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Contratexto

versión impresa ISSN 1025-9945versión On-line ISSN 1993-4904

Contratexto  no.36 Lima jul./dic 2021  Epub 30-Nov-2021

http://dx.doi.org/10.26439/contratexto2021.n036.5152 

Tendencias

Feminismo de internet: como as redes sociais contribuem para o desenvolvimento da Quarta Onda Feminista no Brasil

Feminismo en Internet: cómo las redes sociales contribuyen al desarrollo de la cuarta ola feminista en Brasil

Internet Feminism: how social networks contribute to the development of the Fourth Feminist Wave in Brazil

Amanda Cantú Rodrigues Soares*
http://orcid.org/0000-0002-9387-3833

Jane Márcia Mazzarino**
http://orcid.org/0000-0002-6051-5116

1Universidade do Vale do Taquari-UNIVATES amanda.soares@universo.univates.br

2Universidade do Vale do Taquari-UNIVATES janemazzarino@univates.br

Resumo.

O presente artigo busca analisar como o uso das redes sociais contribui para o desenvolvimento da Quarta Onda Feminista no Brasil. Dados como o aumento do número de pesquisas em plataformas de busca online e a multiplicação de páginas de conteúdo feminista em redes sociais destacam o crescente debate sobre o assunto, e justificam a relevância do estudo. O artigo relata o desenvolvimento do movimento feminista, do seu surgimento até a atual insurreição, e a maneira como este se formou. Para isso, utiliza como metodologia estudos bibliográficos sobre feminismo e sobre o uso do espaço virtual por parte de movimentos sociais, bem como o estudo de caso do coletivo feminista brasileiro Não Me Kahlo. Também foi realizada a entrevista com uma das suas fundadoras e a análise quantitativa das publicações na página do coletivo na rede social Facebook, durante os meses de janeiro e junho de 2019. A partir desta metodologia, o estudo identifica a associação direta entre a atual insurreição feminista e o uso das redes sociais que são utilizadas como ferramentas de comunicação, organização e popularização do conteúdo feminista. A pesquisa também aponta os benefícios e as dificuldades que o uso das redes sociais acrescenta ao atual cenário da militância feminista.

Palavras-chave: feminismo; redes sociais; Facebook; comunicação; Coletivo Não Me Kahlo

Resumen.

Este artículo busca analizar cómo el uso de las redes sociales contribuye al desarrollo de la cuarta ola feminista en Brasil. Datos como el aumento del número de búsquedas en las plataformas online y la multiplicación de páginas de contenido feminista en las redes sociales destacan el creciente debate sobre el tema y justifican la relevancia del estudio. El artículo informa sobre el desarrollo del movimiento feminista, desde su surgimiento hasta la insurrección actual y la manera en que se formó. Para ello, utiliza como metodología estudios bibliográficos sobre el feminismo y el uso del espacio virtual por parte de los movimientos sociales, así como el estudio de caso del colectivo feminista brasileño Não Me Kahlo. También se realizó una entrevista con una fundadora y el análisis cuantitativo de las publicaciones en la página colectiva en la red social Facebook, durante los meses de enero y junio del 2019. Con base en esta metodología, el estudio identifica la asociación directa entre el la insurrección feminista actual y el uso de las redes sociales, que se utilizan como herramientas de comunicación, organización y divulgación de contenidos feministas. La investigación también señala los beneficios y dificultades que el uso de las redes sociales agrega al escenario actual del activismo feminista.

Palabras clave: feminismo; redes sociales; Facebook; comunicación; Colectivo Não Me Kahlo

Abstract.

This article seeks to analyze how social networks contribute to the development of the fourth feminist wave in Brazil. Data such as the increase in the number of searches on online platforms, and the multiplication of feminist content pages on social networks, highlight the growing debate on the subject and justify the study’s relevance. The article reports on the development of the feminist movement, from its emergence to the current insurrection, and how it was formed. To this end, it uses bibliographic studies on feminism and the use of virtual space by social movements as a methodology, and the case study of the Brazilian feminist collective Não Me Kahlo. It also uses an interview with one of its founders and the quantitative analysis of the publications on the collective page on Facebook during January and June 2019. Based on this methodology, the study identifies the direct association between the current feminist insurrection and social networks as tools for communication, organization, and popularization of feminist content. The research also points out the benefits and difficulties that the use of social networks add to the current scenario of feminist activism.

Keywords: feminism; social networks; Facebook; communication; Collective Não Me Kahlo

Introdução

A palavra feminismo se torna cada dia mais popular. Um levantamento divulgado pelo jornal O Estado de São Paulo, a partir de dados da plataforma online Google Trends, ferramenta do Google que revela a popularidade dos termos mais procurados no buscador em um passado recente, aponta que, somente entre 2015 e 2018, as buscas por “feminismo” foram de 30 a 100, considerando uma escala onde zero representa nenhuma popularidade e 100, o recorde de interesse (Giantomaso, 2018).

O feminismo é um movimento social de caráter político, ideológico e filosófico que tem como propósito a busca por igualdade, por meio da fundamentação teórica e de diferentes formas de militância. Nas palavras da filósofa Jacilene Maria Silva (2019, p.5), o feminismo “reivindica a libertação da mulher de todos os padrões e expectativas comportamentais de gênero”.

Estudiosas como Silva (2019) e Heloísa Buarque de Holanda (2018) costumam dividir o feminismo em ondas que representam diferentes fases do movimento. Uma onda difere de outra pelas reivindicações e forma de militar das ativistas, de acordo com o contexto histórico em que acontece. Cada um desses momentos é delimitado conforme se observe o debate crescente de determinadas pautas, que levam as mulheres a militar, até o seu enfraquecimento indiferente da conquista ou não de suas reivindicações. Dessa forma, cada onda tem seu recorte histórico específico, sendo também influenciado por outros movimentos sociais concomitantes.

Esta definição ocorre de forma meramente didática, pois mesmo quando há concordância entre as pautas, existem teorias, perspectivas e movimentos paralelos e diferentes no feminismo, cada qual com suas particularidades.

A Primeira Onda Feminista é situada do fim do século xix até a metade do século xx. Porém, é importante ressaltar que antes disso já existiam mulheres questionando o papel imposto a elas pela sociedade. Apenas não existia um grupo organizado a partir do mesmo objetivo (Silva, 2019).

Esta primeira insurreição iniciou no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, tendo como principal pauta a conquista de direitos políticos e jurídicos, como o direito ao voto e à educação, além da contestação dos casamentos arranjados e do papel da mulher dentro do matrimônio. As ativistas eram, em maioria, mulheres brancas e membros de uma elite classista, que, mesmo subordinadas aos maridos ou pais, tinham autonomia institucional e jurídica.

Também existiram mulheres negras militando na Primeira Onda. Estas analisavam sua condição de gênero aliada à condição racial e social. No entanto, é imprescindível destacar que enquanto militantes brancas da Primeira Onda reivindicavam direitos políticos e jurídicos, as militantes negras lutavam por direitos ainda mais fundamentais, como o fim da escravidão. Esta pauta, inclusive, dividia o movimento. Enquanto parte das feministas da Primeira Onda lutava pela abolição da escravidão, outra se posicionavam contra o movimento abolicionista e até participava de grupos supremacistas brancos. Estas alegavam que a libertação dos homens negros resultaria na perda de direitos das mulheres brancas. Temas relativos às condições de trabalho e a modelos políticos também atravessavam a Primeira Onda.

