Vidro) começaram a surgir nos Estados Unidos na década de 1980 (Steil, 1997). Tal fenômeno diz respeito às disparidades vivenciadas pelas mulheres ao longo da evolução do processo de ascensão ao mercado de trabalho; as barreiras discriminatórias são baseadas no sexo biológico em vez de considerar-se experiência laboral, currículo ou méritos (Folke e Rickne, 2016). No caso de Dilma Rousseff; mesmo tendo vasta experiência na vida pública, em que desde os 16 anos de idade inseriu-se em movimentos sociais, além de ter ocupado os cargos de Secretária de Estado, bem como Ministra de Estado; como é possível afirmar que ela não era apta ao cargo de presidente por nunca haver concorrido a um cargo eletivo?! (Amaral, 2011).

No geral, a maioria das mulheres encontra-se em cargos que exigem um raso grau de autoridade e proventos (Morrison e Von Glinow, 1990). Esta realidade não é exclusiva de organizações privadas, pois tal cenário não é raro em organizações públicas (Vaz, 2013), mas a resignação feminina em relação aos homens é uma concepção ativa da sociedade e não depende de profissão ou ocupação; desde os subordinados aos mais elevados cargos, geralmente, as mulheres são menos valorizadas (Chies, 2010).

Os entraves que alimentam o teto de vidro ainda dificultarão a prosperidade do gênero feminino, pois longo é o caminho a ser alcançado se comparados aos direitos e espaços conquistados pelos homens (Morrison e Von Glinow, 1990). Um país com uma liderança feminina tampouco significa o fim da discriminação de gênero, pois não é possível correlacionar presença feminina e “voz feminista” (Biroli, 2010). Ademais, o processo de desconstrução ou privação de legitimidade política nas candidaturas femininas ocorre quase sempre sob a lógica sexista presente na sociedade (Lima, 2020), o que claramente pode ter ocorrido com Dilma Rousseff.

Diante do exposto, é possível relacionar Teto de Vidro, considerando a dificuldade da valorização e naturalização das mulheres na vida política, com a carência de requisitos estabelecidos por Weber como imprescindíveis para o exercício do poder e sua legitimação. O próximo tópico intenciona elucidar, brevemente, sobre o quanto diferentes tipos de violência ganhavam legitimidade quanto à tentativa de estigmatizar e desacreditar a imagem pública de Dilma Rousseff.

A mídia e a imagem pública de Dilma Rousseff

Além de noticiar fatos, a mídia apoia a população na formação de opinião, e converteu-se em influente estação de aprendizado, motivando e parametrizando pautas de conteúdos públicos para expectadores entenderem política, mundo e globalização; ela também impacta a imagem que líderes políticos e sociais têm para a sociedade (Guazina, 2007). A mídia é empregada para relatar os episódios que derivam do processo político; para tentar demonstrar a influência institucional e a atuação dos meios de comunicação no meio político (Ibid). No Brasil, após o fenômeno Collor, estudiosos de diversas áreas passaram a assentir a dimensão da influência da comunicação de massa no sistema político.

Lima (2020) analisou como Dilma Rousseff sofreu preconceito de gênero durante suas campanhas políticas, governo e processo de impeachment com base em discursos e imagens atribuídos a ela em redes sociais como Facebook, além de blogs e revistas. De acordo com a autora, já em 2010 no primeiro mandato, Dilma Rousseff teve o machismo como um dos seus grandes desafios. Entretanto, em 2014 os ataques foram intensificados, onde o uso exacerbado das mídias sociais foi utilizado para desqualificar sua imagem pública. Biroli ressalta que “em revistas semanais, a estigmatização de Rousseff como incompetente politicamente se deu no recurso a estereótipos convencionais de gênero, nos quais a mulher é associada ao destempero emocional” (2018, p. 78). É comum encontrar observações que corroborem à anterior, pois, a imagem vinculada a Dilma Rousseff relativa à sua personalidade, de modo geral, foi de “mau-humor, impaciência e inflexibilidade” (Corrêa, 2014).

A produção de humor político contra a autoridade, anônima ou não, é prática recorrente; porém, difere contextualmente em relação a seus alvos, formatos e conteúdo (Berger, 2017). Nesse sentido, “a dimensão generificada do humor político mobilizou estereótipos sexistas e misóginos que não apenas atingiram Dilma Rousseff, mas reforçaram o próprio lugar simbólico das mulheres na política nacional” (Carniel, Ruggi e Ruggi, 2018, p. 523). Tais autores categorizaram os seus achados em despersonalização ou invisibilização; humilhação ou ridicularização; objetificação ou sexualização; e agressão ou violência. O que pode ser visto em relação a Dilma Rousseff foram sátiras, “memes” e todo tipo de constrangimentos associados não somente à sua postura como também à sua idade, aparência física e vestimentas.

O preconceito de gênero direcionado a Dilma Rousseff não ocorreu somente por parte dos veículos midiáticos, como também por parte dos “leitores” (Stocker e Dalmaso, 2016). As autoras também atentam para a falta de responsabilidade do jornalismo sobre reações e desdobramentos gerados por suas notícias publicadas, sobre a importância do monitoramento de comentários de usuários do Facebook, sendo preocupante a expressiva recorrência de comentários violentos e desrespeitosos direcionados não somente à ex-presidente, como também a todas as mulheres, dos quais “denotam a urgência de se discutir e problematizar a desigualdade de gênero em nossa sociedade, principalmente no campo da comunicação” (Stocker e Dalmaso, 2016, p. 688).

Assim, após a exposição do argumento teórico e uma síntese de estudos que tornaram explícitas algumas dificuldades enfrentadas pela ex-presidente Dilma Rousseff, principalmente, durante seus mandatos, apresenta-se o tópico de discussão e análise dos resultados seguindo a metodologia empregada pelo estudo.