A Segunda Onda do Feminismo costuma ser delimitada entre os anos 1960 e 1980, quando surge o questionamento sobre o que é ser mulher e qual o seu papel na sociedade. O lançamento da obra literária O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, em 1949, é um dos marcos desta insurreição. Nesta fase, as pautas são as desigualdades culturais e políticas diretamente associadas ao gênero feminino, além de reivindicações sobre direitos reprodutivos e sexualidade. Surge o pensamento de que compreender a origem da opressão contra as mulheres é fundamental para combatê-la e modificar as estruturas de poder.

A maioria das ativistas dessa fase do movimento ainda são mulheres brancas, de classe alta e que frequentam ambientes elitistas como a universidade, o que influencia suas pautas e análises. Em função disso, mulheres negras, lésbicas, transexuais e da classe trabalhadora deram início ao que Silva (2019) chama de feminismo identitário. Estas mulheres, insatisfeitas com as análises realizadas por mulheres em situação de privilégio, as quais consideravam insatisfatórias e incapazes de contemplar os demais grupos de mulheres e suas demandas específicas, iniciam um movimento dentro do feminismo que ressalta as diferenças de classe, raça, etnia e sexualidade e que se mostram decisivas nas experiências que cada uma vivenciava como mulher. Estas reivindicações ganharam tamanha força e se tornaram tão importantes que resultaram em uma nova fase do movimento.

A Terceira Onda do Feminismo surge nas décadas de 1980 e 1990, quando as ativistas passaram a problematizar o conceito da mulher como ser único, resumida basicamente ao seu sexo, conforme difundido pela Segunda Onda. Elas afirmam que as opressões sociais, mesmo quando baseadas no gênero, atingem as mulheres de formas diferentes e, assim sendo, é fundamental reconhecer as variadas identidades e experiências de cada mulher. A obra Mulheres, Raça e Classe, da autora negra Angela Davis, publicada em 1981, é uma das bases teóricas desta insurreição.

Silva (2019) é uma das autoras que defendem a ideia de que a atual fase vivida pelo feminismo pode ser considerada como a quarta onda do movimento. As características consideradas determinantes para marcar a mudança de fase, conforme Silva, também são apontadas por Holanda (2018) em sua obra. Segundo as autoras, a principal diferença entre esta e as fases anteriores é o amplo uso das redes sociais na internet, (que a partir de agora passa a se denominar no texto apenas como redes sociais) o que abre espaço para uma nova forma de se fazer feminismo.

Conforme o levantamento divulgado pelo jornal O Estado de São Paulo com base nos dados da plataforma Google Trends (Giantomaso, 2018, texto online), anteriormente mencionado, a busca pelo termo “feminismo” cresceu mais de 300% nos últimos três anos, o que revela um aumento do interesse popular pelo movimento.

Nota-se, também, a popularização do conteúdo feminista através da multiplicação de páginas e perfis que tratam sobre o tema em redes sociais como o Facebook e o Instagram. No entanto, o número de produções científicas que relatam de forma direta a relação entre a Quarta Onda Feminista e as redes sociais ainda é pequeno, o que justifica a relevância deste estudo. Levantamento realizado na busca avançada do Portal de Periódicos da Capes, no dia 15 de julho de 2021, considerando publicações dos últimos 10 anos e combinando as palavras “quarta onda” AND “feminismo”, aponta 24 publicações no período e “quarta onda” AND “redes sociais” apontam como resultados 13 estudos.

A forma como as ativistas contemporâneas utilizam as redes sociais para organização, conscientização e propagação dos ideais feministas é o que este trabalho pretende desvendar ao fazer um estudo de caso do coletivo Não Me Kahlo e da forma como este utiliza o Facebook. Teoricamente, aprofunda-se a compreensão da Quarta Onda Feminista, para então abordar o feminismo no espaço virtual e o papel das redes sociais. Em seguida, se faz uma análise quantitativa das publicações realizadas pelo coletivo em sua página do Facebook durante os meses de janeiro e junho de 2019.

A Quarta Onda Feminista

O atual momento vivido pelo movimento feminista apresenta como características a eclosão em países emergentes (diferente das insurreições anteriores) e o uso das redes sociais como ferramenta de militância. Estas características também estão diretamente ligadas ao que foi o estopim para a última insurreição do movimento: a violência de gênero.

Nos países subdesenvolvidos, os números da violência começam a ter mais visibilidade social. A internet, principalmente as redes sociais, ajuda a difundir estes dados e os relatos de mulheres que vivem ou viveram esta realidade. O Brasil, por exemplo, ocupa o 5º lugar no ranking mundial de feminicídios, entendido como o assassinato de mulheres por razões de gênero. Conforme o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), são 4.762 vítimas para cada 100 mil, o que representa uma média de 13 mortes por dia em razão de gênero, geralmente pelas mãos dos companheiros (Silva, 2019). A mudança do uso do termo genérico de assassinato de mulheres para feminicídio representa uma mudança sociocultural em relação a este tipo de violência.

Em 2015, uma adolescente argentina foi brutalmente assassinada pelo namorado. No ano seguinte, outra adolescente argentina foi estuprada e assassinada de forma extremamente violenta. Os casos repercutiram na internet e nas mídias tradicionais, o que levou milhares de mulheres às ruas da Argentina em protesto. As manifestações foram organizadas por meio das redes sociais e logo romperam as fronteiras argentinas, alcançando também as ruas de países como Peru, México e Chile (Barioni et al., 2016).

Segundo Silva (2019), vivemos um ressurgimento do interesse no feminismo desde 2012, associado ao uso de plataformas como Facebook, Twitter, Youtube e Instagram, e influenciado por outros movimentos e manifestações que ganham novo fôlego ou se formam a partir destas plataformas. A Quarta Onda Feminista utiliza das redes sociais como veículo de comunicação interna e externa, como ferramenta de organização, articulação e fortalecimento dos ideais feministas.

Esta nova fase do movimento tem força a partir da popularização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), usadas também para contestar a misoginia, a LGBTfobia, o sexismo, o racismo, a xenofobia, entre outros preconceitos. É a popularização da informação causada pelas redes sociais que impulsiona o novo feminismo, dando voz a grupos que as fases anteriores não foram capazes de representar e levando informação a quem antes se encontrava às margens do conhecimento. O feminismo se apropria das redes sociais e do mundo virtual para levantar bandeiras já conhecidas das fases anteriores, caso do empoderamento feminino, do fim da cultura patriarcal, da violência de gênero e do fortalecimento da ideia de interseccionalidade.

Mulheres de países subdesenvolvidos são as protagonistas da Quarta Onda. Elas, que não encontravam espaço para serem ouvidas em um movimento excludente, encontram este espaço na internet.

A desconstrução de relacionamentos românticos abusivos é outra pauta fortemente trabalhada pelas feministas contemporâneas. Na internet, as militantes se unem para denunciar cada pequena violência sofrida no dia a dia, em campanhas virais como o #MeuPrimerioAssédio, que movimentou o Brasil em 2015, revelando relatos angustiantes e repugnantes, os quais mostraram que o primeiro assédio geralmente ocorre enquanto as mulheres ainda são adolescentes ou, por vezes, crianças. Outra campanha que ganhou espaço, em seguida, foi a #MeuAmigoSecreto, utilizada pelas ativistas para expor atitudes machistas de colegas, amigos e familiares na forma de uma “indireta” nas redes sociais.

Outras bandeiras levantadas pela Quarta Onda Feminista são a representação da mulher nos meios de comunicação, e o questionamento de padrões de beleza impostos e difundidos até mesmo nas mesmas redes sociais utilizadas pelo movimento. Uma problemática levantada pelas ativistas atuais, mas ainda discutida de forma muito controversa, é a legalização do aborto.