Apresentação e discussão dos resultados

A legitimação das mulheres como indivíduos atuantes e capazes de desempenhar plenamente as funções dos altos cargos e manterem-se no poder está longe de ser alcançada, como pode ser visto a partir dos resultados dos estudos apresentados no tópico anterior. Bem como perpetuam a ideia do fenômeno do Teto de Vidro, mantendo as mulheres em cargos que as impossibilitem de ascender tanto em nível hierárquico, como por poder.

Considerando esta perspectiva, pode-se analisar que, em 2011, Dilma Rousseff parecia começar a quebra dessa barreira ao ser eleita a primeira mulher presidente da República no Brasil. Passaria ela a ser sinônimo da ascensão das mulheres, de maior igualdade de gênero nas diferentes esferas do poder, de quebra do fenômeno do Teto de Vidro e da Legitimação do poder feminino? Os resultados que serão apresentados na sequência demonstram que não.

As ofensas e o pensamento machista que buscaram desqualificá-la para o cargo, realmente estiveram presentes na mídia, não apenas no ano que levou ao seu impedimento como presidente, mas desde o primeiro ano de seu primeiro mandato. Como forma de trazer maior coerência para as análises, as reportagens serão apresentadas em dois blocos distintos: um considerando os anos de 2011 a 2015, conforme a Tabela 2, período em que Dilma Rousseff esteve à frente da presidência da República; e outro considerando 2016, conforme a Tabela 3, ano de seu impedimento, no qual ela foi alvo constante de matérias que a questionavam como presidente, como líder, como mulher e que reforçaram ainda mais os estereótipos que levam à deslegitimação das mulheres na política, em cargos de poder e acabam por reforçar o fenômeno do Teto de Vidro.

Tabela 2 Reportagens sobre Dilma Rousseff quando esteve à frente da presidência do Brasil de 2011 a 2015 

Título Veículo Síntese Ano
O ano em que elas governaram o mundo Correio Braziliense Relata acontecimentos que deram destaque às mulheres na política e na economia no cenário mundial e fala das críticas do movimento feminista à atuação de Dilma 2011
Quem manda sou eu A Folha de São Paulo Critica Dilma por nomear elevado número de mulheres para cargos importantes do governo e usar o termo presidenta, discorrendo exemplos em que o termo se torna motivo de zombaria e menosprezo 2014
Em entrevista, Dilma atribui críticas a preconceito de gênero Veja Comenta entrevista concedida por Dilma ao Washington Post denunciando preconceito de gênero à comunidade internacional 2015
Dilma deveria ter lido em março de 2010 o aviso mediúnico de Celso Arnaldo: Homo Sapiens vale para os dois gêneros. Não tente inventar uma ‘Mulier Sapiens’ Veja Aborda o modo de Dilma expressar-se em discursos, citando Celso Arnaldo e seu livro “Dilmês: o idioma da Mulher Sapiens”, no qual satirizou os discursos de Dilma como presidenciável e presidenta. 2015
Ministro Marco Aurélio: "Eu não queria estar na pele da presidente Dilma" Correio Braziliense Entrevista sobre a solidão da presidente Dilma, a operação “Lava-Jato” e os 25 anos de atuação no Supremo Tribunal Federal 2015

Fonte: Elaboração própria

No período que compreende os anos de 2011 a 2015, foram cinco reportagens que apresentaram destaque no material selecionado neste estudo. É possível perceber, a partir das informações sintetizadas na Tabela 2, que já existia um discurso crítico na mídia, com relação à, então, presidente Dilma Rousseff. Os textos questionam seu modo de expressão; a forma como precisa, a todo momento, se impor como autoridade e seu posicionamento como mulher, inclusive com críticas do próprio movimento feminista que, em uma análise simples de contexto, deveria apoiá-la porque certamente uma mulher eleita presidente da República seria um dos símbolos máximos para um movimento que luta por igualdade de direitos e oportunidades para mulheres e homens.

A primeira publicação analisada, datada de 2011, é reportagem de capa do Correio Braziliense intitulada “O ano em que elas governaram o mundo”. Uma reportagem que cita feitos inéditos e positivos para avanços femininos em representatividade, como a inclusão de número significativo de mulheres em ministérios e o fato de Dilma ter sido a primeira mulher a discursar na ONU. Mas, ao mesmo tempo que enaltece, a reportagem atenta para críticas que Dilma Rousseff recebeu dos movimentos feministas tendo feito pouco pelas mulheres em seu primeiro ano de mandato, parecendo que se esperava mais sobre gênero, da primeira presidente do Brasil. Considerando o argumento de que a deslegitimação mantém o fenômeno do Teto de Vidro, infelizmente essa reportagem demonstra que as críticas do movimento feminista, que deveria ser um movimento de apoio à primeira mulher eleita presidente, acabavam por impactar justamente como um dos primeiros exemplos de deslegitimação desta mulher no poder.

As outras reportagens remetem aos anos de 2014 e 2015, demonstrando que o final do primeiro mandato e início do segundo foram os momentos em que os discursos se intensificaram de forma contrária à Dilma Rousseff e ao espaço que estava ocupando como presidente da República. São reportagens e textos de colunistas (opinião) 2 que relatam aspectos sobre a personalidade e forma de expressão de Dilma Rousseff. Ou ainda, analisam o isolamento e falta de legitimidade dela (como a entrevista com o Ministro Marco Aurélio), demonstrando que os espaços de poder estavam limitados, justamente, para aquela que seria o exemplo máximo de poder no país, a presidente da República. Algumas frases, como o trecho extraído da reportagem da Veja escrita por Gabriel Castro, em 2015 (destaque na sequência), demonstram que a própria ex-presidente sentia o reflexo das análises sobre seu comportamento como forma de diminuí-la no cargo.