A pauta existe desde meados da década de 1970 durante a Segunda Onda Feminista, mas, principalmente nos países periféricos, como é o caso dos berços do ressurgimento do feminismo na Quarta Onda, ainda enfrenta a forte resistência de dogmas religiosos nos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Apesar disso, existem países emergentes que andam na contramão deste fato e já legalizaram o aborto, como Cuba, Argentina e Uruguai. A Quarta Onda Feminista também busca incorporar a causa trans, embora ainda existam setores dentro do feminismo claramente transfóbicos.

Feminismo no espaço virtual

A comunicação é uma ferramenta essencial na vida em sociedade e segue evoluindo ao longo dos séculos. A invenção da escrita, por exemplo, foi tão significativa que marcou o início de uma nova era na história.

As constantes evoluções das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) possibilitaram o crescimento e o reforço das redes sociais offline, ou seja, das conexões interpessoais fora do espaço virtual, mesmo antes da propagação da Internet.

Porém, foi com a popularização da Internet, especialmente a partir dos anos 1990, e o surgimento das primeiras redes sociais online, ocorrido já no século xxi, que criamos um verdadeiro novo capítulo na história da Comunicação. Além da conexão descentralizada, este fenômeno também contribuiu para o surgimento de uma grande quantidade de dispositivos eletrônicos móveis multifuncionais, conectados 24 horas por dia, como ferramenta de potencial imensurável na criação de conteúdo autoral.

A partir desta nova realidade, tem-se iniciado um fenômeno chamado midiatização do processo social, que, conforme Gomes (2017), nomeia o começo da conversão de uma sociedade dos meios para uma sociedade em midiatização, o que representa uma mudança fundamental na forma de ser e atuar no mundo, onde a mídia torna-se mais do que um elemento de ligação entre realidade e indivíduo. Isto, somado a uma crescente desconfiança em relação às instituições de poder, vem configurando novos processos na forma de fazer ativismo, utilizando o mundo digital como um novo canal de expressão independente (Val Franco, 2017).

O ambiente virtual é um fator estratégico e central no movimento feminista contemporâneo, pois, segundo Cristiane Costa (2018), nunca antes a militância feminista foi tão potencializada nem resultou em tantas reações e alianças como se vê hoje. Conforme a autora, as redes sociais se tornaram um mecanismo de mobilização política desde a sua popularização. O protótipo do Twitter, por exemplo, surgiu justamente para a militância. O projeto teve início em 2004, quando era chamado de programa TXTMob. Criado para organizar manifestações contra a convenção nacional do Partido Republicano, nos Estados Unidos. TXTMob foi oficialmente lançado como o nome de Twitter dois anos depois, mas manteve seu “DNA ativista”.

Costa (2018) destaca que os recursos das redes sociais mais utilizados pelos movimentos são aqueles que favorecem a autonomia e a ação direta. Isso se torna uma característica tão importante nos movimentos contemporâneos que Castells (2013, p. 160) declara que “a construção autônoma das redes sociais controladas e guiadas por seus usuários” é a grande transformação social do século xxi.

Castells (2013) afirma que os movimentos sociais só podem desafiar o status quo quando há conexão entre os membros, de forma que estes possam compartilhar suas indignações e se sentirem parte de um coletivo. As redes sociais vêm ao encontro dessa necessidade e tornam-se ferramentas essenciais na rotina de movimentos como o feminismo contemporâneo.

Como descreve Maria Bogado (2018), as redes sociais deixam de ser apenas um veículo eficiente de troca de informação e tornam-se também as bases para uma nova forma de organização política: “uma democracia conectada, participativa e transparente” (Bogado, 2018, p. 28). Por meio delas, os movimentos vivem, atuam e ganham mais força a cada dia. As redes sociais e a popularização dos aparelhos móveis colaboram para que as ativistas tenham uma forma mais prática e rápida de se mobilizar, organizar e decidir. A internet também cria condições para que um movimento sem uma liderança estabelecida sobreviva, coordene-se e se expanda.

Nos movimentos sociais contemporâneos, como a Quarta Onda Feminista, a falta de uma liderança bem definida é uma das suas principais características, o que só se torna possível devido à facilidade de comunicação nas redes sociais. Além disso, as redes sociais servem também de canal de comunicação entre sociedade e ativistas, e inspiram estes por meio da disseminação de mensagens e imagens de movimentos bem-sucedidos ao redor do mundo (Castells, 2013).

Apesar de se basear, de forma geral, no espaço urbano, através de ocupações e manifestações, os movimentos sociais ganham existência contínua e espaço livre na internet. Conforme Castells (2013), na internet eles podem não ter um centro identificável, mas ainda assim são organizados. Essa estrutura descentralizada também aumenta a adesão ao movimento porque este se forma em uma rede aberta, sem fronteiras ou restrições.

Os movimentos sociais contemporâneos apresentam uma série de características específicas. Eles são conectados em redes de múltiplas formas, ou seja, existem em redes sociais online e offline, em redes pré-existentes e em outras criadas durante as ações do movimento. Acabam ainda por formar redes dentro do próprio movimento e com outros movimentos ao redor do mundo. Isso possibilita que evoluam conforme as mudanças em seu próprio formato e nas tecnologias. Outra particularidade é o fato destes movimentos serem, ao mesmo tempo, locais e globais. Eles começam em contextos específicos, constituem seu próprio formato e ocupam o espaço urbano. Mas, ao ganhar a internet, passam a se conectar com o mundo todo, aprendem com outras experiências e têm a possibilidade de manter um debate contínuo e convocar a participação conjunta e simultânea em manifestações em todo o planeta, como pode-se observar nos protestos diante dos casos das jovens assassinadas na Argentina (Castells, 2013).

O sentimento de companheirismo que as redes sociais criam é outra característica fundamental de movimentos como o feminismo contemporâneo. Segundo Castells (2013), é pelo companheirismo que as pessoas superam o medo e descobrem a esperança, de forma que as redes sociais contribuem para instigar sentimentos de cooperação e solidariedade aos ativistas. Esses movimentos também são considerados autorreflexivos, pois se questionam constantemente sobre seus propósitos e sobre seus próprios participantes: quem são, o que desejam, que tipo de direitos almejam e como evitar imprevistos que prejudicaram ou levaram ao mesmo fracasso de outros movimentos (Castells, 2013).

Diferente dos movimentos de protesto, movimentos insurgentes como a Quarta Onda do Feminismo ainda se tornam essencialmente culturais, uma vez que permitem aos seus atores sociais definirem suas ações conforme seus próprios valores, interesses e de forma independente das instituições. As redes sociais ainda favorecem um novo padrão de organização, baseado na polinização cruzada, na consulta múltipla e na retroalimentação, o que foi fundamental para a Quarta Onda Feminista, uma vez que conseguiu alcançar indivíduos de minorias e em países em desenvolvimento (Holanda, 2018).

Nas redes sociais, o feminismo explora diversas linguagens. Ele investe em perspectivas abertas para a experimentação entre o pessoal e o público, explora de forma meticulosa a força de mobilização que têm os relatos pessoais, principal instrumento do feminismo contemporâneo, uma vez que as experiências em primeira pessoa passam a afetar o outro quando compartilhadas na rede. Mais do que defender suas ideologias, as feministas produzem laços grupais que criam uma percepção comum (Costa, 2018).