Você já ouviu alguém dizer que um presidente homem põe o dedo em tudo? Eu nunca ouvi isso. Eu acho que existe um pouco de preconceito de sexo, ou preconceito de gênero. Eu sou descrita como uma mulher dura e forte que mete o nariz em tudo em que não deveria, eu sou (descrita como) rodeada de homens meigos

A fala reproduzida reforça um estereótipo que vem ao encontro do que a teoria do fenômeno do Teto de Vidro demonstra, que as mulheres vivenciam cotidianamente barreiras para ascender ao poder e que as que eventualmente ascendem, são rotuladas por estereótipos associados a comportamento masculinos e femininos. Neste caso, não apenas Dilma Rousseff é apontada como alguém de comportamentos masculinos, como os homens que estão à sua volta teriam comportamentos femininos e isso poderia ser uma justificativa para ela estar no cargo. Os homens à sua volta não seriam capazes.

Ou seja, Dilma Rousseff foi eleita, mas as dificuldades no desempenho das atribuições presidenciais são claramente expostas. E, em meio a um período conturbado como aquele que o Brasil vivia à época, um cenário caótico com a operação Lava Jato expondo constantemente novos casos de corrupção e desvelando uma rede corrupta que abarcou boa parte, para não dizer a maior parte, do grupo político então presente no congresso e no senado federal. Um presidente homem também sofre críticas, a crítica acompanha uma pessoa que assume um cargo de poder. Mas o que tem sido identificado, não apenas neste estudo, como em outros já mencionados aqui, não do mesmo calibre. Apesar dos avanços, persistem diversas barreiras para a plena ascensão das mulheres (Steil, 1997). As declarações da mídia contribuem para a construção da imagem pública da governante (Weber, 2009), que é importante para a legitimação do poder (Weber, 2012).

Após ser eleita para seu segundo mandato, Dilma Rousseff passou a receber críticas mais duras e a perceber o preconceito de gênero de maneira mais intensa. Mas, o ano de 2016 foi o período em que mais reportagens sobre ela foram publicadas e reforçaram a reflexão teórica apresentada. A barreira do Teto de Vidro foi imposta a ela pela deslegitimação para o cargo. Dilma Rousseff foi eleita presidente do Brasil duas vezes, mas não foi considerada apta o suficiente para permanecer no cargo e exercer o poder a este atribuído. Para realizar uma análise mais detalhada das informações referentes à 2016, a Tabela 3 exibe as publicações que se relacionam aos períodos de antes, durante e pós impeachment, sendo colocadas por ordem cronológica de publicação. Nas análises referentes a 2016, optou-se por apresentar com mais detalhe os textos das reportagens, de forma a exemplificar mais os estereótipos de deslegitimação reproduzidos.

Tabela 3 Reportagens sobre Dilma Rousseff no ano de seu impeachment  

Título Veículo Síntese Ano
Valentina de botas: negligente com a língua e o país, Dilma Rousseff inaugurou o populismo de gênero Veja Critica a forma como Dilma referia-se ao cargo que ocupara (presidenta), e como se intitula para criar figura populista, ironizando colocação mais antiga em discurso onde ela afirmou que teria nascido e crescido em todos os estados brasileiros 2016
Em novo uso ilegal do Palácio do Planalto, Dilma tenta privatizar as mulheres Veja Critica o “Encontro com Mulheres em Defesa da Democracia” onde Dilma recebeu mulheres para debater democracia 2016
Dilma Rousseff diz, em entrevista, que país tem "veio golpista” adormecido Correio Braziliense Comenta entrevista concedida por Dilma sobre machismo na política, histórico de pedidos de impeachment em todos os mandatos de presidentes brasileiros, apoio à ditatura no processo de impeachment 2016
Deputados aprovam abertura do processo de impeachment de Dilma A Folha de São Paulo Noticia a aprovação do processo de impeachment de Dilma 2016
A importância dos símbolos O Estadão Escreve sobre os desafios do presidente interino Michel Temer, ausência de mulheres em ministérios e coloca que, com Dilma, as mulheres já tiveram sua chance na política e a desperdiçaram 2016
Análise: Por que ser mulher na política é (e não é) um fator importante O Estadão Sobre a aptidão de homens e mulheres para a política, baixa representação feminina em cargos como ministérios e ativismo de grupos feministas e LGBTQI+ 2016
Pensam que nos venceram mas estão enganados O Estadão Remete às esperanças de Dilma de não ser cassada, atribui a possível cassação também a machismo e misoginia 2016
Dilma, o feminismo e o machismo O Estadão Questiona as alegações de Dilma sobre sofrer impeachment por ser mulher e ser de esquerda. Critica uma possível vitimização da mulher, muitas vezes feita por feministas. 2016
Desvio de autoria O Estadão Fala das vitórias de Dilma e do pedido de condenação por impeachment atribuindo suas vitórias a apadrinhamentos políticos de homens e a um marqueteiro eleitoral 2016
Ruim pra elas: 2016 nunca será esquecido por líderes como Hilary e Dilma Correio Braziliense Aponta resultados considerados negativos para mulheres no cenário político internacional, em que vinham se revelando líderes mundiais e sofreram derrotas políticas, demonstrando que o preconceito de gênero pode estar aparente ou velado 2016
Gênero, Número e Grau A Folha de São Paulo Analisa dificuldades históricas enfrentadas pelas mulheres, enfatizando atuais desafios da política brasileira, aborda estereótipos femininos e situações enfrentadas por Dilma desde o primeiro mandato 2016
Pode uma mulher governar? A Folha de São Paulo Comenta os desafios das três principais líderes mulheres da América Latina: Dilma Rousseff, Cristina Kirchner e Michele Bachelet 2016

Fonte: Elaboração própria

Na publicação da Veja, “Valentina de botas: Negligente com a língua e o país, Dilma Rousseff inaugurou o populismo de gênero” de 2016, novamente, a opção de Dilma por ser referida como presidenta é criticada pela mídia. O colunista volta a atribuir juízo pessoal de valor tratando com deboche a metáfora da presidente, questionando sua moral e inteligência.

A essa farsante, não basta ser presidente, isso qualquer uma pode ser: ela é 'presidenta. ... Autoritária como toda figura erigida na mentira, manipuladora como todo populista e de dentro do seu raquitismo intelectual e moral, na confluência de suas 26 reencarnações simultâneas geridas pelo único neurônio, jamais renunciará à construção mistificadora para compreender o Brasil e tornar-se tudo o que não é: apenas uma brasileira decente e, então, uma presidente decente.

A palavra farsante denota total ausência de legitimidade (Weber, 2012). Uma representante política eleita democraticamente, mesmo não tendo a simpatia de todos, não deve ser injuriada e julgada farsante. O autor pode não ver legitimidade em Dilma por não reconhecer nela características próprias da dominação (Weber, 2012; Lima, 2020), e inúmeras podem ser as motivações para tal, até mesmo a questão de gênero, por ser a primeira mulher a ocupar tal cargo, mas não caberia a um veículo de comunicação reproduzir tais palavras se não fosse com o intuito de demonstrar e reforçar um discurso de falta de aptidão da então presidente para permanecer no cargo.

Novamente na Veja: “Em novo uso do Palácio do Planalto, Dilma tenta privatizar as mulheres”. O autor do referido texto, Reinado Azevedo, diz que Dilma tenta “privatizar” as mulheres, termo que pode ser interpretado no sentido de vender ou tornar particular.

Se aquele era o encontro das mulheres “em defesa da democracia”, deve-se supor que as que defendem o impeachment ou são contrárias à democracia ou mulheres não são. ... [Márcia Tiburi] disse que as críticas sofridas por Dilma são “do nível do estupro político”. Esta senhora só apelou a tal metáfora porque Dilma é mulher. Assim sendo, seus adversários, se homens, são potenciais estupradores; se mulheres, condescendentes com o estupro.

O autor do texto tenta ainda desprestigiar outra mulher, como profissional, ao ironizar declarações justamente contrárias ao que a mídia vinha expondo, à época, sobre a ex-presidente. O autor parece reprovar a mescla de questões políticas com questões de gênero, porém, acaba as associando, disparando que Dilma aceitou ser serva de um “macho alfa”, considerando isso degradante. “Dilma aceitou ser a serva do macho alfa, naquele que é, sim, o mais triste papel que uma mulher, diante de suas semelhantes, poderia desempenhar no poder”.

Para Morrison e Von Glinow (1990) ficam evidentes entraves que compõem o Teto de Vidro que dificultariam profissionalmente as mulheres por muito tempo, pois muito é degradante que mulheres precisem de homens para exercer poder, mas não podem fazê-lo sem a validação de um.

Já no período de instauração e da primeira etapa do processo de impeachment, votado na Câmara de Deputados, a Coluna Política do Correio Brasiliense publicou: “Dilma Rousseff diz, em entrevista, que país tem ‘veio golpista’ adormecido”:

Ela fez a colocação ao dizer ter certeza de que não houve um único presidente no país que não tenha sido alvo de pedidos de impeachment entregues à Câmara dos Deputados desde a redemocratização. ... o impeachment “se tornou um instrumento sistematicamente usado contra presidentes eleitos”, desde o governo Getúlio Vargas. Dilma não mencionou que em 1992 o PT, à época na oposição, apoiou o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello. Posteriormente, também pediu o impedimento do tucano Fernando Henrique Cardoso. ... A presidente foi questionada sobre o que achou do voto do deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ), que dedicou ao general Carlos Alberto Brilhante Ustra a posição favorável ao impeachment. “Eu acho lamentável. Eu fui presa nos 1970. De fato, conheci bem esse senhor ao qual ele se refere, foi um dos maiores torturadores do Brasil. Recai sobre ele não só acusação de tortura, mas de morte. É só ler os papéis da Comissão da Verdade e outros relatos. Lastimo que esse momento tenha dado abertura à intolerância ao ódio ou outro tipo de fala. A aventura golpista levou a uma situação que não vivíamos no Brasil, que é a de raiva, ódio, perseguição”, respondeu, com a voz embargada. ... Questionada, Dilma disse haver um componente de machismo no processo que corre contra ela. “Tem misturado nisso tudo um grau de grande preconceito com uma mulher. Tem atitudes comigo que não teriam contra um homem”, avaliou.

Dilma Rousseff demonstra que a instauração do impeachment decorre de um sentimento e heranças políticas e culturais dos políticos brasileiros em tentativas de praticar golpes de estado para conquistar a presidência. Indica que o Brasil culturalmente ainda não aprendeu a lidar com a democracia e com a existência da oposição. Fala dos sentimentos de ódio, raiva e perseguição, envoltos sob aspectos aos quais alega ser vítima colocando que as injustiças sofridas também decorrem de herança cultural machista e afirma que seria diferente caso fosse homem, o que corrobora com os estudos de Teto de Vidro. A ex-presidente do Brasil levanta a questão do preconceito de gênero que alegou sofrer, do qual poucos no Brasil negam, mas que muitos não consideram de grande impacto para cassação presidencial. Em O Estadão, a Coluna Opinião de 2016, fala sobre desafios do presidente interino Michel Temer, e ausência de mulheres em ministérios:

Pode-se argumentar, sem que isso implique machismo, que a questão de gênero não interfere necessariamente no nível de qualidade de uma equipe. Pode-se argumentar, aí, sim, com despudorado machismo e tendo em vista o fiasco de Dilma Rousseff, que as mulheres já tiveram sua chance e a desperdiçaram.

Fica evidente a opinião de que mulheres não devem mais pleitear o cargo político ocupado por Dilma Rousseff. Pode ser que para a Coluna, as mulheres tenham ainda que encarregarem-se dos espaços privados, deixando a vida pública aos homens, o que conforme Perrot (1988) vêm historicamente acontecendo e transparece que mulheres carecem de permissão para inserirem-se na política.