Dentro das redes, as hashtags tornam-se uma das grandes ferramentas do movimento. Compostas pelo símbolo cerquilha (#) e acompanhadas de alguma palavra-chave, elas tornam-se um hiperlink indexado pelos mecanismos de busca (Langner et al., 2015). As hashtags foram criadas pela publicidade, mas logo ganharam potencial de organização e de distribuição de conteúdo político pelos movimentos.

Muitas vezes, as manifestações e campanhas feministas criadas a partir de hashtags nem chegam a resultar na criação de blogs, sites ou páginas em redes sociais. Seu potencial mobilizador destacou sua força e usabilidade em uma série de movimentos como o #PrimeiroAssédio. Criado em outubro de 2015 pelo coletivo Think Olga, gerou uma repercussão tão grande que ganhou versões em outros países, como a #FirstHarassment, na Inglaterra e nos Estados Unidos.

A campanha surgiu como uma resposta ao assédio sofrido por Valentina Schulz durante sua participação do reality show MasterChef Júnior. Na época com ١٢ anos, Valentina foi alvo de comentários de teor pedófilo e machista nas redes sociais. Através da #PrimeiroAssédio, milhares de mulheres compartilharam suas primeiras experiências com assédio sexual, algumas nunca antes reveladas a ninguém. A hashtag foi utilizada 2,5 mil vezes no dia do lançamento e, após três dias, foi replicada mais de 80 mil vezes. Ao final, destacou-se um dado alarmante: mulheres costumam sofrer o primeiro assédio por volta dos 9 anos (Silva, 2019).

Após a repercussão do #PrimeiroAssédio, as portas das redes sociais foram abertas oficialmente para uma onda de campanhas semelhantes no Brasil, como a #MeuAmigoSecreto, a #MulheresContraCunha, a #AgoraÉQueSãoElas, a #NãoMereçoSer Estuprada, a #NãoÉNão, a #CarnavalSemAssédio, a #EuEmpregadaDoméstica, entre tantas outras.

Podemos dizer que, em razão disso, os grupos feministas que atuam por meio das redes sociais desenvolvem, além de um tipo de enfrentamento social, uma forma da sua comunidade (aqui formada pelas seguidoras/curtidoras/leitoras) participar de maneira mais ativa no movimento através do compartilhamento de suas vivências individuais, fortalecendo assim o discurso pela causa. É importante destacar também que muitas campanhas ou projetos idealizados por páginas ou coletivos online têm como prioridade a exposição de informação com o objetivo de orientar, capacitar e encorajar as ativistas/internautas. Como cita Maria Elisa Magalhães Santos (2018), o feminismo nas redes se torna uma forma sutil, mas imprescindível de “questionar as relações e desigualdades de gêneros sob uma abordagem de fácil entendimento e que intercambia sujeitos (mulheres) que possivelmente não tiveram acesso direto a estes estudos (o teórico)” (p.8).

Mas nem só de campanhas virais vivem as feministas da Quarta Onda. Além do compartilhamento de materiais informativos sobre temas que pautam a discussão feminista, as redes sociais também se tornam palco para a visibilidade do trabalho de mulheres que levantam estes debates através das artes visuais, do cinema, do teatro e da música.

Nomes como a funkeira MC Carol têm nas redes sociais o aporte para tornar viral letras e performances sobre questões de gênero e liberdade feminina. Em 2012, por exemplo, a rapper Luana Hansen foi uma das artistas a abrir caminho para o feminismo no cenário do rap ao lançar a música “Ventre livre de fato”, cujo clipe foi lançado pelo grupo ativista Católicas pelo Direito de Decidir, e argumentava sobre o direito ao aborto (Bogado & Cunto, 2018).

Pautas feministas ainda encontram espaço na literatura brasileira contemporânea. Com mais de 400 mil seguidores no Instagram, a poeta Ryane Leão usa o perfil @ondejazzmeucoracao para falar sobre relacionamentos abusivos, padrões estéticos, autoestima feminina e direitos das mulheres negras. Os poemas também ganharam versão impressa em dois livros, sendo o segundo, lançado em 2017, best seller de vendas no Brasil. Desta forma, podemos concluir que as redes sociais se tornaram um veículo para a Quarta Onda Feminista se difundir no formato de arte, cultura e política.

O fato é que as redes amplificam a voz e a ação do movimento, impulsionando a sua expansão e a adesão de maior quantidade de pessoas. No artigo “O movimento feminista e o ativismo digital: conquistas e expansão decorrentes do uso das plataformas online” (Langner et al, 2015), as autoras destacam como o uso da internet possibilitou à Marcha Mundial das Mulheres obter um ambiente virtual propício para se mobilizar e organizar suas reuniões, para as militantes trocarem experiências e produzir conhecimento. Também se torna visível a relevância da interatividade democrática proporcionada pelo uso das redes sociais pelo movimento feminista. Sem elas, seria muito mais difícil a construção de reflexões e mobilizações, tanto online como offline. Além disso, por ser considerado um ambiente livre, a internet ainda permite espaço para as militantes feministas terem voz em discussões sobre o machismo na mídia tradicional. “Tudo está ao alcance através do acesso à informação que a internet permite e, com isso, torna-se possível a construção de ‘contra-conteúdo’ para ser propagado na rede” (Langner et al, 2015, p. 7).

Val Franco (2017) destaca que o uso das redes sociais por movimentos como o feminismo ainda tem como benefícios um menor custo de produção de conteúdo e um menor custo de participação para os usuários, uma vez que qualquer militante pode produzir conteúdo e disseminá-lo na rede, basta um smartphone e acesso à internet. Desta forma, no feminismo contemporâneo, as usuárias saem da posição de meras consumidoras e se tornam agentes ativos na produção de conteúdo.

As dificuldades inerentes às redes sociais

Apesar do inegável impacto gerado pelas ações feministas nas redes sociais, é importante destacar as dificuldades inerentes ao ambiente virtual, a começar pelos números de acesso à internet no Brasil. Conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no quarto trimestre 2018, dos 71 738 mil domicílios particulares permanentes no Brasil, 79,1 % possuíam acesso à internet. Na área urbana, eram 83,8 % das residências com conexão e, na área rural, 49,2 %.

Ao considerar os números por região, de forma geral, o Nordeste apresentava o menor percentual de domicílios com utilização da internet (69,1 %), seguido da região Norte, com 72,1 %. A região Sudeste (84,8 %) apresentou o percentual mais elevado. Em área urbana, os números das regiões Sudeste (86,5 %) e Centro‐Oeste (86,4 %) são os maiores, e a região Nordeste (77,2 %) permanece com o menor resultado. Por sua vez, na área rural, o menor percentual foi registrado na região Norte (33,1 %) e o maior, na região Sul (61,4 %).

Segundo o IBGE, embora o acesso à internet no Brasil esteja em contínuo e expressivo crescimento, existe uma parcela da população que ainda não possui contato com o mundo virtual. Entre os motivos, conforme a pesquisa, estão a falta de interesse em acessar a internet (34,7 %); o alto custo do serviço de acesso à internet (25,4 %) e o fato de nenhum morador da residência saber utilizar a internet (24,3 %).

Desta forma, o acesso limitado ao espaço virtual, em especial por quem vive em regiões rurais, de difícil acesso ou em situações de vulnerabilidade social, bem como a falta de conhecimento para manusear dispositivos de acesso à internet ou a própria rede são importantes percalços na popularização do feminismo por meio das redes sociais.

Quando focamos no próprio funcionamento das redes sociais, outros fatores também acabam por prejudicar a completa horizontalidade do movimento. Os critérios adotados por cada rede para a distribuição das postagens em cada perfil, por exemplo, podem criar microbolhas de discurso difíceis de serem superadas (Costa, 2018). Estas microbolhas acabam restringindo a entrega do conteúdo a uma parcela específica de internautas, evidenciando cortes como o de classe, a exemplo de campanhas como a #EuEmpregadaDoméstica.

Assim como as redes sociais foram fundamentais para a insurreição do feminismo e sua popularização, o espaço interativo também facilitou o surgimento de ataques ao movimento e às ativistas. De fato, desde as primeiras ondas, as militantes enfrentam resistência em forma de comentários misóginos e machistas, ora disfarçados de piadas, ora livres da máscara do humor.

Durante a Primeira Onda, as sufragistas constantemente eram retratadas em charges como mulheres feias e insinuações de que a falta de maridos seria o motivo de seu engajamento político, tido como ultrajante. Décadas depois, as feministas continuam sendo desqualificadas como mulheres mal-amadas, rejeitadas, feias, putas ou loucas (Barioni et al, 2016)

Atualmente, internautas conservadores inundam páginas feministas com comentários contra o que chamam de “perigo das ideologias de gênero”. Pregadores de ódio, incentivam posturas misóginas e há ainda quem batize de forma irônica a Quarta Onda Feminista como “ativismo de sofá”, minimizando a relevância do uso das redes sociais e da internet no ressurgimento e fortalecimento do feminismo (Costa, 2018).

Porém, conforme cita Eva Alterman Blay (2017), o movimento feminista foi se diversificando ao longo do século xx e do início do século xxi Suas formas de atuar, assim como seus instrumentos de intervenção, mudaram conforme mudou a própria sociedade, e mudar não significa enfraquecer. “Buscar outras estratégias de ação faz parte da política. Um passo para o futuro depende, entre outros fatores, da adesão de jovens, trabalhadores e estudantes” (Blay, 2017, p.93).

A respeito disso, a filósofa Djamila Ribeiro (2017) também afirma:

Como todos os limites, o espaço virtual tem sido um espaço de disputas de narrativas, pessoas de grupos historicamente discriminados encontram aí um lugar de existir. Seja na criação de páginas, sites, canais de vídeos, blogs. Existe nesse espaço uma disputa de narrativa, mas ainda aquém do ideal por conta das barreiras institucionais que impedem o acesso de vozes dissonantes. Como expressar-se não é um direito garantido a todos e todas, ainda há a necessidade de democratização das mídias e rompimento de um monopólio, a discussão sobre a liberdade de expressão também não pode ser pautada unicamente no direito - não absoluto - de expressar opiniões. Friso que mesmo diante dos limites impostos, vozes dissonantes têm conseguido produzir ruídos e rachaduras na narrativa hegemônica, o que, muitas vezes, desonestamente, faz com que essas vozes sejam acusadas de agressivas justamente por lutarem contra a violência do silenciamento do grupo (p.87).

Castells entende que, mesmo se não conseguirem atingir seus objetivos principais, a maior herança que movimentos sociais como o feminismo contemporâneo deixarão será uma nova forma de fazer movimento social, a mudança cultural que produziram e os efeitos desta sobre a sociedade e o sistema que tentaram questionar.

Metodologia

O estudo se configura como uma pesquisa quantiqualitativa, sendo que a combinação de ambas metodologias foi escolhida porque possibilitam abranger a máxima compreensão do objeto estudado (Goldenberg, 1998). Enquanto pesquisa exploratória e descritiva, está focada na caracterização e reflexão dos resultados relativos ao objeto de estudo.

Seu início se deu com a pesquisa bibliográfica (Stumpf, 2009). Em seguida, realizou-se a pesquisa documental (Moreira, 2009) que compreendeu a análise das postagens na página de Facebook do Coletivo Não Me Kahlo. Trata-se, portanto, de um estudo de caso, por ser uma análise intensiva, onde o pesquisador reúne a maior quantidade de informações possíveis para compreender a totalidade do fato pesquisado (Duarte, 2009). Complementarmente, foi realizada uma entrevista virtualizada semiestruturada com as fundadoras do coletivo Não Me Kahlo, de forma a compreender a origem e o trabalho do coletivo.

Para analisar os dados, foram utilizados os procedimentos de análise textual. Conforme Moraes (2003), a análise textual é um modo de aprofundamento em processos discursivos. É um processo integrado de análise e síntese que tem como objetivo fazer uma leitura rigorosa e profunda de um conjunto de materiais textuais, de forma a categorizá-los e interpretá-los para atingir uma compreensão mais elaborada dos fenômenos e dos discursos a partir dos quais foram produzidos. Na análise textual realizada no presente artigo, buscou-se ter como foco o conteúdo de cada postagem, por meio dos temas abordados nelas, em detrimento de outros elementos textuais.

Resultados

O coletivo Não Me Kahlo foi idealizado pelas ativistas Bruna Rangel, Thaysa Malaquias, Gabriela Moura e Flávia Dias. O projeto iniciou no formato de um grupo no Facebook com o objetivo de discutir feminismo nas redes sociais. O grupo chegou a reunir 3 mil mulheres e, diante da sua potencialidade, ganhou uma página na mesma rede social que, até julho de 2021, contava com mais de um milhão, cento e oitenta mil seguidores.

O Não Me Kahlo logo ganhou presença também em outras redes sociais, como o Instagram (@naokahlo), onde conta com cerca de 110 mil seguidores, e no Twitter (@NAOKAHLO), onde pouco mais de 108 mil seguidores acompanham o conteúdo divulgado pelas organizadoras. Para aprofundar as pautas, o coletivo conta ainda com um site colaborativo, construído de forma voluntária pelas fundadoras do Não Me Kahlo e pelas mulheres que acompanham o trabalho do coletivo nas redes sociais e que são convidadas a enviar seus textos.

Em uma análise das publicações realizadas entre janeiro e junho de 2019 na página de Facebook do Não Me Kahlo foram observadas 145 publicações, distribuídas de forma desigual ao longo dos meses. Foram 9 publicações em janeiro, 40 em fevereiro, 37 em março, 11 em abril, 18 em maio e 30 em junho.

Destas, considerou-se, conforme o Quadro 1, como “Publicações inéditas” as postagens que foram publicadas na página do Não Me Kahlo pela primeira vez durante o período avaliado, mesmo quando compartilhadas de outras páginas do Facebook. Quando a mesma publicação aparece pela segunda ou terceira vez, não é somada nesta categoria. Foram consideradas “Publicações autorais” aquelas publicadas diretamente na página, sendo de autoria do Não Me Kahlo ou de parceiros, não considerando aqui as postagens compartilhadas de outras páginas do Facebook ou de outros sites.

A análise ainda considerou postagens de links que direcionam ao site www.naomekahlo.com, nomeadas como “Postagens site Não Me Kahlo”. O número que aparece entre parênteses diz respeito à postagem do mesmo link que se repete naquele mês. As postagens de links que direcionam a outros sites, como portais de notícias, foram nomeadas como “Postagens outros sites”. As postagens de links de eventos, sejam eles organizados ou não pelo Não Me Kahlo, foram reunidas na categoria “Postagens links de eventos”. As postagens feitas a partir de card com print de textos publicados originalmente na conta do Não Me Kahlo no Twitter (@NAOKAHLO) estão na categoria chamada “Postagens cards Twitter @NAOKAHLO”. As postagens feitas a partir de card com print de textos publicados originalmente em contas de terceiros no Twitter receberam o nome de “Postagem cards Twitter terceiros”. Por fim, as postagens que são compartilhamentos de publicações de outras páginas do Facebook receberam o título de “Compartilhados de outras páginas do Facebook”.