Reportagem do Estadão parece complementar tal argumento: “Análise - Porque ser ‘mulher’ na política é (e não é) um fator importante”, destacando no texto que a questão de gênero não deveria ser determinante para escolher políticos. Porém, após expor panorama de participação feminina na política, bem como avanços e contribuições de feministas para a agenda, a publicação propõe que feministas e movimentos LGBTQI+, devido à forma como conduzem os debates, não colaboram para avanços, pois desafiam o atual sistema e se contradizem em seus objetivos, centrando o debate apenas em gênero. A reportagem apenas reforça que as questões de deslegitimação estão fortemente enraizadas na forma como a sociedade brasileira perpetua estereótipos.

Ser mulher não é tudo que uma pessoa é. Diz muito pouco da trajetória individual e não deveria ser elemento significativo para a escolha (ou não) de um representante. ... Não se pode comparar duas mulheres ou mesmo dois homens. ... Há uma evidente deformação na democracia representativa. ... menos mulheres deputadas e senadoras do que o Oriente Médio, ficando com a vergonhosa posição 116 no ranking com 190 países.

Em sociedades igualitárias o gênero não influencia qualquer tipo de diferenciação, ideologia ou meritocracia, porém, estas são minorias e o gênero ainda é determinante na maioria dos grupos sociais. Por vezes, considera-se que grupos progressistas possam errar o tom se segmentando, distorcendo, radicalizando ou incluindo outros elementos na agenda que não são pertinentes ao debate.

Em notícia de pronunciamento de Dilma em 2016, após o Senado aprovar o impeachment, Fausto Macedo traz relatos da ex-presidente para O Estadão: “‘Pensam que nos venceram, mas estão enganados’, afirma Dilma”. A nomeação da matéria parece remeter às esperanças de Dilma, mas ao longo do texto atribui-se a cassação também a machismo e misoginia, enfatizando o fato da primeira presidente ser deposta sem crime de responsabilidade.

O projeto nacional progressista, inclusivo e democrático que represento está sendo interrompido por uma poderosa força conservadora e reacionária, com o apoio de uma imprensa facciosa e venal ... Acabam de derrubar a primeira mulher presidenta do Brasil, sem que haja qualquer justificativa constitucional para este impeachment ... O golpe é contra o povo e contra a Nação. O golpe é misógino. O golpe é homofóbico. O golpe é racista. É a imposição da cultura da intolerância, do preconceito, da violência ... Esta história não acaba assim ... Às mulheres brasileiras, que me cobriram de flores e de carinho, peço que acreditem que vocês podem. As futuras gerações de brasileiras saberão que, na primeira vez que uma mulher assumiu a Presidência do Brasil, a machismo e a misoginia mostraram suas feias faces.”

Supondo que as declarações de Dilma sobre o peso da questão de gênero em seus mandatos e no processo de impeachment sejam consideradas, os dogmas da dominação e da superioridade poderiam estimular pensamentos negativos sobre as aptidões de mulheres em relação a homens e se converterem em caminhos falhos (Chies, 2010). Equivocada, a questão de gênero é pouco relacionada à estrutura da sociedade, restringindo-se aos empecilhos corporativos (Schipani et al., 2009), onde Dilma somente teria sido cassada por crime de responsabilidade, interesses políticos, oposição e investigações de corrupção sem considerar gênero; porém, mesmo tendo o Brasil elegido uma mulher e tendo legislação de cotas eleitorais de gênero, os números da participação feminina na política são pouco expressivos e não se sabe se as eleitas conseguem, de fato, exercer o poder nos mandatos.

As reportagens analisadas a seguir foram todas publicadas logo após o impedimento de Dilma Rousseff e focam a análise nas razões pelas quais o preconceito de gênero teve ou não reflexo em todo o processo. No Estadão, Marco Aurélio Nogueira analisa e opina sobre: “Dilma, o feminismo e o machismo”.

Muitos acreditaram que Dilma estaria pagando alto preço por ser de esquerda e por ser mulher, uma vítima da misoginia que impera na política nacional. E todos os que a criticaram, no caso daquela frase, estariam perfilados entre seus carrascos. Machistas, portanto. ... Dizer que o impeachment está associado ao machismo é dessas boutades que não honram nenhuma causa. Impede que se veja a realidade, a escamoteia e distorce. Converte a mulher num subcidadão, um ser passivo sempre submetido à exploração e à dominação masculina. Apresenta a política como uma luta entre sexos e gêneros, não entre classes e indivíduos. Seu mote principal - estou a ser afastada por um bando de homens reacionários por ser a primeira presidenta eleita pelo voto popular no Brasil - mostra bem como falta uma explicação política razoável para o que se passa no Brasil. Há que se fazer algum desconto aqui, contextualizar a fala, relativizar o tom passional. Afinal, há machismo em tudo o que respira nessa terra Brasilis, portanto, também no impeachment ... Como Dilma não é uma pessoa qualquer, não deveria tropeçar demais. Afinal, o que se espera dela é que defenda seu mandato, e o faça com competência, pensando no futuro, nos ajudando a prepará-lo.

Embora reconheça que em tudo, no Brasil, existe um pouco de machismo, Nogueira parece ver exagero nas alegações de Dilma sobre impeachment e machismo. Considera importante diminuir o peso do sexismo, criticando uma possível vitimização da mulher, muitas vezes feita por feministas. Contesta também a ex-Presidente por não explicar melhor seu afastamento para além das questões de preconceito de gênero, indicando que Dilma Rousseff excluiu de sua reflexão argumentos outros que a levaram à destituição do cargo.

Dora Kramer para O Estadão escreveu a reportagem “Desvio de autoria”. A repórter parece propor que não foi Dilma quem venceu as eleições que concorreu; protagonizou as vitórias, porém, as atribui a homens.

Um dos argumentos de defesa apresentado por Dilma Rousseff aponta o preconceito de gênero para o afastamento dela. “Querem condenar injustamente uma mulher que ousou ganhar duas eleições consecutivas”. Feito protagonizado, mas não construído por ela. Os engenheiros das obras foram dois homens. A primeira erguida por Luiz Inácio da Silva. A segunda com base nas ilusões marqueteiras elaboradas por João Santana.

Apesar do legado político de seu antecessor, e de bom marketing eleitoral, não seria Dilma, pessoa com considerável formação acadêmica e experiência em cargos da gestão pública, alguém capaz de vencer uma eleição por si mesma? Quais seriam as motivações para tal afirmação? Provavelmente, algumas das políticas eleitas façam sucessão a homens, pois eles são a maioria como, e sucedam pais, cônjuges ou personalidades partidárias; tenham apadrinhamento, mas pode ser que demandem permissão de homens para pleitear cargos políticos, pois historicamente a política é espaço masculino e as relações de poder são prevalecentes entre os gêneros (Perrot, 1988). O senso comum trata Dilma como figura coadjuvante de homens, trazendo elementos que mostram a relação das teorias do teto de vidro e da legitimação.

“Ruim pra elas: 2016 nunca será esquecido por líderes como Hilary e Dilma”, reportagem do Correio Brasiliense que faz uma análise sobre o espaço das mulheres na política em 2016 e as repercussões dos acontecimentos, demonstrando que, mundialmente, foi um ano em que as mulheres perderam espaço, voz e força política.

Em 31 de agosto passado, com a voz embargada, Dilma Rousseff declarou: “Acabam de derrubar a primeira mulher presidenta do Brasil, sem que haja qualquer justificativa constitucional para este impeachment”. Ela denunciou um golpe contra o direito das mulheres. No primeiro ano após não eleger um sucessor, a argentina Cristina Kirchner se viu às voltas com vários problemas na Justiça, os quais minaram seu capital político. Nas eleições regionais de 23 de outubro, a líder de centro-esquerda chilena Michelle Bachelet viu os rivais da direita vencerem na maior parte dos municípios. ... Definitivamente, 2016 não foi o ano das mulheres na política internacional. Para a britânica Rainbow Murray, especialista em políticas de gênero da Queen Mary University of London, apesar de o gênero não ter sido o único fator dos contratempos, ele acabou por não ajudar as líderes. “Os problemas que elas enfrentaram são, em parte, reflexos do fato de que não existem mais mulheres líderes no mundo. No turbulento clima político global, os governantes de ambos os sexos enfrentaram batalhas. As mulheres são, frequentemente, avaliadas com menor valor e mais negativamente, independentemente de sua performance atual, o que as torna vulneráveis politicamente”, admitiu ao Correio.

Considerando a onda conservadora que se instaurou no mundo político de 2016 para cá, não seria a questão da deslegitimação da mulher um fator intrinsicamente ligado à, justamente, retomada do poder em muitos países de grupos fortemente conservadores e com perfil voltado para a manutenção da baixa participação feminina na política? Fica uma reflexão para outros estudos que possam aprofundar as questões do conservadorismo e machismo, associando ao fenômeno do teto de vidro e a deslegitimação do poder das mulheres. As reportagens a seguir trazem elementos que podem contribuir para este futuro debate.

Ambas do Folha de São Paulo, ainda no ano de 2016. Primeiro, Angela Alonso escreveu “Gênero, número e grau”. O texto mostra visão desanimadora sobre a realidade feminina, lutas e expectativas de novas conquistas, esmiuçando a questão das violências contra as mulheres no Brasil e no mundo, e revelando o quão forte são preconceito e violência de gênero, independente da classe econômica. Com mulheres tendo rebaixamento intelectual e emocional por parte da sociedade; um percentual de 90% dos parlamentares brasileiros sendo homens (com remuneração maior), fica difícil que mulheres possam chegar à presidência. Alonso diz que Dilma atreveu-se a colocar-se na posição de um homem e relembra o “tchau querida” (repetido nas manifestações pró Impeachment) propondo que o bordão foi proposital, pois o país aparenta ficar mais confortável sob ministério masculino.

É assim desde Adão e Eva, Bentinho e Capitu. ... A dominação patriarcal é traço da cristandade em geral e de nossa sociedade em particular. O fenômeno causa consternação episódica, quando descamba violência física extrema, vide o espancamento que converteu Maria da Penha - a homenageada no nome da lei - em paraplégica, ... Casos assim chocam. Mas logo a mídia e a opinião pública se enfastiam. Sobram as feministas, apenas toleradas e tidas por chatas recalcadas. No cotidiano sem graça, longe das câmeras, volta a toada, que pouco mudou desde os tempos de Machado de Assis. ... Supremacia física, moral, profissional, financeira dos homens sobre as mulheres. ... Fugir do roteiro é perigoso ... O fenômeno cliva a vida pública. Em outdoors, revistas, propagandas de televisão, o jovem é o predador, a moça o objeto de sedução e domínio, duas coisas confundidas. Já as mulheres mais velhas ou com filhos aparecem como chiliquentas. ... É assim na economia como na política. O congresso está lotado de machos: perfazem 90% dos parlamentares. Assim fica difícil ter uma presidente. Não é atoa o “tchau querida”. O país parece mais confortável sob o ministério masculino - de provectos, brancos, em maioria, suspeitos de corrupção. A ausência de mulheres é a cereja do bolo de um governo anti-moderno. ... Mas como todos os assuntos, este é complexo. Parte das mulheres contribui para a reprodução do esquema que as subjuga. É o caso de mocinhas como a primeira-dama temporária, ex-miss e do lar, que se casam com senhores endinheirados e poderosos. Desde a primeira posse de Dilma, as duas foram comparadas, uma Barbie, outra cafona; uma flor, outra trator. Eis aí os estereótipos se repondo. Ou executiva sexy, ou a carreira ou os filhos, ou anjo ou puta, ou do lar ou a rua. Escolhas que nunca se colocam para os homens. ... Temer segue na Idade Média. Neste tempo residem muitos de seus apoiadores, crentes na hierarquia de gênero como mandamento divino. Vociferam em favor da moralidade pública desde que ela reproduza a que perpetram na vida privada. Contra a dominação masculina não baterão panelas. O utensílio serviu contra uma mulher. Decerto pensam que as outras todas devem se restringir a usá-las na cozinha.