Quadro 1 Caracterização das publicações mensais do coletivo Não me Kahlo no Facebook 

JANEIRO FEVEREIRO MARÇO ABRIL MAIO JUNHO
Total de postagens da página 9 40 37 11 18 30
Postagens inéditas 9 39 32 11 17 26
Postagens autorais 3 11 13 5 9 7
Postagens site Não Me Kahlo (respostada) 0 15 (1) 10 (5) 2 7 (1) 16 (4)
Postagens outros sites 2 2 1 0 0 1
Postagens links de eventos 0 2 1 0 1 0
Postagens cards Twitter @NAOKAHLO 2 3 0 0 0 1
Postagens cards Twitter terceiros 1 5 2 0 0 2
Compartilhados de outras páginas do Facebook 1 1 5 4 0 0

Elaboração própria

Dentre as publicações, observa-se que a maioria é inédita, ou seja, não se repete durante o período analisado. A maior parte das postagens também pode ser classificada como original, ou seja, é um card publicado diretamente na página do coletivo, ou então classifica-se como um link que direciona para o site do Não Me Kahlo. Esta categoria, inclusive, é a única que se repete. Ou seja, no período analisado, quando temos uma publicação que não é inédita, ela sempre é um link que direciona para o site do coletivo. Conforme Bruna Rangel, co-fundadora do Não Me Kahlo, há um motivo estratégico por trás disto. O Facebook hoje serve para o coletivo não só como um canal de comunicação rápida e popular, mas como meio de gerar tráfego no site do coletivo, a fim de monetizá-lo.

Como precisamos fazer captação de recursos, é preciso que exista esta migração. [...] Então, tudo o que vai para o site, depois vai para o Facebook. [...] Tanto pela nossa prática nos últimos anos fazendo isso como pelos nossos estudos sobre marketing, temos noção dos tipos de publicações que vão fazer sucesso, que serão muito compartilhadas. Só que, no momento, o nosso conteúdo não é voltado para ser viral. O enfoque maior é compartilhar textos e links que levem para o nosso site para conseguir algum tipo de monetização do nosso trabalho através disso. O foco das publicações tem sido muito menos o alcance e muito mais uma divulgação do nosso site. [...] A gente precisa que estas visualizações vão para o site porque assim conseguimos captar recursos para manter a organização. (Comunicação pessoal, 02 de abril de 2020)

Em 2018, o Não Me Kahlo tornou-se de forma oficial também uma organização sem fins lucrativos. A verba arrecadada por meio de doações feitas a partir do site e da venda de produtos na loja virtual do coletivo é utilizada para promover o projeto online e eventos offline que incentivam a autonomia feminina. Porém, conforme Bruna, a arrecadação ainda não é suficiente para tornar o Não Me Kahlo autossustentável, ou seja, nenhum dos colaboradores recebem salário ou bonificação financeira.

As políticas de funcionamento do Facebook, como a limitação no uso de caracteres e as formas de distribuição do alcance das postagens adotadas ao longo dos últimos anos, também contribuíram para o que o Não Me Kahlo adotasse como principal estratégia o uso da rede como canal para o seu site.

[Quando] você cria conteúdo no Facebook, você está produzindo para a empresa Facebook. Para a gente isso não é mais útil. Já tivemos nossa página derrubada uma vez, por exemplo. Então o Facebook não pode ser o nosso principal meio de comunicação, é por isso que a nossa intenção é sempre redirecionar para o site, pois ali sim é [um espaço] nosso, é onde está nosso trabalho, o que a gente quer falar e onde cabe o que queremos falar também. O Facebook, pela própria maneira como as pessoas o usam, essa característica de compartilhar muitas imagens com pouca informação, é ótimo para compartilhar algumas coisas, mas não para dizer tudo o que a gente quer, que são alguns textos mais complexos, coisas maiores. (comunicação pessoal, 02 de abril de 2020)

Em relação às pautas das publicações do coletivo em sua página no Facebook no primeiro semestre de 2019, a violência de gênero é a mais recorrente. Conforme Bruna, isso ocorre porque uma das principais pautas do Não Me Kahlo é alertar para o fato de que a violência de gênero vai muito além da violência física, em especial, quando falamos em violência doméstica.

Além disso, o coletivo também busca auxiliar as mulheres a reconhecer quando estão em um relacionamento abusivo e divulgar a elas como podem se proteger. Esta postura do coletivo é um exemplo claro do que as feministas contemporâneas buscam com a Quarta Onda: promover, por meio de canais informais e de rápida propagação, dados e o auxílio necessário para lidar com a violência de gênero, que pode ser considerada a pauta principal da atual insurreição do movimento.

O Não Me Kahlo foi o precursor da hashtag #MeuAmigoSecreto que, em 2015, viralizou em diversas redes sociais, levando milhares de mulheres a relatarem abusos sofridos ou atitudes machistas vividas em seu dia a dia. No ano seguinte a campanha deu origem a um livro chamado #MeuAmigoSecreto: feminismo além das redes (Barioni et al., 2016).

No período analisado, pode-se observar 21 temas de pautas abordados pelas publicações. São elas, em ordem alfabética: Aborto, Ativistas, Causas Sociais, Convites para as leitoras enviarem seus textos, Cultura, Educação, Empoderamento, Feminismo Negro, Feminismo LGBTQIA+, Gênero, Ironia/Humor, Livro #MeuAmigoSecreto, Machismo, Marielle Franco, Maternidade, Padrões de Beleza/Corpo, Política, Política, Relacionamentos, Sexualidade, Sororidade e Violência.

Cada pauta deu origem a uma categoria de publicação. Cada publicação se encaixa em pelo menos uma categoria ou, por vezes, em mais de uma. Nem todas as categorias aparecem em todos os meses analisados. Na categoria Aborto encontram-se posts sobre posicionamentos em relação a este tema. Na categoria Ativistas encontram-se publicações que falam sobre mulheres que levantam a bandeira do feminismo em seu trabalho, com exceção da vereadora Marielle Franco que, devido às proporções do debate acerca de sua morte, tem uma categoria exclusiva.

Nas Causas Sociais estão reunidas postagens que levantam temas como desigualdade social, racismo e homofobia, de forma geral, sem associação ao feminismo. Como Cultura enquadram-se publicações sobre música, literatura e arte feita por mulheres. Na categoria Empoderamento estão postagens que buscam levar às leitoras o reconhecimento de seu papel como mulheres e seus direitos.

Feminismo LGBTQIA+ reúne postagens sobre transfeminismo e o recorte de sexualidade sob a ótica de movimento social, diferente da categoria Sexualidade, que fala da relação da mulher com seu corpo e o sexo. Ironia/Humor se associa normalmente às outras, quando um assunto é tratado pelo coletivo de forma sarcástica, sendo mais comum nesta as publicações de cards com prints de tweets. A categoria Relacionamentos engloba desde discussões sobre relações abusivas à complexidade das diferentes formas de se relacionar com outros, seja de forma hétero ou homoafetiva. Sororidade reúne publicações sobre união e apoio mútuo entre as mulheres. Na categoria Violência encontram-se publicações que falam de violência de gênero em suas diversas naturezas e a violência de forma geral.

Os 21 temas de pautas abordados nas 145 publicações realizadas entre janeiro e junho de 2019 na página do Não Me Kahlo no Facebook estão distribuídas de forma desigual, conforme o Quadro 2. As publicações poderiam estar em mais de uma categoria, mas como forma de buscar alguma classificação, se fez uma primeira aproximação como exposto no Quadro 2. Verificou-se também, na continuidade das análises, que poderiam ser reagremiadas em grandes categorias, o que se realizou na busca de uma compreensão do padrão oferecido aos receptores.

Quadro 2 Publicações realizadas entre janeiro e junho de 2019 

TEMA JAN FEV MAR ABR MAI JUN TOTAL DE VEZES QUE O TEMA APARECE NO SEMESTRE
Aborto 1 1 2 4
Ativistas 1 5 1 3 10
Causas sociais 2 2 3 2 3 12
Convite 4 2 2 8
Cultura 1 9 9 2 2 23
Educação 2 1 3
Empoderamento 2 6 2 5 2 17
Feminismo LGBTQIA+ 1 7 8
Feminismo negro 2 1 3
Gênero 1 3 2 1 1 6 14
Ironia/Humor 1 1 4 1 4 11
Livro #MeuAmigo Secreto 1 1 2
Machismo 1 1
Marielle Franco 1 2 3
Maternidade 1 2 1 6 4 14
Padrões de Beleza/Corpo 2 1 1 4
Política 3 2 7 4 2 5 23
Relacionamento 1 4 2 7
Sexualidade 2 2
Sororidade 1 1
Violência 2 6 4 4 1 6 23
Total 14 52 40 15 24 48 193

Elaboração própria

As pautas Violência, Política e Gênero são as únicas que apareceram nos seis meses analisados. A Violência é a mais comum e aparece em 23 publicações. Destas, 22 abordam a Violência de Gênero, seja ela física, psicológica ou de outra natureza. Uma das publicações aborda a violência, mas aliada a outra temática, a Causas Sociais, pois se refere a um episódio de abuso de poder policial em uma favela, sem relação direta com a violência de gênero. Na categoria Política são 23 publicações e na categoria Gênero são 14 postagens. A categoria Cultura também demonstra relevância, com 23 aparições. As demais aparecem menos de 20 vezes individualmente.

Considerando-se uma agremiação das categorias expostas no Quadro 2, revela-se a preferência dos temas ao longo do período analisado. Machismo / Livro#MeuAmigoSecreto / FeminismoLGBTQIA+ / FeminismoNegro / Gênero / Sexualidade / Sororidade referem-se a temas políticos relativos à identidade sexual, que afeta fortemente a identidade pessoal e somam juntas 31 aparições. Aborto / Causas Sociais / Empoderamento / Ativismo / Política têm em comum serem questões políticas coletivas e somam 66 publicações. Convite / Cultura / Educação / Ironia / Humor / Relacionamento / Padrões de Beleza / Maternidade somam 70 publicações e caracterizam-se como temas que se encontram em seus aspectos culturais, portanto assumem uma dimensão social. Marielle / Violência somam 27 publicações de temas relativos à prática de violência, também relativa à uma problemática social.

O que se busca com esta releitura das publicações, agremiando as categorias, é encontrar um padrão no que é midiatizado. Como resultado pode-se apontar que as publicações enfatizam posicionamentos políticos em relação a questões sociais que permeiam e são permeadas pelas questões pessoais.

A análise evidencia, ainda, que não há um planejamento fixo de publicações. Quantitativamente as postagens são desiguais e os temas também variam, sendo que determinado tema, por vezes, aparece frequentemente em um mês e em outro quase não é retratado. Conforme Bruna, o coletivo encontra dificuldade para estabelecer um planejamento fixo porque, em primeiro lugar, o Não Me Kahlo ainda não é autossustentável e é feito de forma voluntária, ou seja, seu conteúdo é produzido conforme a disponibilidade das voluntárias. Além disso, como boa parte das publicações são enviadas pelas leitoras, as pautas costumam variar conforme o que é enviado para o coletivo e o que as leitoras querem ver nas mídias do Não Me Kahlo.

Por último, segundo Bruna, as datas fixas, como Dia da Mulher ou Dia da Consciência Negra são passíveis de planejamento. Porém, tanto o site do Não Me Kahlo quanto suas redes sociais recebem conteúdo que acompanha o que é tendência de assunto no momento ou acontecimentos pontuais, como se pode verificar de forma clara nas publicações em sua página no Facebook.

Para Bruna, é imprescindível que as ativistas do feminismo contemporâneo ocupem o espaço virtual, uma vez que, no passado, o feminismo muitas vezes ficou restrito às discussões teóricas na academia. Ela afirma, em entrevista, que “a gente não aprende feminismo nas escolas. Então, às vezes, o único ou o primeiro contato que, principalmente as mais jovens, vão ter com o feminismo será a partir do que elas fazem no dia a dia, então se não for na escola, provavelmente vai ser nas redes sociais”.

Bruna considera que não existe mais uma fronteira entre o mundo online e o mundo offline e, neste sentido, as redes sociais têm servido como ferramenta, inclusive, de diálogo entre estes dois mundos. A visão da ativista acorda com a ideia defendida por Castells (2013), e citada anteriormente, de que os movimentos sociais contemporâneos criam redes que se interligam, formando um espaço híbrido entre online e offline e rompendo, inclusive, as barreiras territoriais. A ativista cita como exemplo os protestos #EleNão, em repúdio à candidatura do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, que surgiram a partir das redes sociais, mais especificamente em grupos no Facebook, onde os militantes combinavam e passavam informações sobre horários e locais das manifestações.

Discussão

Entre as pautas frequentemente discutidas pela Quarta Onda Feminista nas redes sociais, e que podem ser observadas entre as temáticas abordadas pelo Não Me Kahlo durante o período analisado, destacam-se ainda temas já familiares às fases anteriores do movimento, como o empoderamento e o aborto.

As redes sociais ganharam tamanha importância na quarta insurreição feminista por sua capacidade de propagar informação de forma rápida e em larga escala. Assim como afirmam Silva (2019) e Castells (2013) e a exemplo do caso do coletivo Não Me Kahlo, as ativistas da Quarta Onda adotam as redes sociais como ferramenta para comunicação interna e externa, ou seja, as redes sociais são o canal de comunicação entre as ativistas, e entre elas e sociedade.

Também se pode destacar o uso das redes sociais como meio para articulação do movimento, ou seja, as militantes utilizam recursos das redes sociais, como os grupos do Facebook no caso do Não Me Kahlo, para organizar suas formas de militância. Esta forma de uso das mídias é apontada por Castells (2013) como uma característica dos movimentos sociais contemporâneos.

Castells (2013) também destaca que os movimentos sociais só conseguem desafiar o establishment quando existe, entre os membros, um senso de coletivo. É exatamente isso que o uso dessas redes desperta no caso estudado, que demonstra que o coletivo se organiza a partir de um senso de pertencimento e união entre ativistas e leitoras que compartilham posicionamentos e experiências, buscando o que se pode denominar como uma empatia ativista.

Pode-se conferir este fenômeno no exemplo do coletivo Não Me Kahlo por meio da forma como se dá a construção do conteúdo difundido por ele. As redes sociais permitem que as ativistas saiam da posição de apenas consumidoras de conteúdo para o lugar de agentes ativos na produção deste. No Não Me Kahlo as leitoras/ativistas são as responsáveis por definir os assuntos que serão discutidos ao enviar seus textos para serem publicados no site do coletivo. Estes textos são feitos com base nas vivências e visões de mundo destas mulheres, o que reforça o posicionamento de Castells quando define estes espaços como elaboradores de um senso de pertencimento e como um ambiente seguro para compartilhar informações e relatos pessoais.