No texto “Pode uma mulher governar?” Percebe-se uma crítica, trazendo Marcela Temer como exemplo, ressaltando as diferenças de perfis, entre as mulheres consideradas líderes e Marcela Temer, e o que representam; fazendo paralelo entre o que alguns idealizam como o modelo da mulher do presente e do futuro e que para outro grupo representa a mulher do passado. Refere a ataques sofridos por Dilma desde o início do governo; apelidos pejorativos e machistas dados a ela por outros políticos e sátiras publicadas na mídia, justificando que, em sua opinião, tais tratamentos só aconteceram devido ao seu gênero. Passa ideia de disputa de poder entre gêneros, em que o masculino pode perder lugar para o feminino. Se houve momento mais propício para a ascensão feminina na política, este momento pode ter sido sutilmente suprimido por uma onda conservadora, o que apoia o Teto de vidro e as desigualdades entre gêneros no mundo do trabalho, sendo sutis, mas recorrentes (Steil, 1997).

Dilma não é a única mulher no continente a ser posta diante de crises políticas entrelaçadas por discriminação de gênero, misoginia, e preconceito contra o exercício de poder feminino. ... Dilma, Cristina Kirchner e Michele Bachelet. Três mulheres que chegaram ao poder num momento em que parecia haver alguma chance de superação das arraigadas hierarquias entre homens e mulheres na América Latina. Exatamente por isso estão sob ataque. Trata-se de pensar que as forças conservadoras crescem e se articulam - nacional e internacionalmente - ao mesmo tempo em que percebem o avanço de forças progressistas, como um jogo de forças ativas e reativas em movimento permanente. ... #belarecatadaedolar expressou, de certa forma, esse jogo de forças ativas e reativas. Em contraposição à presidência da República exercida por uma mulher, uma revista semanal veiculou perfil da mulher do presidente interino Michel Temer, cujos atributos eram os mesmos que nos fariam voltar alguns séculos ao passado. ... Dilma esteve sob ataque desde o início do seu primeiro mandato. Sofreu críticas por não se adequar ao estereótipo do feminino e deputados acharam cabível chamar a chefe de estado por denominações grosseiras como “jararaca”. De certa forma, é como se sua figura austera tivesse encarnado a abjeção da sociedade brasileira em relação a uma mulher no poder. Insistentemente, ela buscou responder “sim, pode uma mulher governar”, e a cada sim produziu mais e mais reações contrárias ao seu lugar de poder. Talvez ainda estivéssemos num jogo de forças menos desigual, num retrocesso menos perturbador do que esse com o qual nos ameaçam os homens brancos que tomaram o poder.

A mídia parece noticiar os acontecimentos ligados à preconceito de gênero, mas de forma moderada, em que o ativismo caberia ao movimento feminista, cuja sociedade apenas tolera. Também há a questão de que parte das mulheres contribuiu para a reprodução do esquema que as subjuga. Dilma recebeu inúmeros adjetivos desqualificadores relacionados ao gênero, apresentando um conjunto de fatores que desfavoreceriam a legitimidade de dominação. A dominação é concebida quando um propósito do agente dominador é provado para que interfira nas ações dos sujeitos dominados; o dominador alcança seu objetivo, a dominação, quando os dominados se adaptam a intenção apontada e a fazem tal qual um fim próprio, sem que tenham a grandeza de que este propósito é o particular do dominante (Weber, 2012). O domínio se mostra operativo sobre os mandados conforme fatores como a intuição, a inspiração ou a persuasão racional, também pela associação de tais fatores determinantes para que ocorra a resposta esperada pelos mandatários. Se Dilma não tiver apresentado inspiração, identificação e persuasão racional, a legitimação do poder dela pode não ter ocorrido. A seguir, passa-se a abordar as considerações finais deste estudo.

Considerações finais

Ao final, cabe salientar que, no livre exercício da expressão, as publicações carregam juízos de valor sexistas e podem influenciar as concepções que o povo forma acerca de um/a líder. Teto de Vidro e Deslegitimação se encontram, demonstrando que os elementos apontados na reflexão entre as duas teorias permitem uma análise deste caso, e, possivelmente, de outros envolvendo mulheres, política e poder.

Entre outros fatores, a imagem pública de Dilma Rousseff parece ter sido construída, em grande parte, pelas declarações da mídia a seu respeito. Adjetivos como “durona” foram empregados para descrever sua personalidade, o que, por vezes, foi visto como positivo e, por vezes, negativo (geralmente quando levado em conta seu gênero).

As críticas mais duras são feitas por homens, porém também há mulheres que falam sobre a falta de protagonismo de Dilma Rousseff em relação ao ex-presidente Lula e atribuem sua vitória nas eleições ao apadrinhamento, o que de fato pode ter ocorrido, e remete ao pensamento de que as mulheres necessitariam de permissão ou ajuda masculina na política.

Existe a suposição de que outras líderes mulheres também só lograram êxito devido ao suporte de figuras masculinas. Preconceito de gênero e desigualdade vividos por mulheres governantes fica evidente. A questão de gênero em pauta, geralmente, também acaba a atenuando, pois se acredita que em uma sociedade ideal, igual em direitos e deveres, o indivíduo, seja homem ou mulher, seria o centro da questão e não mais este ou aquele gênero. O preconceito de gênero ainda permeia a sociedade e seus espaços. Colunistas e jornalistas mulheres parecem ser mais adeptas à máxima de que o debate sobre poder e gênero ainda não está exaurido. O emprego do termo Presidenta parece provocar descontentamento entre os colunistas. Embora possa ser considerado ortograficamente equivocado, tal termo pode ter sido escolhido por Dilma Rousseff como forma de afirmação da figura feminina no poder.  