O trabalho do Não Me Kahlo também exemplifica o que citou Heloísa Buarque (2018) ao afirmar que as redes sociais possibilitam um padrão de organização com base na polinização cruzada, na consulta múltipla e na retroalimentação. Estes são, conforme a autora, elementos fundamentais para o surgimento, desenvolvimento e fortalecimento da Quarta Onda Feminista, pois, por meio deles, a insurreição alcança um público antes à margem da informação, que não possuía acesso ao ambiente acadêmico, por exemplo.

Com as redes sociais, se fala e ensina sobre feminismo de forma acessível, também por meio de diversas expressões artísticas como afirmou Heloísa Buarque de Holanda (2018). As redes sociais permitem explorar diversas linguagens por sua característica multimídia, ou seja, por permitirem postagem e compartilhamento de imagens, sons e vídeos, além da interatividade por meio de enquetes e ferramentas de perguntas e respostas, o que acaba por favorecer o debate e a disseminação de manifestações artísticas como videoclipes musicais, colagens, ilustrações, fotografia e poesia feitas pelas ativistas.

Conforme destaca Costa (2018), estes recursos possibilitados pelas redes sociais facilitam a autonomia e a ação direta, ou seja, favorecem o compartilhamento dos relatos pessoais e da arte produzida pelas ativistas, que se tornam virais ao serem compartilhadas por páginas como a do coletivo Não Me Kahlo e, assim, atingem um público não alcançado pelas fases anteriores do movimento.

Porém, apesar de todas as facilidades e benefícios que as redes sociais trazem ao feminismo contemporâneo, elas também abrem portas para ataques de haters, usuários, por vezes robôs, que espalham comentários de ódio sem argumentos embasados ou que organizam grupos para derrubar páginas/perfis ou depreciar/desacreditar ativistas. A página do coletivo Não Me Kahlo, por exemplo, já sofreu pelo menos dois ataques de haters, que resultaram na queda da página. Este foi um dos motivos, conforme a ativista e co-fundadora Bruna Rangel, que levaram o Não Me Kahlo a priorizar a publicação do conteúdo em seu site, uma página autoral e de domínio do grupo, ao invés da rede social.

Quanto ao posicionamento do coletivo feminista brasileiro Não Me Kahlo nas redes sociais remete à integração entre as políticas da vida e a política emancipatória, conceitos propostos por Giddens (2002) para se referir às questões pessoais e coletivas respectivamente. A política da vida refere-se à autoidentidade e à autoescolha, já a política emancipatória, à construção da identidade coletiva, às oportunidades da vida, mas o autor ressalta a relação de interdependência entre identidade pessoal e identidade coletiva.

Giddens analisa que, desde o início da era moderna, estimula-se a emancipação humana em relação às condições da vida social limitadoras da liberdade. Desse modo, ele define a política emancipatória como aquela que visa libertar os indivíduos e grupos das limitações que afetam negativamente suas oportunidades de vida. Busca romper as algemas do passado, transformando o futuro com a superação de formas de dominação ilegítimas. “A ruptura com as práticas fixas do passado permite que os homens aumentem o controle social sobre as circunstâncias de suas vidas” (Giddens, 2002, p. 194). Entre os valores que permeiam a política emancipatória ele cita a justiça, a igualdade e a participação. Como princípio, refere-se à autonomia e à liberdade do indivíduo para agir responsavelmente em relação aos outros e reconhecer as obrigações coletivas.

Quanto à política da vida trata-se da política do estilo de vida, da autorrealização, da reflexividade do que liga o eu e o corpo:

A política da vida refere-se a questões políticas que fluem a partir dos processos de auto-realização em contextos pós-tradicionais, onde influências globalizantes penetram profundamente no projeto reflexivo do eu e, inversamente, onde os processos de auto-realização influenciam as estratégias globais. (Giddens, 2002, p. 197)

É a política decorrente das decisões da vida que afetam a autoidentidade e o desenvolvimento de uma autenticidade interior. Refere-se aos debates e contestações derivados do projeto reflexivo do eu, o que torna a dimensão pessoal uma esfera política.

No caso das temáticas do feminino, revelam a relação intrínseca entre aspectos emancipatórios, da autoidentidade, questões filosóficas (o que é a pessoa?) e morais, além de direitos humanos. Para Giddens (2008), a agenda da política da vida foi produzida pelo impacto emancipador das instituições modernas e traz de volta as questões morais e existenciais recalcadas por estas instituições quando preconizam sobre como devemos viver nossas vidas. Hoje, estes temas perpassam o cotidiano traduzidos em modos de lutas coletivas, que trazem as questões existenciais, como o estilo de vida, ou como a existência deve ser percebida e vivida, para o debate público. Como o eu e o corpo tornam-se lugares que expõem estilos de vida, o corpo passa a ser também lugar de manifestação política.

Para Giddens (2008), isto não diminui a relevância da luta pelos direitos de cidadania. Eles servem de arena onde as questões da política da vida são debatidas. Neste sentido, os movimentos sociais, como o coletivo em estudo, têm a relevância de dar visibilidade, inclusive midiática, às questões da política-vida, de modo a forçar a atenção pública sobre eles. Para o autor, as questões da política da vida geralmente colocam problemas do tipo emancipatório, por isso, “a emancipação pressupõe uma transformação na política-vida” (Giddens, 2002, p. 211).

Considerações finais

O desenvolvimento assim como a insurreição da Quarta Onda Feminista no Brasil são elementos que estão diretamente relacionados às redes sociais e às suas possibilidades como plataformas de comunicação e de midiatização. O caso do coletivo Não Me Kahlo, como se pode perceber na análise realizada, é um exemplo claro da relevância de redes como o Facebook e suas ferramentas para as feministas contemporâneas.

A indignação com o aumento nos números da violência de gênero, em especial nos países de maior vulnerabilidade social, como é o caso do Brasil, foi a faísca para o nascimento de uma nova fase do movimento feminista e acabou por tornar-se a principal pauta desta insurreição, aliada à desconstrução da visão romantizada dos relacionamentos abusivos, como destaca o levantamento das temáticas abordadas pelo Não Me Kahlo em suas publicações no Facebook, entre janeiro e junho de 2019, onde a violência demonstrou ser tema recorrente.

O uso das redes sociais pelo movimento feminista contemporâneo obviamente é passível de críticas e tem suas limitações. Um exemplo é que, como visto no caso do Não Me Kahlo, a produção de conteúdo não consegue seguir uma frequência ou um planejamento, uma vez que é feita de forma voluntária pelas ativistas e tem como maior fonte de pautas acontecimentos imprevisíveis ou temas sugeridos pelas leitoras nos textos enviados por elas.

Mas também é fato que as ferramentas das redes sociais têm sido fundamentais para a difusão do discurso feminista, principalmente entre as camadas mais populares. As redes sociais e a internet democratizaram este movimento social que, antes, a exemplo das três primeiras ondas, dificilmente seria acessível a quem não frequenta o espaço acadêmico. Com as redes sociais não é mais preciso uma formação acadêmica ou publicações em grandes editoras para as ativistas serem ouvidas.

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Recebido: 18 de Abril de 2021; Aceito: 27 de Julho de 2021

*Bachiller en Periodismo por la Universidade do Vale do Taquari (véase: https://orcid.org/0000-0002-9387-3833)

**Doctora en Ciencias de la Comunicación por la Universidade do Vale do Taquari (véase: https://orcid.org/0000-0002-6051-5116)

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