Conclui-se que o conceito de Poder e Legitimidade de Max Weber e a teoria do Teto de Vidro de fato se associam e se complementam; onde a teoria do Teto de vidro traz mais um elemento passível de observação nas nuances do poder: o gênero. A teoria da Legitimidade não versa sobre a influência do gênero, porém, a teoria do Teto de Vidro cita os entraves que passam quase imperceptíveis e como muitas colocações ao longo das publicações propuseram, são erroneamente julgados como já superados. Cabe aqui enfatizar esta questão, pois se o preconceito de gênero já tivesse sido superado há muito, as alegações desvinculadas de ideologias políticas não se deteriam a comparar Dilma Rousseff com mulheres mais jovens por beleza ou vestimentas; ou mesmo sua postura firme usando palavras como ”macho” e “durona” por exemplo; a terminologia Presidenta provavelmente usada por Dilma Rousseff para marcar a presença feminina, como já dito, não causaria tanto incômodo nos parlamentares, e entre outros fatores.  

Mesmo a instauração do Impeachment foi vista por Dilma Rousseff e por parte da sociedade como motivada, entre outros fatores, pela questão de gênero. Logo, se presume que os direitos conquistados pelas mulheres em elegibilidade e possibilidade de provimento de cargos públicos podem sim conter rupturas. Os mandatos de Dilma Rousseff foram legítimos e amparados legalmente, mas parece que lhe faltou legitimidade de poder do ponto de vista sociológico. A política aparenta ainda não reconhecer em plenitude a legitimidade no exercício do poder por parte de uma mulher, mesmo que de forma encoberta essa situação pode ter sido agravada para uma mulher cujo perfil destoa do estereótipo feminino tradicional. A associação da teoria trouxe elementos para o entendimento do papel do preconceito de gênero em publicações da mídia que por noticiar textos com foco em características de gênero e de preconceito participou da construção da imagem pública da ex-presidente. 

Nas limitações do estudo, não foram analisadas charges e publicações de redes sociais e blogs onde o juízo de valor de jornalistas poderia ser mais amplamente analisado. Devido ao tempo para a realização da pesquisa e à expressiva quantidade de material a ser analisado (o que poderia ser proposto para um estudo futuro), não foram considerados veículos de notícias estrangeiros que também podem ter contribuído para a imagem de Dilma bem como questões relativas as fake news. Em estudos futuros seria interessante analisar o perfil de Dilma Rousseff: se carismático, tradicional ou racional-legal; como ocorrem os mandatos de parlamentares mulheres e como estas veem a participação feminina na política.

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1 Na apresentação das reportagens serão apresentados, em detalhes, os números de reportagens encontradas por veículo de comunicação.

2 Entende-se neste estudo que, por ter respaldo da equipe editorial do veículo de comunicação, os textos de opinião também podem e devem ser analisados como material que vai impactar na formação da imagem pública de Dilma Rousseff, uma vez que estes textos também recebem atenção do público leitor e podem influenciar a formação de sua opinião a respeito de algo ou alguém.

APÊNDICES

http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/dilma-deveria-ter-lido-em-marco-de-2010-o-aviso-mediunico-de-celso-arnaldo-homo-sapiens-vale-para-os-dois-generos-nao-tente-inventar-uma-8216-mulier-sapiens-8217/

http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/dilma-acha-o-homem-brasileiro-muito-mulherzinha-interpreto-sua-misandria/

http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/valentina-de-botas-negligente-com-a-lingua-e-o-pais-dilma-rousseff-inaugurou-o-populismo-de-genero/

http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/em-novo-uso-ilegal-do-palacio-do-planalto-dilma-tenta-privatizar-as-mulheres/

http://veja.abril.com.br/politica/em-entrevista-dilma-atribui-criticas-a-preconceito-de-genero/

http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-importancia-dos-simbolos,10000051696

http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/pensam-que-nos-venceram-mas-estao-enganados-afirma-dilma/

http://politica.estadao.com.br/blogs/dora-kramer/desvio-de-autoria/

http://politica.estadao.com.br/blogs/marco-aurelio-nogueira/dilma-o-feminismo-e-o-machismo/

http://www.estadao.com.br/noticias/geral,analise---porque-ser-mulher-na-politica-e-e-nao-e-um-fator-importante,10000051893

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2015/07/05/internas_polbraeco,489022/ministro-marco-aurelio-eu-nao-queria-estar-na-pele-da-presidente-dil.shtml

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2016/04/19/internas_polbraeco,528226/dilma-rousseff-brasil-tem-um-u201cveio-golpista- adormecido-u201d.shtml

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2016/12/11/interna_mundo,560827/ruim-para-elas-2016-nunca-sera-esquecido-por-lideres-como-hillary-e-d.shtml

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2010/03/22/internas_polbraeco,181196/pre-candidata-a-presidencia-dilma-rousseff-tem-o-desafio-de-conquistar-o-voto-das-mulheres.shtml

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/revista/2012/01/01/interna_revista_correio,284634/o-ano-em-que-elas-comandaram-o-mundo.shtml

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http://agoraequesaoelas.blogfolha.uol.com.br/2016/05/24/pode-uma-mulher-governar/

http://aovivo.folha.uol.com.br/2016/04/16/4714-aovivo.shtml

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/angela-alonso/2016/06/1778377-genero-numero-e-grau.shtm

Recibido: 21 de Octubre de 2020; Aprobado: 25 de Febrero de 2021

* Mestranda em Administração na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil (https://orcid.org/0000-0002-7588-6358).

** Doutora em Administração na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil (https://orcid.org/0000-0002-1595- 0100).

*** Mestranda em Administração na Universidade Federal do Pampa, Brasil (https://orcid.org/0000-0003-2812-6038)

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